Enquanto o céu era de brigadeiro, poucas vozes dissonantes ousaram questionar o catecismo filosófico do laissez-faire em terras de George W. Bush. Mas o aumento da desigualdade social, a explosão da bolha do mercado de crédito imobiliário, a redução do número de postos de emprego e a ameaça de uma recessão têm levado parcela significativa de economistas de prestigiosas universidades do país a questionar de forma mais incisiva a ortodoxia dos apóstolos mais ferrenhos da não-interferência governamental na maior economia do planeta. Para Robert B. Reich, da Universidade de Berkeley, o consenso da economia de livre mercado "simplesmente acabou". Paul Krugman, estrela do New York Times e da Universidade de Princeton, reza por um novo "New Deal", e até mesmo os laureados Lawrence Summers, ex-presidente da Universidade de Harvard, e George Akerlof, Nobel de Economia em 2001, vêm tratando das falhas do modelo neoclássico (o "maistream" ortodoxo) em seus artigos. A reportagem especial é do jornalista Eduardo Graça para o jornal Valor, 11-10-2007.
"Durante décadas, a economia neoclássica recebeu críticas de um número muito pequeno de pensadores. Hoje, economistas sérios questionam certos princípios porque estes simplesmente não parecem de acordo com o mundo em que vivemos", diz Reich. Secretário do Trabalho na administração Bill Clinton, o professor de políticas públicas na faculdade de economia de Berkeley argumenta que fatores como a transferência de empregos para países com mão-de-obra barata, como Índia e China, possibilitada pela globalização, e as mais recentes revoluções tecnológicas, destruíram o esboço da sociedade de livre-comércio estabelecido nos anos 1970.
O professor Thomas McCraw, de Harvard, autor de uma festejada biografia de Joseph Schumpeter, disse que o predomínio "asfixiante" do não-intervencionismo do Estado na economia americana foi fundamental para o crescimento da desigualdade social nas últimas duas décadas. "McCraw está correto. Para diminuir a diferença cada vez maior entre o rendimento de ricos e pobres no país, por exemplo, é necessário criar um imposto de renda progressivo (quem ganha mais, paga mais), combinado com um subsídio governamental dado para trabalhadores com renda mais baixa. Os primeiros US$ 15 mil seriam isentos de taxas da previdência social, mais a partir daí o imposto seria cobrado de forma crescente. Outro passo fundamental é a garantia de um sistema educacional que de fato beneficie toda a sociedade", diz Reich.
Mas ainda há terreno para um namoro aberto com o Estado do bem-estar social europeu nos EUA do século XXI? O que parecia ser um delírio depois de sete anos de domínio do neoconservadorismo ganha algum fôlego com a impopularidade do governo Bush, a dinâmica corrida eleitoral para a Presidência em 2008 e um ineditismo histórico: a totalidade dos candidatos democratas - incluindo os três mais fortes, Hillary Clinton, Barack Obama e John Edwards - defendem uma reforma radical no sistema de saúde, com o aumento do poder decisório do Estado. Paul Krugman lembra que é justamente na hora de se ter acesso aos melhores hospitais e médicos dos EUA que se detecta com mais exatidão o crescimento da disparidade entre ricos e pobres e o achatamento da classe média.
Krugman é um crítico severo do pacote de redução de impostos enviado ao Congresso pelo presidente republicano, "o mais elitista já visto em Washington". De fato, o Tax Policy Center, uma organização não-vinculada a partidos políticos, informou este ano que mais da metade das reduções de impostos aprovadas no governo Bush beneficiaram exclusivamente os que embolsam mais de US$ 1 milhão por ano. "Boa parte dos economistas ainda defende a tese de que, ao diminuir os impostos dos mais ricos, aumenta-se imediatamente o poder de crescimento da economia nacional, beneficiando toda a população.
De fato, desde 2003, surgiram 8 milhões de novos postos de trabalho, mas boa parte é uma recuperação dos que desapareceram nos primeiros anos do governo Bush. E não se comparam aos 21 milhões que surgiram logo após Bill Clinton enveredar pelo caminho oposto, ou seja, aumentar os impostos dos ricos. A matemática é simples: quando você diminui impostos dos ricos, eles pagam menos. Quando você aumenta os impostos, eles pagam mais. Fim da história", escreve Krugman, em meio ao que considera ser o fim do "boom" econômico de Bush.
Os críticos da ortodoxia neoclássica encaram os últimos quatro anos de pujança econômica como um desastre sem tamanho comparável na história do país, um período de crescimento incapaz de produzir qualquer ganho real para o trabalhador comum. "Nem na Gilded Age, nem nos anos Reagan havíamos experimentado tal contradição. Precisamos urgentemente de um novo New Deal. Crescimento econômico não pode ser um esporte feito apenas para espectadores passivos", ataca Krugman.
O debate sobre essas questões ganha importância na medida em que a economia volta, depois de quatro anos, ao centro da agenda política nos Estados Unidos, até então dominada com exclusividade pela atrapalhada ocupação do Iraque. A contaminação da economia como um todo, infectada pela crise do mercado de crédito imobiliário, trouxe de volta à vitrine economistas dispostos a advogar a necessidade de o governo intervir de forma incisiva para evitar a recessão e ajudar os milhares de cidadãos encalacrados com o aumento dos juros no pesadelo que se tornou a conquista da casa própria.
As vozes mais críticas já perceberam que nunca foi tão pouco popular o discurso de corte de impostos e diminuição de gastos com projetos sociais bancados pelo Estado. Uma das estrelas do grupo de economistas heterodoxos, termo cunhado para identificar os dissidentes da economia neo-clássica, é o professor Frederic S. Lee, da Universidade do Missouri-Kansas City, editor da popular publicação eletrônica "Heterodox Economics".
"A perspectiva heterodoxa desconhece, por exemplo, a desregulamentação de preços. Para nós, os preços são sempre regulados, seja pelas corporações, por cartéis ou pelo Estado. Ao contrário dos ortodoxos, modelos, para nós, não são mais importantes do que fatos. Temos uma percepção, grosso modo, mais plural quando pensamos na aplicação dos conceitos econômicos", diz Lee. Para ele, são as grandes corporações, não o mercado, que determinam, em última instância, por exemplo, o preço do petróleo.
Nada mais distante do que pensa o professor Philip J. Reny, chairman do departamento de economia da Universidade de Chicago, catedral dos neoclássicos. "Não há um economista sério disposto a negar o fato de que o livre-comércio pode ser custoso para os que se encontram no furacão que chamarei aqui de período de transição. Por exemplo, empresários que precisam lidar com o fato de que seus produtos são mais caros do que os similares produzidos no exterior serão prejudicados seriamente se não receberem algum subsídio. E na maioria das vezes eles não recebem mesmo ajuda alguma. Mas os benefícios a longo prazo para a economia do país são substanciais. Aliás, se mais atenção fosse dada à diminuição das perdas dos que sofrem com o processo, haveria muito menos interesse neste debate. E tudo isso é perfeitamente consistente com uma perspectiva neoclássica", garante.
Reny também redimensiona a crítica centrada nos resultados desastrosos da aplicação de preceitos neoclássicos quando se trata do aumento da desigualdade social nos Estados Unidos. "É preciso levar em conta outros aspectos, como a renda média no país como um todo e a renda média dos 25% mais pobres, que vêm crescendo em termos reais. Não sou um especialista no tema, mas aposto que, se um estudo fosse feito, se chegaria à conclusão de que tanto a renda média dos cidadãos como um todo quanto as dos 25% mais pobres crescem mais na economia de livre mercado". Lee até concorda com a primeira parte da argumentação de Reny, desde que "se considere que a economia-padrão ensinada nas escolas americanas tem alguma relação com o mundo real". Mas o professor da Universidade do Missouri-Kansas City diz que os benefícios do laissez-faire "não chegam às classes e indivíduos com os quais me preocupo".
