“Todo o mundo é, hoje, aristotélico, ou quase! Há duas razões distintas para isso, embora convergentes. Primeiramente, Aristóteles inventa a filosofia acadêmica. Entendamos por isso uma concepção da filosofia dominada pela idéia do exame coletivo de problemas corretamente postos (...) Por outro lado, a hegemonia contemporânea da democracia parlamentar é reconhecida no pragmatismo de Aristóteles, seu gosto pelas proposições medianas, sua desconfiança para com a exceção e o monstruoso, sua mistura de materialismo empírico, de psicologia positiva e de espiritualidade ordinária”, diz Alain Badiou.
Alain Badiou firmou-se, aos poucos, como referência importante nos debates sobre a renovação do pensamento da esquerda. Ele é professor emérito da Escola Superior Normal. Badiou concedeu a entrevista abaixo ao Le Monde, 01-02-2008. A tradução é do Cepat.
Qual é o lugar de Aristóteles e do pensamento dele no seu próprio itinerário filosófico?
Um lugar muito importante: o do Adversário. A oposição Platão-Aristóteles simboliza duas orientações filosóficas completamente irredutíveis. E isso qualquer que seja a questão. No campo ontológico, o platônico privilegia a potência separadora da Idéia, o que faz das matemáticas o vestíbulo de todo pensamento do ser; o aristotélico parte do dado empírico, e quer permanecer de acordo com a física e a biologia. Na lógica, o platônico escolhe o axioma, que institui, até mesmo funda soberanamente, todo um campo do pensamento racional, e o aristotélico escolhe a definição, onde Aristóteles se sobressai, que delimita e fixa na língua uma certa experiência do dado.
Na ética, o platônico privilegia a conversão subjetiva, o despertar repentino a uma via anteriormente despercebida para a Verdade, enquanto do lado de Aristóteles, prevalece a prudência do justo meio, que se guarda tanto à direita como à esquerda de todo excesso. Na política, o aristotélico deseja o debate organizado entre os interesses dos grupos e dos indivíduos, o consenso elaborado, a democracia gerencial. O platônico é animado pela vontade de ruptura, pela possibilidade de um outro destino da via coletiva, pelo gosto pelo conflito desde que entranhe princípios. Na estética, a visão do platônico faz do Belo uma das formas sensíveis da Verdade, ao passo que Aristóteles avança a função terapêutica e quase corporal dos espetáculos.
Como desde a minha juventude estou, quanto à orientação principal, do lado de Platão, o estudo – muito cuidadoso – da Aristóteles me forneceu numerosos e memoráveis contra-exemplos. Citarei quatro. Eu propus uma ontologia do Múltiplo cujo suporte último é o múltiplo-de-nada, o conjunto vazio. Para expor esta filosofia do vazio, eu me apoiei no belíssimo texto de sua Física onde Aristóteles “demonstra” que o vazio não existe... Para sustentar que as matemáticas são essenciais desde que se queira distinguir as possíveis opções do pensamento filosófico, eu tomei como contravertente o livro Metafísica em que Aristóteles explica que a única virtude das matemáticas é a ordem estética. Eu classifiquei diferentes relações entre as artes e a filosofia de tal maneira que a doutrina de Aristóteles sobre este ponto, em sua Poética, é de alguma maneira “coincidente” entre Platão e o romantismo, e rejeitado pela psicanálise. Eu também utilizei os famosos desenvolvimentos da Política sobre a relação entre a democracia e o crescimento da classe média, para chamar para mim a apologia contemporânea, em nosso Ocidente, de tais classes.
Qual é o texto de Aristóteles que mais lhe marcou, alimentou, e por que?
Sem dúvida nenhuma Metafísica, texto apreciado por todos, e do qual Barbara Cassin e Michel Narcy propuseram há alguns anos uma leitura inteiramente nova. Neste texto, Aristóteles enuncia, primeiramente, que existe uma “ciência do ser como tal”, programa que sou um dos poucos a ter tomado ao pé da letra, já que para as matemáticas, que propõem uma ontologia do múltiplo puro, são a existência demonstrada desta ciência.
Aristóteles indica, na seqüência, que a palavra “ser” pode ser tomada em diferentes sentidos, mas “na direção do uno”. E, com efeito, para mim, o ser é uma noção equívoca, desde que se aplique ao mesmo tempo à existência regrada daquilo que é (as multiplicidades dispostas sob a lei do mundo) e à força de ruptura daquilo que sobrevém (o que chamo de acontecimento). Portanto, “ser” se diz ao menos em dois sentidos. Entretanto, esses dois sentidos são polarizados pela existência de verdades construídas num mundo sob o efeito do acontecimento. Nesse sentido se pode dizer que “ser” se diz “na direção do uno”, o que significa: uma verdade é o ser real das múltiplas conseqüências de um acontecimento.
Enfim, Aristóteles definiu genialmente (em seu contexto, que é o dos sujeitos e dos predicados) o que hoje chamamos de lógica clássica, a partir de duas propriedades fundamentais da negação: o princípio da não-contradição (não se pode ter ao mesmo tempo e sob a mesma relação a verdade de P e a verdade de não-P), e o princípio do terceiro excluído (deve-se ter ou P, ou não-P). Ora, não é de hoje que sabemos que ao utilizar essas duas propriedades podemos definir na realidade três tipos diferentes de lógica: a clássica, mas também a lógica intuicionista, com o princípio de não-contradição, mas sem o terceiro excluído, e a lógica paraconsistente, com o terceiro excluído, mas sem o princípio da não-contradição. O que na realidade quer dizer que existem três noções essencialmente diferentes da negação. Esta variabilidade da categoria lógica de negação tem conseqüências incalculáveis, e é certo que Aristóteles viu o problema em toda a sua amplitude. O platônico, aqui, se inclina diante do gênio de alguma maneira gramatical de Aristóteles.
Onde está a atualidade mais intensa desse autor?
Todo o mundo é, hoje, aristotélico, ou quase! Há duas razões distintas para isso, embora convergentes. Primeiramente, Aristóteles inventa a filosofia acadêmica. Entendamos por isso uma concepção da filosofia dominada pela idéia do exame coletivo de problemas corretamente postos, cujas soluções anteriores conhecemos (Aristóteles inventou a história da filosofia como matéria da filosofia), e para os quais propomos soluções novas que tornam caducas as anteriores. Trabalho em equipe, problemas comuns, regras aceitas, modéstia científica, artigos dos dez últimos anos anulam toda uma herança histórica... Quem não reconhece os tratados da grande escolástica contemporânea, cuja matriz é a filosofia analítica inaugurada pelo Círculo de Viena?
Por outro lado, a hegemonia contemporânea da democracia parlamentar é reconhecida no pragmatismo de Aristóteles, seu gosto pelas proposições medianas, sua desconfiança para com a exceção e o monstruoso, sua mistura de materialismo empírico, de psicologia positiva e de espiritualidade ordinária. O curso do mundo se acomoda perfeitamente a Aristóteles, e com a exceção de um único ditado, é verdadeiramente grandioso: a afirmação de que é preciso se esforçar para viver “na Imortalidade”. Esse ditado por si só justifica que Aristóteles, falando de si, diga voluntariamente “nós, platônicos”, e deixe, na seqüência, assassinar o mestre. Sim, eu creio que nós devemos procurar viver “na Imortalidade”. Mas é muitas vezes contra o aristotelismo em voga, acadêmico ou eleitoral, que devemos reler esta máxima de Aristóteles.
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