"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, maio 19, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 16/05/08

Duas crises e o limite ecológico do mundo. Onde vamos parar? Entrevista especial com Paul Singer

É preciso criar, através de tributos e subsídios, um desestímulo ao consumo de carnes e derivados. É preciso torná-los mais caros ainda, fazer com que as pessoas voltem a se alimentar de vegetais. Não há outra saída.” Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o economista Paul Singer defendeu a esta idéia de desestimular o consumo da carne. Mas ele enfatiza que as crises alimentícia e energética são uma só, “porque o encarecimento do petróleo passa para os alimentos”. Ele defende também que precisamos rever a sistematização de distribuição de alimentos, colocando-se radicalmente contra a importação de produtos apenas por uma razão de preços. “Os navios que trazem esses alimentos poluem muito, são grandes consumidores de derivados de petróleo e fazem piorar as mudanças climáticas”, disse.

Paul Israel Singer é graduado em Economia e Administração, pela Universidade de São Paulo (USP), onde também doutorou-se em Sociologia e obteve o título de livre-docência. É professor da USP desde 1984, além de secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego e autor de inúmeros livros, entre os quais Globalização e desemprego: diagnósticos e alternativas (São Paulo: Contexto, 1998), O Brasil na crise: perigos e oportunidades (São Paulo: Contexto, 1999), Para entender o mundo financeiro (São Paulo: Contexto, 2000) e Economia socialista (São Paulo: Perseu Abramo, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a relação da produção e desenvolvimento dos biocombustiveis com a crise dos alimentos no mundo?

Paul Singer – Nós estamos diante de uma crise mundial basicamente ecológica, porque não estamos conseguindo mais atender às demandas economicamente solváveis. Hoje, existem milhões de pessoas, principalmente na China, na Índia e também no Brasil, que estão melhorando de vida e têm dinheiro para, ao invés de comer arroz, comer bife, eventualmente comprar carros. Isso significa o aumento de demanda por derivados de petróleo e por alimentos. No caso específico, alimentos animais exigem cereais. O vegetal que nós comeríamos, ou seja, o cereal, é dado como ração ao bicho, seja ele boi, galinha ou porco e nós, depois, comemos esse animal. Isso faz dobrar o gasto do trabalho humano, o uso da terra, a necessidade de água, enfim, se usa o dobro de recursos naturais para obter o mesmo efeito, que é a alimentação.

Nano, da Tata Motors. O carro mais barato do mundo.Em relação aos automóveis, temos uma situação conhecida por todo o mundo. Na Índia, inventaram até o carro mais barato do mundo, que também consome derivados do petróleo. Então, estamos numa situação em que há uma demanda crescente de derivados de petróleo, por causa do automobilismo, provavelmente a razão imediata do encarecimento do petróleo. Este nunca foi tão caro. O barril dele, agora, está custando U$ 126. Mas a crise também está relacionada ao encarecimento da carne, ao encarecimento dos laticínios e até dos cereais, porque eles estão sendo hoje disputados pelos animais, por nós e pelos produtores de etanol, ou seja, os biocombustíveis, que têm ligação com a crise climática.

Ao mesmo tempo, a crise é de alimentos e energética, porque o encarecimento do petróleo passa para os alimentos. Usa-se petróleo para mover os tratores, para mover as máquinas que processam o que é produzido. Então, na medida em que o petróleo e, portanto, os combustíveis aumentam bruscamente de preço, também os produtos que dele dependem aumentam de preço. São duas crises que são, no fundo, uma crise só, porque não conseguimos aumentar a produção de petróleo na medida em que estamos colocando automóveis em nossas cidades. Com isso, aumenta o efeito estufa. O preço do petróleo está desse tamanho porque, pela primeira vez na história, há demanda pelos seus derivados, não tendo produção suficiente. Então, uma parte dos que querem usar o petróleo agora já não pode pagar o preço. Isso é claro no mercado: quando você tem demanda, o preço dispara. Conseqüentemente, a parte mais pobre dos demandantes é colocada para fora. Você tem uma inflação de gasolina e outros derivados de petróleo e uma inflação de alimentos que também faz a mesma coisa, ou seja, coloca para fora do mercado os mais pobres, que estão, inclusive, sujeitos à fome. Pelo que averiguei, já em 37 países houve motins da fome, em que as pessoas se levantaram contra essa situação, porque não têm o que comer nem podem comprar alimentos básicos.

IHU On-Line – Por que não essa crise não foi controlada antes de chegarmos ao ponto atual?

