Folha de São Paulo – 20 nov 2013
ENTREVISTA - DAVID HARVEY
'Privatização de tudo' gerou protestos, que vão continuar
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULO
O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. No seu fracasso em realizar promessas de eficiência estão as raízes dos protestos que eclodem pelo mundo e no Brasil. Partidos convencionais, reféns do capital internacional, não conseguem canalizar a raiva das ruas. Não há ideias novas, e as manifestações vão continuar.
A análise é do geógrafo marxista britânico David Harvey, 78. Professor da Universidade da Cidade de Nova York, ele ataca os "oligarcas globais" e afirma que os bilionários foram os que mais ganharam com a crise.
Crítico de megaeventos como Copa e Olimpíada, ele diz que os governos são muito influenciados pelo capital financeiro: "Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos".
A partir de sexta Harvey irá a debates no Brasil sobre o lançamento de seu livro "Os Limites do Capital" e da coletânea "Cidades Rebeldes".
Folha - Qual sua avaliação sobre a situação mundial?
David Harvey - É muito mutante e volátil. Está tão perigosa quanto sempre foi. O que me surpreende é que não há novas ideias. As receitas propostas aprofundam o modelo neoliberal ou tentam desenvolver alguma forma de keynesianismo. Ambas opções me parecem muito frágeis.
O sr. disse à Folha em 2012 que a crise deveria aprofundar a concentração de capital e as desigualdades. Isso ocorreu?
Sim. Todos os dados mostram que o número de bilionários cresceu no mundo. Foi o grupo que melhor se saiu melhor na crise, enquanto todos os outros ou permaneceram estagnados ou perderam. O crescimento principal está sendo canalizado para o 1% mais rico da população mundial. É preciso haver uma redistribuição de renda globalmente e entre classes. O clube dos bilionários é que é o problema. Oligarcas globais controlam potencialmente ¾ da economia global. Meu ponto é: vamos para crescimento zero, sem canalizar o crescimento para eles e, ao mesmo tempo, devemos fazer uma redistribuição.
Nesse cenário haveria uma guerra, não?
Olhando para o que está acontecendo nas ruas se pode pensar que esse tipo de coisa não está tão longe assim.
Qual sua visão dos protestos pelo mundo? O sr. defendeu a criação de um "partido da indignação" para lutar contra o "partido de Wall Street". Como essa ideia evoluiu?
Os movimentos não estão indo muito bem. O poder político se moveu rapidamente para tentar reprimir os protestos. Há também muitas divisões entre os movimentos. Sobre o futuro, é muito difícil prever. A situação é muito volátil para os movimentos.
E sobre os protestos no Brasil?
Existe uma desilusão generalizada do processo político. As pessoas estão começando a discutir como modificar os piores aspectos da exploração capitalista. Há também uma alienação, que leva a alguma passividade, que é interrompida ocasionalmente por explosões de raiva. O nível de frustração por todo o mundo está muito alto agora. Não surpreende que essas manifestações ocorram. O problema é canalizar essa raiva para movimentos políticos que tenham um projeto. Prevejo mais explosões de raiva nos próximos anos --no Egito, na Suécia, no Brasil etc.
Há conexão entre esses movimentos?
Sim, cada um tem suas demandas específicas, mas há problemas de base provocados pela natureza autocrática do neoliberalismo, que virou um padrão para o comportamento político. Ele não é satisfatório para a massa da população e fracassou em entregar o que prometeu. Há uma crise na governança democrática e uma raiva contra as formas tomadas pelo capitalismo. No norte da África os protestos foram parcialmente sobre a alta nos preços da comida. Isso diz respeito ao poder do agronegócio e à especulação com as commodities, causas da alta dos preços.
No Brasil os protestos estouraram por causa da alta nas tarifas de ônibus. Como especialista em questões urbanas, como o sr. avalia o problema?
O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. Tudo vira objeto das forças do mercado. Dizem que essa é a forma mais eficiente de prover bens e serviços para uma população. Mas, na verdade, é uma maneira muito eficiente de um grupo da população reunir uma grande soma de riqueza às custas de outro grupo da população --sem entregar, de fato, bens e serviços (transporte, comida, casas etc.). Essa é uma das razões do descontentamento da população. Por isso, explodem manifestações de raiva em diferentes lugares e em diferentes direções políticas. Há uma situação de fundo que dá uma visão comum às batalhas, embora cada uma delas seja específica e diferente. No Brasil foi o custo do transporte. Em outros lugares é preço da comida, da habitação etc.
Em São Paulo há também a discussão sobre o aumento do imposto sobre propriedade urbana. Isso também evidencia uma luta social?
Vamos chamar de luta de classes. Ela está mais evidente, mas muitas pessoas não gostam de falar sobre isso.
Partidos tradicionais foram pegos de surpresa no Brasil. Mas os movimentos não têm organização própria. Como isso pode se transformar em forças políticas organizadas?
Se eu tivesse essa resposta, não estaria falando com você agora. Estaria lá fora fazendo. A situação agora reflete a alienação das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as coisas vão continuar.
O sr. concorda com a visão de que partidos de todos os matizes caminharam para a direita e que a esquerda se diluiu em ONGs e estruturas voláteis?
Há internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos movimentos do capital internacional. Os partidos políticos convencionais se tornaram reféns desse poder.
Isso acontece com o PT?
Isso é para o julgamento de seus leitores. Noto que há uma desilusão sobre o PT entre seus próprios integrantes.
O sr. está escrevendo um livro sobre as contradições do capitalismo. Qual é a principal?
Estão mais restritas as condições que o capital tem para crescer. É muito difícil achar novos lugares para ir e novas atividades produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que está buscando atividades lucrativas. Em consequência muito capital vai para atividades especulativas, patrimônio, compra de terras, commodities. Criam-se bolhas.
O sr. escreveu que é cada vez mais difícil encontrar o inimigo. Quem é o inimigo?
O inimigo é um processo, não uma pessoa. É um processo de circulação de capital que entra e sai de países. Quando decide entrar, há um "boom"; quando decide sair, há uma depressão. Por isso é necessário controlar esse processo de circulação. O Brasil tem possibilidades limitadas, porque o capital pode simplesmente desaparecer.
No início o Brasil parecia estar indo bem na crise. Agora estamos travados. O que deu errado?
Houve mudanças modestas no Brasil no sentido de redistribuir renda, como o Bolsa Família. Mas é necessário fazer muito mais. Muito dos gastos em enormes projetos de infraestrutura ligados à Copa do Mundo e à Olimpíada são uma perda de dinheiro e de recursos. As pessoas se perguntam por que o país está fazendo todos esses investimentos para a Fifa ter um grande lucro. Para o resto do mundo é surpreendente ver brasileiros se revoltando contra novos estádios de futebol.
Copa e Olimpíada não fazem bem para o país?
A Grécia está em dificuldades em parte por causa do que foi feito em razão da Olimpíada de Atenas. Muitas cidades olímpicas nos EUA entraram em dificuldades financeiras.
Como o sr. explica o poder da Fifa e do COI?
É como qualquer poder monopolista: extrai o máximo do que se tem a oferecer. Os governos são muito influenciados pelo capital financeiro. Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura, de urbanização. Envolvem também despossuir pessoas, removendo-as de suas residências para abrir espaço aos megaprojetos. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos.
Como o sr. analisa a situação política na America Latina?
Politicamente houve, na superfície, um tipo de política antineoliberal. Mas não houve nenhum verdadeiro grande desafio para o grande capital. Há discursos anti-FMI. Mas, de outro lado, o Brasil está ofertando a exploração de seu petróleo para empresas estrangeiras, por exemplo. Não é profunda a tentativa de ir realmente contra as fundações do capitalismo neoliberal. É uma política antiliberal só na superfície, na retórica. Mas há alguns elementos, como o Bolsa Família, que não fazem parte da lógica neoliberal. Mesmo a Venezuela não vai muito longe em realmente desafiar os interesses do capital.
Os EUA não perderam posições na região?
Os EUA estão mais fracos na América Latina, em parte porque o crescimento da região foi mais orientado para a o comércio com a China, que ampliou o seu papel imensamente. De muitas formas, a economia na América Latina é muito mais sensível ao que ocorre na economia chinesa do que na norte-americana.
OS LIMITES DO CAPITAL
AUTOR David Harvey
EDITORA Boitempo (2013)
QUANTO R$ 79 (592 págs.)
CIDADES REBELDES
AUTORES David Harvey, Ermínia Maricato, Mike Davis, Ruy Braga, Slavoj Zizek e outros
EDITORA Boitempo
QUANTO R$ 10 (112 págs.)
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