Revista do Idec – nov 2013
Percorremos diversos supermercados em busca de alimentos que não são o que parecem ser. E chegamos a uma lista de produtos que vai surpreender você
"O que é o que é: parece cachorro, tem focinho de cachorro, late como cachorro... Mas não é cachorro?". "Cachorra" é a resposta a essa manjada charada infantil. Sim, é quase irritante constatar a banalidade por trás da brincadeira. Mas é mais ou menos a mesma lógica que permeia a política de alguns fabricantes de alimentos e bebidas. Por meio de jogos de palavras, comunicação visual ambígua e posicionamento dos itens nas gôndolas dos supermercados, eles fazem seus produtos parecerem o que não são.
Também há os casos em que os alimentos são enxertados com ingredientes mais baratos (quase sempre de baixo valor nutricional), a fim de "engrossar o caldo" da receita e, claro, reduzir custos. "Quando nada disso é informado claramente, estamos diante de uma tentativa velada de ludibriar o consumidor", afirma Eduardo Vicente, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), vinculado ao governo do Estado de São Paulo.
Basta uma simples passada de olho nas miúdas letras da relação de ingredientes para a máscara dos alimentos impostores cair: azeite de soja, muçarela de búfala com leite de vaca, requeijão com amido...
O Idec foi às compras e escolheu os dez casos que mais chamaram a atenção de nossa equipe. O critério foi apenas um: a discrepância entre o que são de fato e o que aparentam ser. Não se trata de uma denúncia, já que nenhum dos itens escolhidos desrespeita a legislação vigente (talvez a legislação é que seja por demais permissiva). Critérios nutricionais tampouco balizaram esse levantamento – embora o consumo em excesso de praticamente todos os itens não seja aconselhável.
Confira a lista a seguir. É provável que você encontre outros casos na sua cesta de compras. Depois disso, talvez seja o caso de passar a ler com mais atenção as informações do rótulo.
X-sabor picanha
Pra começo de conversa, esses hambúrgueres congelados normalmente não são grande coisa. Não passam de um bolo de cortes de carne nada nobres (bovina e de frango), proteína de soja (e você que achava que não gostava de carne de soja...) e gordura, muita gordura. Agora, quando se pensava que a imaginação dos engenheiros de alimentos tinha limite, eis que vem ao mundo o inacreditável X-picanha congelado! É só deixá-lo por uns dois minutos no micro-ondas e, pronto, surge um "suculento" sanduíche feito com essa carne que exala brasilidade. Exala literalmente, pois de picanha só se sente no máximo o cheiro. Pelo menos é o que sugere a descrição da embalagem, impressa com comedido tamanho de fonte: "sanduíche de hambúrguer de carne bovina e de carne de frango sabor picanha e queijo processado sabor cheddar congelado" (sic). Leia novamente a frase e veja que "frango" e "sabor picanha" estão na mesma sentença. Um "tutti-frutti" versão carnívora!
Mostarda, pero no mucho
"Se está no inferno, abraça o capeta", diz a voz do povo. Pois então, quem se aventurar a degustar o tal X-picanha pode muito bem banhá-lo com mingau de mostarda (a terminologia oficial é "molho de mostarda"). É, amigos, aqueles potinhos amarelos podem esconder papas arenosas compostas de água, vinagre, açúcar, amido e apenas um pouquinho de sementes de mostarda.
"Tipo" calabresa
As ambiguidades que a língua pode proporcionar são uma bela fonte de inspiração a poetas, escritores e outros profissionais que fazem uso dela, como a turma do marketinge os redatores de regulamentos técnicos de produção de alimentos. Vejamos o caso de praticamente todas as marcas de calabresa defumada: suas embalagens vêm com a inscrição "tipo calabresa".
Ora, um mais incauto leitor provavelmente faria a seguinte interpretação: "se é 'do tipo' calabresa, é porque não é toscana, portuguesa, ou seja lá o que for. Portanto, a palavra 'tipo' está especificando o 'tipo' de linguiça". Bom, a bizarra lista de ingredientes das calabresas defumadas, no entanto, diz o seguinte: "carne suína, carne mecanicamente separada de aves (...), proteína de soja (...)". Bingo! A ambiguidade agora salta aos olhos: tipo assim, tipo calabresa é porque não é uma calabresa original; é como se fosse calabresa, saca?
Um regulamento técnico do Ministério da Agricultura prevê essa prática, desde que a denominação seja "tipo calabresa" (e não apenas "calabresa"). Mas e aí, você quer carne de porco, de aves, de soja ou tipo tudo junto e misturado?
Requeijão à base de amido
O mundo dos derivados de leite é um prato cheio para pegadinhas. Quase sempre tem algum caroço no angu. Analise, por exemplo, os rótulos de requeijão. Verá que os de algumas marcas são feitos não apenas com derivados de leite, mas também com derivados de vegetais, como amido e gordura vegetal. O problema é que os potes são muito parecidos e ficam todos reunidos na mesma seção do supermercado. Para identificar os picaretas, procure umas letras miúdas na parte da frente do rótulo que indicam a presença de amido e afins.
Muçarela de búfala ou de vaca?
As bolotas de queijo brancas e macias conquistaram o seu espaço no cenário gastronômico nacional. Acompanhadas de rúcula e tomate seco, formam uma bela salada. Só que nem sempre esse queijo em forma de ovo é feito com leite de búfala. Preste atenção na geladeira do supermercado: provavelmente você vai encontrar, no meio de legítimas muçarelas de búfala, embalagens de marcas que usam bastante leite de vaca. O teor pode chegar a 80%. A mesma atenção deve ser mantida em restaurantes e pizzarias. Aliás, na Itália, a receita original da mozarela é exclusivamente com leite de búfala. Foi cá em terras latinas que inventamos a muçarela amarelinha, com leite de vaca.
Soro com chocolate
Quando a fome aperta repentinamente, um bom leitinho gelado com chocolate vem bem a calhar. Mas os "leites" com chocolate vendidos já prontos (naquelas caixinhas longa vida) na verdade não são leites. São "bebidas lácteas". Não se trata de preciosismo linguístico, não. Em vez de leite em si, eles são uma mistura de soro de leite com leite em variadas formas (reconstituído e em pó, por exemplo). "Eles são nutricionalmente piores e não substituem o leite. Têm teor de cálcio menor, por exemplo", alerta Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec. Além disso, podem ter adição de água e até gordura vegetal. E você achando que só os combustíveis eram batizados...
Mel, mas não de abelha
Lá está o consumidor na frente da prateleira em que várias marcas de mel estão expostas. Até que algumas um pouco mais baratas despertam a sua atenção. Na correria, ele não hesita e, zupt, escolhe um dos potes de preço menor. No dia seguinte, feliz da vida por poder derramar o divino néctar de abelha sobre a sua torrada matinal, ele olha o rótulo da embalagem: "alimento à base de glicose" ou "melado de cana", e então descobre que levou gato por lebre. De acordo com a nutricionista do Idec, Ana Paula Bortoletto, o melado é o "menos pior", nesse caso. "O melado de cana tem alguns minerais e não é tão ruim quanto o alimento à base de glicose, que é ultraprocessado e contém muito açúcar. Mas também não é tão bom quanto o mel", diz.
Azeite quase sem azeitona
As imagens impressas nas embalagens revelam imensos campos de oliveiras e até uma rapariga portuguesa, que supostamente colhe azeitonas. As latas dos produtos se encontram nas gôndolas onde há diversas marcas do mais puro óleo de oliva. E os nomes dos produtos são bastante sugestivos: "Olívia", "Maria", "Salada"... Tudo nos leva a crer que estamos diante de, oras, azeites. Mas, calma, é bom ler melhor o rótulo: "óleo composto de soja e oliva". Pois é, o bom e velho azeite nem sempre é azeite: o ingrediente principal pode ser óleo de soja (entre 85 e 90%).
Para não azeitar sua salada com óleo de fritar batatas, fique atento. Atenção que também deve ser mantida em restaurantes. Não é incomum que alguns estabelecimentos reaproveitem frascos de azeite. Nada contra o uso sustentável da embalagem, muito pelo contrário. O que é inadmissível é entupir o vidro velho com óleo que não seja de azeitona.
Cerveja de milho
O Reinheitsgebot, a lei alemã da pureza das cervejas, de 1516, restringe os ingredientes da bebida a água, malte de cevada e lúpulo. Quase quinhentos anos já se passaram e estamos a milhares de quilômetros do país germânico, de modo que, hoje, a cevada não é o único ingrediente principal das cervejas brasileiras. Repare na lista de ingredientes das principais marcas daqui: lê-se claramente a expressão "cereais não maltados". O que os fabricantes não revelam é o nome específico desse cereal misterioso. Cientistas das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp) foram atrás dessa informação: um teste realizado no ano passado concluiu que quase todas as cervejas daqui têm teores de milho de quase 50%.
Usar outros cereais (que não a cevada) em cervejas é permitido por lei. A instrução normativa 54/01, do Ministério da Agricultura, prevê a adição de "adjuntos cervejeiros", desde que seu uso não passe de 45% em relação ao malte ou extrato de malte. O malte, vale dizer, é a cevada germinada artificialmente e, em seguida, seca. Especialistas na bebida costumam afirmar que as melhores cervejas são as feitas exclusivamente com malte de cevada. Mas gosto é gosto. O mínimo que poderíamos esperar, no entanto, é que os nomes e teores dos cereais fossem devidamente informados.
Iogurte aguado
Nem tudo o que está na gôndola de iogurte é iogurte: preste atenção e verá que tem muita "bebida láctea fermentada" no meio. Os iogurtes são mais consistentes; os "falsos iogurtes" são mais líquidos, pois, a exemplo do "leite" com chocolate de caixinha, têm soro de leite em sua composição. O Ministério da Agricultura exige que conste do rótulo a frase "bebida láctea não é iogurte". Mas você já viu essa frase?
Não é só em supermercado
Comer em restaurantes ou doçarias também exige atenção. Um caso que beira o folclore é o da "chuchureja", chuchu cortado em formato de cereja (o gosto do marasquino joga uma cortina de fumaça). Sob orientação do chef Cássio Prados, consultor de restaurantes, selecionamos outros casos clássicos de receitas feitas com ingredientes alternativos (para não dizer mais baratos):
• Sashimi: muitas vezes o tradicional salmão é substituído por truta. Para que elas fiquem rosadas, são alimentadas com ração aditivada com corante. Surge então a truta salmonada.
• Tiramisù: o doce italiano deve ser feito com queijo mascarpone. Aqui no Brasil, no entanto, é comum se utilizar catupiry. "A maioria não conhece bem o doce, então é fácil fazer essa mudança", diz Prados.
• Crème brûlée: sobremesa francesa que consiste em um "creme queimado". Creme de leite, diga-se. Só que tem gente que coloca amido de milho na fórmula.
• Pesto genovês: o famoso molho é feito com manjericão triturado e pinhole, semente de um tipo de pinheiro da região do Mediterrâneo. Aqui no Brasil, no entanto, essa semente comumente dá lugar a nozes ou castanha de caju.
Nenhum comentário:
Postar um comentário