viomundo - publicado em 3 de setembro de 2013 às 0:31
por Conceição Lemes
O projeto Andar de Novo, liderado pelo
neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, está cada vez mais próximo
de atingir seu objetivo: permitir que um paraplégico possa se
movimentar, usando exoesqueleto robótico (prótese que envolve os órgãos
paralisados) conectado ao cérebro do paciente.
O seu grupo acabar de publicar na Proceedings of National Academy of Sciences — PNAS,
a revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA, um estudo que
demonstra que os neurônios das áreas do cérebro ligadas ao tato e ao
controle de movimentos também podem responder a estímulos visuais.
A PNAS dedica dez páginas ao trabalho coordenado por
Nicolelis, pesquisador e professor da Duke University (EUA) e
coordenador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal
(Brasil). O estudo foi feito em macacos Rhesus, o modelo experimental
mais próximo do homem.
“Havia dúvidas se as áreas do toque e motora faziam parte do circuito
cerebral que define a imagem que o cérebro cria do nosso próprio
corpo”, observa Nicolelis. “Nós comprovamos que sim. Pela primeira vez,
ficou demonstrado que córtex somestésico pode responder à visão e não
apenas ao toque. Essa descoberta vai totalmente contra tudo o que está
sacramentado nos livros-texto de neurociência, a de córtex táctil só
responderia ao tato, assim como o córtex motor só seria influenciado
pelos movimentos.”
Córtex cerebral é a área mais externa do cérebro. Somestésico significa sensibilidade somática.
“O córtex cerebral é como se fosse a rede de internet”, compara. “É
possível ter acesso a qualquer lugar dele a partir de qualquer ponto. E
como verificamos respostas visuais no córtex tátil e no córtex motor,
acreditamos que o esquema corporal possa ser construído em toda a
atividade do córtex, já que ele é extremamente dinâmico.”
Ou seja, além da descoberta científica básica que vai ser muito
impactante, pela primeira vez, um estudo demonstra que objetos
artificiais utilizados como se fossem ferramentas ou partes do corpo —
por exemplo, um braço virtual — são assimilados rapidamente pelos
neurônios dessas áreas como se eles fossem extensores do corpo real do
indivíduo.
“Os resultados indicam que todas as próteses que forem usadas em
conjunto com o cérebro vão ser assimiladas como extensões do corpo dos
pacientes”, vibra Nicolelis. “Eles confirmam a nossa suspeita de que
quando a gente terminar o nosso exoesqueleto e as pessoas o utilizarem
para andar de novo, com alguns dias de prática, esse aparelho robótico
vai ser assimilado pelo cérebro como se fosse o corpo delas.”
DA ILUSÃO DO BRAÇO DE BORRACHA AO EXPERIMENTO COM MACACOS
Investigações anteriores já haviam demonstrado que o cérebro tem uma
imagem espacial interna do corpo, que é continuamente atualizada com
base no toque, dor, temperatura e pressão — conhecido como o sistema
somestésico — recebido de pele, articulações e músculos, bem como da
análise visual e sinais auditivos.
Um exemplo deste processo dinâmico é a ilusão do “braço de borracha”,
um fenômeno em que as pessoas desenvolvem um senso de propriedade de um
braço falso quando o vê ser tocado ao mesmo tempo que algo toca o seu
próprio braço. É um estudo clássico.
A inspiração de Nicolelis para o estudo recém-publicado veio exatamente da ilusão do “braço de borracha”:
*Vamos supor que você está sentado (a) numa cadeira e oclui a visão do braço esquerdo com uma placa de madeira ou de cartolina.
* Você não consegue mais ver o seu braço esquerdo, mas ele está lá sem problema, muito bem obrigado.
*Depois, na sua frente, saindo do cotovelo, coloque um braço de manequim.
*Por três minutos cutuque a ponta do dedo do braço do manequim e a do
seu dedo, sem que veja. Pois bem: se, de repente, você parar de tocar o
seu braço de verdade, mas continuar tocando o de mentira, é grande a
probabilidade de achar que o falso braço é o seu braço de verdade. Isso
acontece com 90% das pessoas.