Apesar de contar com mais de dois mil economistas heterodoxos dos quatro cantos do globo colaborando em sua newsletter (entre eles, muitos pós-keynesianos e um punhado de marxistas), Lee reconhece que ainda é complicado bater de frente com o status quo, lembrando que "a maioria das universidades americanas não conta com professores heterodoxos".
O professor Alan S. Blinder, de Princeton, a segunda voz no Federal Reserve Board na primeira metade dos anos 1990, disse recentemente que passou a ser tratado como um apóstata por seus colegas ao criticar o livre mercado globalizado, que, em seus cálculos, pode levar a uma diminuição de até 40 milhões de postos de trabalho nos Estados Unidos, nos próximos anos, e ao defender temas-tabu como a instituição de um salário mínimo nacional (há estados no Sul que não adotam nem um valor mínimo local), a instituição de uma política industrial transparente e um ajuste mínimo de preços. Em entrevista recente ao New York Times, Blinder sintetizou a crise na academia afirmando que, hoje, "as ciências econômicas são freqüentemente um triunfo da teoria sobre os fatos".
Outra voz dissidente, o professor David Card, também de Berkeley, reconhecido por seus estudos sobre os efeitos no mercado do estabelecimento do salário mínimo (ele defende a tese de que, ao contrário do que prega a economia neoclássica, a oferta de emprego aumenta quando se estabelece um piso salarial) foi ainda mais específico ao dizer que, no mundo acadêmico americano, "você perde sua posição como um economista sério se não concordar que qualquer tipo de regulação de preços é maléfica e que o livre comércio é sempre benéfico". "Blinder e Card estão corretíssimos. Tem sido mesmo difícil discutir estes preceitos econômicos básicos. Mas os tempos estão mudando", acredita Reich.
O professor de Berkeley enfatiza, por exemplo, que, ao contrário do que defende o comandante da faculdade de economia da Universidade de Chicago, quem precisa de ajuda neste período de transição da economia americana não são os empresários, e sim "os trabalhadores, forçados a deixar a velha realidade pré-globalizada". Reich vai além: diz que não percebe qualquer interesse dos economistas neoclássicos em se aprofundar neste ponto. "Eles se preocupam muito em ser eficientes, mas não estão interessados em apresentar uma análise balanceada, justa", diz. Ele também aponta o revival da chamada economia comportamental como uma bem-vinda reação à ditadura neoclássica, que teria vivido seu auge com Milton Friedman e durante os anos mais felizes do governo Reagan.
Os economistas comportamentais não se afastam do pensamento "mainstream" como os heterodoxos, mas levam em conta as complexas reações psicológicas do indivíduo a eventos como uma queda brusca na bolsa de valores ou uma crise de liquidez como a enfrentada neste momento nos Estados Unidos. "Eles entenderam que os seres humanos não são, necessariamente, racionais em suas escolhas. Ao contrário, muitas vezes são mais o resultado da emoção do que da razão, e, dependendo das circunstâncias, as pessoas podem agir com mais ou menos empatia e generosidade. É um rompimento importante com o modelo neoclássico ortodoxo, racional e egoísta", diz Reich.
Para Reny, ainda é cedo para avaliar as contribuições que economistas comportamentais, como seu colega Richard Thaler, da Universidade de Chicago, podem oferecer para uma melhor compreensão do mundo contemporâneo. "Parece improvável, por exemplo, que a economia comportamental vá nos ajudar a entender algo significativo sobre os grandes investidores institucionais, que se preocupam acima de tudo com sua margem de lucro e que usam modelos matemáticos sofisticados para conduzir seus negócios. Mas, no fim, teremos de ver para crer", diz. A discussão, afinal, está apenas começando.
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