Paul Singer – Boa pergunta! Em 1974, o Celso Furtado [1] escreveu um livro chamado O mito do desenvolvimento (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974), em que ele sustentava a tese de que era um mito imaginar que através do desenvolvimento econômico o mundo inteiro desfrutaria algum dia do padrão de consumo dos estadunidenses. Ele tinha certeza, assim como embasamento, para afirmar que tal fato não aconteceria nunca. E que, portanto, o desenvolvimento não se poderia gerar por falta de recursos naturais. Ele disse isso há 34 anos. Nessa época, eu li e achei que ele teve um ataque de malthusianismo [2]. Isso porque Malthus, há 200 anos, dizia que a Terra era finita, que os recursos naturais acabariam e que o aumento da população resultaria em fome etc., na medida em que estávamos indo para além da capacidade da Terra. A tese do Malthus foi várias vezes refutada porque houve diversos avanços científicos que permitiram a utilização de recursos naturais e que na época dele não existiam. Em 1974, nós acreditávamos que o Celso estava um pouco pessimista demais porque, na medida em que os recursos naturais se esgotavam, outros substitutos eram encontrados. Tipicamente, no lugar do petróleo que está acabando, nós desenvolveríamos biocombustíveis, energia eólica, energia solar, e assim por diante. Só que o Celso estava certo e nós errados, isto é, ele não estava sendo excessivamente pessimista. Chegou o momento em que a pressão da demanda está muito mais forte do que a capacidade do avanço científico de resolver, através de novas tecnologias, esses impasses.

IHU On-Line – O senhor afirma que as pessoas querem ter o padrão de vida das propagandas e que, se passarmos a consumir o que os estadunidenses consomem, vamos romper com os limites da natureza. O que podemos fazer, então, para conter essa crise?

Paul Singer – Quem está consumindo são os mais ricos. Os outros não estão podendo consumir. Se mais gente quiser comer derivados da carne, ela irá subir mais ainda e os que tiverem menos dinheiro irão ficar de fora. Não podemos cruzar os braços e ficar chorando. Em primeiro lugar, precisamos criar uma condição de usar, da melhor maneira possível, aquilo que temos. Existem alternativas para melhorar a produção agrícola. Nesse tempo todo, no entanto, não se investiu na agricultura da pequena propriedade, que é ecologicamente viável. Nós temos dois tipos de agricultura hoje no mundo: a industrial, aplicada pelas grandes empresas capitalistas, e a camponesa, que aplica uma tecnologia pré-industrial. A agricultura industrial é extremamente predatória com os recursos naturais, o que é um consenso científico. O uso intensivo de agrotóxicos envenena a terra, a atmosfera e a água dos lençóis freáticos e dos ricos. Enquanto isso, a agricultura camponesa é respeitosa, pois não estraga nada. Então, nós precisamos converter a agricultura numa agricultura camponesa, combinando os conhecimentos tradicionais dos camponeses com a ciência mais avançada. Nós precisamos aprender novamente a agricultura dos camponeses.

IHU On-Line – Então, a expansão da agricultura familiar pode ser uma forma de conter essa crise alimentícia?

Paul Singer – Exatamente.

IHU On-Line – A crise energética também?

Paul Singer – Não. Para a crise energética, teremos de encontrar outras soluções. Uma delas é reduzir drasticamente o número de automóveis em nossas cidades. Eles são poluentes, congestionantes e caóticos. Em São Paulo, houve um boom de automóveis. Estão vendendo, hoje, automóveis a prazo: você pode pagá-los em até oito anos. Obviamente, nenhum automóvel dura oito anos, pois, nesse meio tempo, ele desvaloriza. Enfim, é uma loucura. O fato concreto é que há uma crise de trânsito em São Paulo. A cidade não anda, tem congestionamentos o dia todo e até em lugares onde ninguém imagina existir. Há ainda a poluição que os automóveis causam, algo muito grave. Precisamos oferecer uma condução que seja mais racional e compatível com a natureza. Isso significa usar o metrô, a bicicleta.

Paris criou, por exemplo, ciclovias pela cidade inteira, tendo uma faixa exclusiva para bicicletas. Em muitas cidades da Europa, a municipalidade coloca bicicletas em pontos estratégicos, como nas estações de metrô. Então, você sai do metrô e aluga uma bicicleta por um preço muito barato e vai até onde precisa ir. Além de não ser poluente, do ponto de vista da saúde é muito bom também, pois é um exercício que as pessoas fazem. Para solucionar em parte a crise energética, precisamos reformular inteiramente o transporte urbano, tornando-o não poluente e não criando mais consumidores vorazes de combustíveis fósseis.

