Que sentido tem a palavra socialista no século 21? A reflexão de Anthony Giddens
O socialismo era filho da sociedade industrial e hoje vivemos numa sociedade (globalizadora) pós-industrial, com uma composição de classes sociais diversa com dinâmicas por sua vez diversas. A opinião é do sociólogo Anthony Giddens. Segundo ele, “não podemos mais definir a esquerda em termos de luta da classe trabalhadora: a classe trabalhadora está cada vez mais se contraindo”.
Giddens em artigo para o La Repubblica, 04-09-2007, defende a proposta que a esquerda precisa se modernizar, “delinear políticas que nos permitam adaptar-nos a um mundo diverso daquele do passado, um mundo no qual o principal motor de mudança é a irradiante globalização”. Giddens é autor, entre outros, do livro Modernidade e Identidade (Jorge Zahar Editor, 2002)
Eis o artigo.
Participei recentemente em Paris de uma convenção dos ‘Gracques’, um respeitado grupo da esquerda francesa, formado por ex-dirigentes públicos de alto nível, embaixadores e outros personagens de destaque. Em linha maior trata-se de um grupo progressista, interessado em liderar a esquerda do novo século, tarefa muito mais difícil na França do que na maioria dos outros países, a partir do momento em que, na França, a esquerda permaneceu mais tradicional do que alhures. Muitos continuam a manter objetivos primários da esquerda, rejeitar as forças da globalização, opor resistência à americanização e manter como estão os sistemas do welfare, ao invés de reformá-los.
Declarei que suas políticas são hoje quadridimensionais. A divisão entre esquerda e direita ainda é significativa. Na esquerda qualquer um crê no progressismo, na capacidade de plasmar a História para melhor, na solidariedade por uma sociedade da qual ninguém seja excluído: na igualdade e, por isso, na redução das desigualdades, a fim de que, por reflexo, a sociedade se beneficie em seu complexo e, enfim, no fato de que as instituições públicas ou estatais sejam indispensáveis para perseguir estes objetivos. Não obstante, num mundo em rápida evolução existe uma outra dimensão de grande importância, aquela que vê contrapostas a modernização e o conservadorismo. Modernizar significa delinear políticas que nos permitam adaptar-nos a um mundo diverso daquele do passado, um mundo no qual o principal motor de mudança é a irradiante globalização.
Não necessariamente podemos ainda hoje identificar a direita política com o conservadorismo: de fato há modernizadores de direita e Sarkozy é o principal exemplo. O futuro da esquerda – assim dei a entender à convenção – na França, mas também em geral, depende de ela saber abraçar a modernização, ou, em outras palavras, de saber conceber e programar políticas que nos ajudem a preservar e melhorar os valores de centro-esquerda na época da globalização. Temos a obrigação de persuadir os conservadores da esquerda – aqueles que de nenhum modo se destacariam das teorias e doutrinas concebidas para uma época passada – a enveredar por uma direção modernizadora.
No que me diz respeito, não vejo problemas que na esquerda alguns continuem a dizer-se socialistas, embora reconheça que hoje esta palavra é uma simples etiqueta para enfileirar-se à esquerda. O socialismo enquanto tal, em todo caso, é um projeto sepultado enquanto ele se baseava na idéia de que uma economia regulada pudesse substituir os mecanismos de mercado, regendo-se pela tese de que o capitalismo poderia ser superado por um modelo de sociedade profundamente diverso. O socialismo era filho da sociedade industrial, enquanto, ao invés disso, vivemos hoje numa sociedade (globalizadora) pós-industrial, com uma composição de classes sociais diversa e dinâmicas por sua vez diversas. Não podemos mais definir a esquerda em termos de luta da classe trabalhadora: a classe trabalhadora está cada vez mais se contraindo. A esquerda deve hoje olhar para além de seus fatores de longa data. A esquerda pode ter sucesso somente como “centro-esquerda”.
