As melancólicas derivas do urbanismo contemporâneo na era da globalização. Um texto inédito do arquiteto Rem Koolhaas que projetou a célebre Maison di Bordeuax. Há um tempo, o espaço público era terreno de confronto. Hoje, com o deslizamento do público ao privado, não toleramos mais o vazio. E o resultado que daí deriva é uma oprimente confusão. O artigo foi publicado pelo jornal Il Manifesto, 3-10-2007.
Eis o artigo.
Gostaria de compartilhar convosco algumas reflexões sobre a evolução da cidade, um problema no qual nós, arquitetos, estamos interessados e que apresenta uma série de questões tremendamente complexas, às quais me é difícil dar respostas.
A civilização grega construía os seus monumentos para uma comunidade que se sentia fortemente responsável pela coisa pública e reconhecia com clareza a diferença entre o público e o privado. Esta civilização produziu, tanto na arquitetura quanto na urbanística, o modelo que consideramos dominante, no sentido de que ainda hoje, em termos de público e privado, se pensa praticamente do mesmo modo. Nos últimos quinze anos se verificou, todavia, um fenômeno de extrema relevância: a formação daquilo que, unindo os símbolos do iene, do euro e do dólar, poderíamos definir como o regime do YES, em cujo interior o poder do público está em declínio, enquanto aumenta aquele do privado.
Explosões e contradições
Vivemos hoje num período de intensa negociação entre o público e o privado e um dos principais setores no qual tem lugar esta negociação é a arquitetura, em sua relação com a cidade. Antes que se desenvolvesse esta fase final de globalização e privatização, um edifício como aquele de Frank Gehry, em Bilbao, não teria sido construído.
Se, há um tempo, os edifícios de fato encontravam razão para existir em sua neutralidade e dignidade, como no caso do Partenon, hoje a simples pressão comercial que está por trás de qualquer edifício obriga também o arquiteto mais sério a toda sorte de excentricidades. Outro fenômeno importante que repercute sobre o desenvolvimento das cidades é devido à não homogeneidade da globalização, que se intensifica em diferentes zonas das cidades, gerando duas condições completamente diversas: a cidade que explode e a cidade que se contrai, com quase nada no meio.
Houve um período no qual ninguém sabia exatamente o que fazer: em muitos manifestos escrevemos declarando aquilo que queríamos realizar e alguns de nós conseguiram concretizar, pelo menos em parte, aquelas declarações de intenções. Em seguimento às mudanças culturais ocorridas nos últimos quinze anos e por causa dos nossos próprios erros, no entanto, a confiança naqueles manifestos e nas nossas certezas desmoronou. Hoje não se escrevem manifestos. Quando muito, descrevem-se cidades particulares, não tanto na esperança de desenvolver uma teoria sobre o que convém fazer, quanto de entender como funcionam as cidades. Em outras palavras, aquelas convicções desapareceram e será necessário muito tempo para que algo semelhante possa retornar. Muitas pessoas na Inglaterra – e conheço bem as tendências anti-utopistas daquele país desde quando ali estudava, em 1968 – diriam “que libertação!”, mas, a ausência de um espírito utópico talvez seja tão problemática quanto uma sua dose excessiva.
Neste dilema, permanece em suspenso uma questão: se confrontamos o andamento econômico da América e da Europa – andamento que sofreu um rápido declínio a partir dos anos 1970 – com o andamento da produção de manifestos arquitetônicos nestes países, vemos que o ponto de estagnação foi atingido precisamente no instante em que deixamos de pensar. Este momento coincide com aquele em que a economia asiática começou a crescer muito mais rapidamente de quanto jamais tivéssemos visto até então: uma situação trágica, a meu ver, porque significa a apoteose final da metrópole. Todos nós sabemos pelas estatísticas que a cidade se tornou o principal ambiente no qual o povo vive. No momento do seu triunfo, o nosso pensamento estacionou e a participação do setor público na definição da cidade se reduziu progressivamente.
Entre arranha-céus e campos de arroz
Não surpreende constatar que esta simultânea ausência de regras e velocidade da construção gere, como no caso da China, uma cidade completamente nova, na qual, por exemplo, o cruzamento viário mais importante se encontra a menos de quatrocentos metros dos campos de arroz. Em outras palavras, a metrópole e a não-metrópole encontram-se numa relação de proximidade que não tem precedentes. Do vasto repertório de tipologias permanecem apenas o arranha-céu e a barraca, acomodados no interior de uma base urbana aparentemente caótica.
Em Dubai, o deserto foi transformado em cidade. Normalmente, o nascimento de uma cidade é associado à exigência de que um vasto número de pessoas terá de viver no mesmo lugar. Não é assim em Dubai, onde a redução das entradas devidas à extração do petróleo é compensada pelo incremento do desenvolvimento de assentamentos. Voltamos a assistir aqui a uma situação na qual as motivações para o crescimento da cidade são de todo novas e não mensuráveis com os padrões tradicionais.
Em 1990, os residentes que habitavam na cidade eram demasiado poucos e assim foi encorajado o afluxo de estrangeiros. Dubai consiste substancialmente de mar, deserto e desenvolvimento urbano – desenvolvimento urbano que foi projetado sempre mais em direção ao mar, favorecendo uma linguagem mais ornamental e direcionada ao prazer que respondesse às exigências da cidade, coisa que representou uma mudança de pressupostos e de idéias.
A cidade que observamos hoje já não é mais constituída pela substância necessária à nossa sobrevivência, mas de conteúdos realmente supérfluos, para os quais podem ser aplicadas novas metáforas. Não surpreende que no primeiro plano de um centro direcional seja utilizada a linguagem do resort (o lugar de veraneio) – que atualmente dá forma ao espaço público – antes do que aquele da troca de idéias. Para mim, a palavra resort é muito importante, porque o nosso modelo de vida na cidade está conceitualmente se deslocando do trabalho ao ócio e conseqüentemente, a estética da cidade se transfere de iniciativas mais sérias às condições do resort. Um resort não é um lugar onde se vive, mas onde a principal atividade é a diversão. O paradoxo da intercambiabilidade entre cidade e resort é evidente em localidades marítimas como a da Flórida, onde a própria cidade é a metáfora para o resort. Seria interessante entender se a vida das pessoas no interior destas instalações seja melhor do que a dos habitantes de Nova York de trinta anos atrás. Há um tempo, a cidade era considerada um grande mecanismo e o espaço público era seu terreno de confronto, de troca e talvez também de compromisso. Agora, com o deslizamento do público ao privado não existe mais aquela base e se espera que o confronto se ativasse alhures. Da mesma forma, não podemos mais tolerar o vazio e a neutralidade na cidade, e assim, cada centímetro da cidade é regulamentado e constitui por si mesmo um cenário, sendo o resultado a oprimente confusão que governa as cidades. Singapura, por exemplo, tem uma estética de resort combinada com a realidade de uma cidade.
Isto ocorre não só em escala urbana, mas em cada nível. Para quem se interessa por política, Berchtesgaden na Alemanha, conhecida pelo refúgio-bunker que Hitler ali fez construir e que agora é um resort, demonstra como as ruínas do passado vêm sendo sistematicamente eliminadas em nome da história e da memória e substituídas por mais agradáveis dispositivos para recordar, de modo que o sofrimento desapareça, deixando atrás de si somente vagas referências. De um lado, a arte se expande por toda parte, de outro, perde sua eficácia. E o protesto, naturalmente, encontra uma total contenção.
O paradigma de Las Vegas
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