Por outro lado, é preciso criar, através de tributos e subsídios, um desestímulo ao consumo de carnes e derivados. É necessário torná-los mais caros ainda, e fazer com que as pessoas voltem a se alimentar de vegetais. Não há outra saída. Os governos precisam fazer isso para que os pobres possam comer. Não estou dizendo que devemos virar inteiramente vegetarianos – o que seria uma boa alternativa –, mas, pelo menos, não deveríamos comer carne todos os dias. Eu estou numa classe social em que como carne no jantar e no almoço. Isso não será mais possível. Acredito que, através de instrumentos tributários, junto com educação alimentar, a população possa ter uma dieta mais compatível com a disponibilidade de terra e sol que temos.

IHU On-Line – O senhor acredita que a população mundial que não sofre com a fome já tomou consciência da dimensão dessa crise e das conseqüências que ela nos trará?

Paul Singer – A população não precisa pensar. Se a carne estiver tão cara a ponto de a população não conseguir pagá-la, ela terá de achar um substituto e pode ser que a indústria encontre formas apetitosas de satisfazer a fome sem mais do que duplicar a produção de cereais. Segundo um estudo da ONU, para produzir um quilo de carne bovina, são usados sete quilos de cereais. Não dá para fazer mais. Nós precisamos reorganizar nosso consumo alimentar de maneira com que todos possam comer.

IHU On-Line – Alguns lugares estão sentindo o que é a crise dos alimentos pela elevação dos preços dos produtos. Mas o que fazer para conter a crise da fome?

Paul Singer – Eu gostaria que não houvesse fome para ninguém, o que é um direito fundamental. Deixar uma criança subnutrida é um crime. Para isso, o governo pode racionalizar os alimentos e distribuir de forma limitada para que todos, pelo menos, possam comer vegetais. E quem tiver dinheiro e quiser comer carne, tudo bem. Tudo isso precisa ser muito discutido, mas, de qualquer modo, a direção para qual devemos nos encaminhar é essa. Essa crise alimentar vem do fato de que os chineses comiam arroz e agora estão comendo manteiga, queijo, iogurte e carne. Só que eles são um terço da população. Pensemos nisso! Os hindus também passaram a comer carne, e os brasileiros aumentaram em 70% o seu consumo de carne. Há outros países implicados nisso também. É preciso que todos comam menos carne. No entanto, deve ser um gesto democrático. A ONU será o instrumento para sairmos dessa crise. Nós teremos de transformá-la num governo mundial.

IHU On-Line – Como a soberania alimentar pode contribuir para conter essa crise?

Paul Singer – A soberania alimentar é uma coisa boa no sentido de você não depender de preços internacionais e de alimentos que chegam do outro lado do mundo, mesmo porque isso é muito poluente. Hoje, o comércio internacional está exagerado, a globalização levou o comércio internacional a níveis desnecessários. Não tem sentido você importar da China brinquedos estofados e outras coisas. Os navios que trazem esses alimentos poluem muito, são grandes consumidores de derivados de petróleo e fazem piorar as mudanças climáticas. É preciso reduzir todo o comércio internacional e fazer apenas comércio internacional daquilo que não pode ser produzido localmente. Por razões de preço, importar montanhas de coisas é um absurdo. Isso, nesse mundo que está chegando ao limite ecológico, precisa ser feito. Os camponeses já perceberam isso há mais anos, o que já é uma reivindicação da economia solidária européia.

Notas:

[1] Celso Monteiro Furtado foi um importante economista brasileiro e um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Suas idéias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam a adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. Em 1946, ingressou no curso de doutoramento em economia da Universidade de Paris-Sorbonne, concluído em 1948, com uma tese sobre a economia brasileira no período colonial. Em 1949, mudou-se para Santiago do Chile, integrando a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas. Na década de 1950, Furtado presidiu o Grupo Misto CEPAL-BNDES, que elaborou um estudo sobre a economia brasileira que serviria de base para o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek. Participou da criação, em 1959, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Formação econômica do Brasil, a mais consagrada obra de Celso Furtado, foi escrita nesse ano. Em 1962, no governo João Goulart, foi nomeado o primeiro Ministro do Planejamento. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos. Com a Anistia, em 1979, retornou ao Brasil. De 1986 a 1988, foi o ministro da Cultura do governo José Sarney.

[2] Conhece-se como malthusianismo a doutrina de Thomas Robert Malthus (1766-1834), um sociólogo e economista inglês, que fundamentalmente defendia a necessidade de impor um limite à reprodução do ser humano por motivos de ordem econômica e em defesa da própria humanidade.

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