Minhas idéias foram positivamente acolhidas na convenção. Também outros oradores falaram com argumentos muito semelhantes e no mesmo teor. Um deles foi o prefeito de Roma, Walter Veltroni, que desencadeou um escarcéu sustentando que a Internacional Socialista deveria ser modernizada no mesmo padrão das esquerdas internas de diversos países. A história da IS sintetiza a evolução da esquerda com suas continuidades, mas também com suas rachaduras internas. Foi fundada mais ou menos em torno do início do século vinte e se tornou veículo do “socialismo democrático”, ou então, à corrente daqueles que auspiciavam a afirmação do socialismo através do processo democrático, antes do que com a intervenção de uma revolução. A IS foi dissolvida durante a Primeira Guerra Mundial, refundada e novamente cindida em fragmentos distintos. Existe, como é estruturada hoje, desde 1951 e lhe são filiados em torno de 16, entre partidos socialistas e social-democráticos.
Na carta, a Internacional Socialista é muito ativa. Em sua carta constitutiva declara querer ocupar-se de todas as problemáticas e dilemas de fundo da sociedade hodierna. É composta por uma multiplicidade de grupos de trabalho e freqüentemente envia missões e delegações a várias regiões do planeta. Alguns dos mais ilustres líderes de centro-esquerda de anos passados se tornaram presidentes, entre eles Willy Brandt, Pierre Mauroy e Antonio Guterres. Na prática, todavia, apesar de recentes relações e estudos atualizados e detalhados, tem pouca influência. Seu orçamento anual está na ordem aproximada do milhão e meio de euros, com o qual deve cobrir todos os seus custos de gestão. A maioria dos europeus talvez jamais tenha ouvido falar dela. Estando assim as coisas, não há nenhuma comparação com os objetivos originais da organização, que se propunha nada menos do que o triunfo do socialismo em escala internacional.
Veltroni sugeriu mudar o nome da Internacional Socialista e, ao mesmo tempo, renovar e melhorar a missão. A IS poderia ser relançada com o nome de “Associação dos Social-democratas”, por exemplo, ou com outro nome semelhante. Na IS subsiste atualmente uma definição antes dogmática do que “socialista” e “social-democratica”, com base na qual se decide que partidos possam candidatar-se para uma filiação efetiva. Isto é um dos motivos que explica sua reduzida influência. O mais importante partido de centro-esquerda do País mais poderoso do mundo, o Partido Democrata dos Estados Unidos, não tem direito de filiação. O único partido americano filiado à IS é o pequeno partido dos Democratic Socialists of América. Nem sequer o Congress Party indiano, país que conta com mais de um bilhão de habitantes, tem direito de fazer parte dele na qualidade de membro.
Vê-se claramente que a sugestão de Veltroni é, de certa maneira, de seu próprio interesse: o novo Partido Democrático Italiano em via de criação, composto de diversos ex-partidos da esquerda, poderia, com efeito, encontrar-se excluído da IS. Não obstante, é correto dizer que nesta proposta é posto em jogo algo decididamente mais importante. Estamos de acordo com a proposta de Veltroni: A Internacional Socialista deve reformar-se e modernizar-se em seu próprio interesse. “Socialismo” e “socialista” são termos, como já tive ocasião de dizer, hoje essencialmente carentes de significado. Seguramente, não há motivo para insistir nas linhas de demarcação entre partidos progressistas que contêm em sua própria denominação os termos “socialista” e “social-democrata”, e entre estes e aqueles outros que precisamente não os têm. Uma mudança de nome, junto a uma renovada modalidade de filiação, em si e por si não conduziriam a IS à ribalta, dando-lhe maior influência em nível global, mas seria pelo menos um início.
Para ler mais:
O novo paradigma da globalização. O deslocamento do trabalho. Artigo de Anthony Giddens
Para onde vai o mundo? Entrevista com Anthony Giddens
Vivemos o século pós-socialista, constata Anthony Giddens
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