Essa é a ilusão que ficou conhecida por “braço de borracha”. Até aqui
ninguém sabia como isso acontecia, porque a única coisa que a pessoa vê
é o braço ser tocado.
O grupo de Nicolelis conseguiu demonstrar por quê. Só que, em vez de
usar o “braço de borracha”, utilizou o braço virtual de um avatar.
“A resposta do braço virtual começa cerca de 50 milisegundos mais
tarde do que começaria se eu estivesse tocando o braço do macaco”,
atenta Nicolelis. “Isso leva a crer que essas respostas são geradas pelo
córtex visual e remetidas para o córtex somestésico.”
O experimento, com dois macacos Rhesus, foi assim:
*Primeiro, os dois macacos observaram uma imagem numa tela de
computador de um braço de macaco sendo tocado por uma bola virtual. Ao
mesmo tempo, os braços dos macacos eram tocados, desencadeando uma
resposta nas suas áreas do córtex somestésico e motor.
*Os macacos observavam então uma bola tocar o braço virtual sem nada
tocar fisicamente os seus próprios braços. Os pesquisadores notaram que,
em questão de minutos, os neurônios dos macacos localizados nas áreas
corticais ligadas ao toque e aos movimentos começavam a responder ao
braço virtual ao só ser tocado.
*As respostas ao toque do braço virtual ocorreram de 50 a 70
milésimos de segundo mais tarde do que o contato físico. O que demonstra
que os neurônios das áreas do cérebro responsáveis pelo toque e
movimentos podem responder a estímulos visuais, sugerindo o cruzamento
de funções em todo o córtex dos primatas, através de um processo
altamente distribuída e dinâmico.
“Estes resultados suportam a nossa noção de que o cérebro funciona
como uma rede de internet, que está em constante interação”, reitera
Nicolelis. “As áreas corticais do cérebro processam simultaneamente
múltiplos fluxos de informação, em vez de serem estanques, dedicadas a
apenas uma habilidade, como se pensava anteriormente.”
Isso confirma a teoria de Nicolelis exposta no seu livro Muito além do nosso eu,
lançado em 2010: tudo o que usamos – carro, bola de tênis, óculos,
telefone, computador, por exemplo – é assimilado como parte de nós.
NICOLELIS JÁ TEM AUTORIZAÇÃO DA CONEP PARA TESTES COM SERES HUMANOS
Foram quase três anos de trabalho e mais um para o estudo ser
publicado. Ou seja, ciência não é linha de produção. É um processo de
longo prazo, que não se tem como se acelerar.
Nicolelis já está incorporando os resultados desta pesquisa no projeto Andar de novo,
trabalho de colaboração internacional que constrói um exoesqueleto
(neuroprótese) controlado pelo cérebro. O grupo vai equipá-lo com
sensores que permitirão mandar de volta para o paciente os sinais de
tato.
Primeira imagem do exoesqueleto robótico que está sendo construído
pela equipe internacional do projeto Andar de Novo . Imagem mostra os 5
módulos. Do Facebook de Nicolelis
O exoesqueleto conectado diretamente ao cérebro do paciente
permitiria que ele o controlasse como fosse parte do seu próprio corpo.
Dessa forma, seria possível que um paraplégico chutasse uma bola, como
pretende Nicolelis durante a cerimônia de abertura da Copa do Mundo, em
2014.
O exoesqueleto está sendo desenvolvido fora do Brasil.
Nicolelis já recebeu autorização da Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep), para realizar os testes com seres humanos no Brasil.
Isso acontecerá brevemente e será feito em parceria com a Associação de
Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo.
Participaram desse estudo publicado pela PNAS: Shokur Solaiman e
Hannes Bleuler da Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne, na Suíça;
Joseph E. O’Doherty, do Departamento de Engenharia Biomédica e do Centro
de Neuroengenharia da Universidade de Duke; Jesse Winans, do
Departamento de Engenharia Biomédica da Universidade de Duke, e Mikhail
A. Lebedev, do Centro de Neuroengenharia e do Departamento de
Neurobiologia da Universidade Duke.
Dois grandes trabalhos do grupo ainda sairão este ano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário