O baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que em 2006 foi de 2,9%, sintetiza a fragilidade da política econômica doméstica levada a cabo nos últimos anos. As razões para o fraco desempenho são muitas, a começar da falta de instrumentos de planejamento nas áreas de infra-estrutura e industrial, passando pela condução da política macroeconômica – cujo eixo é a sobredosagem dos juros e o uso indiscriminado da taxa de câmbio para manter a inflação sob controle –, para culminar com a supremacia das finanças sobre a produção. Até os ganhos obtidos na área social – programas distributivos e aumento da renda, do salário mínimo e do nível do emprego – correm risco de virar poeira caso o país não decole, em razão da mordida cada vez maior em fatias do Orçamento. E a despeito da conjuntura internacional favorável, cuja duração é uma incógnita, o país continuou a reboque de solavancos. A reportagem é do Jornal da Unicamp, 19 a 25 de março de 2007.
A avaliação é do economista Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp (IE). O docente e seus colegas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/IE) já vinham fazendo análises sistemáticas que foram difundidas em sete edições do boletim eletrônico Política Econômica em Foco, produzido desde 2003. A síntese desses estudos acaba de ser exposta no livro A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula (Editora Unesp/Fapesp), talvez a mais aprofundada investigação dos quatros anos da primeira gestão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Organizada por Carneiro, a obra reúne uma introdução e dez capítulos – escritos por 11 docentes do IE – divididos em três grandes blocos: contexto internacional, estabilidades e políticas macroeconômicas, e crescimento econômico e políticas de desenvolvimento.
“O livro não faz profecias, mas aponta os desequilíbrios e anuncia esses ajustes que vêm ocorrendo no campo internacional”, observa Carneiro em entrevista concedida ao Jornal da Unicamp. Nesta entrevista, o intelectual analisa os descompassos e assimetrias da política econômica brasileira. “A sustentabilidade do modelo adotado é muito questionável”.
Eis a entrevista.
Quais são as principais conclusões do livro?
As conclusões não são nada otimistas. Analisando o governo Lula, constatamos que foram registrados ganhos em algumas áreas. Ocorre que esses ganhos ficaram aquém do que poderia ter sido feito ao longo do governo. Mais do que isto: eles foram de fato resultantes, na área econômica, de uma conjuntura internacional muito favorável. Se essa conjuntura mudar, uma grande parte desses ganhos será revertida.
Por exemplo, foram registrados ganhos na área externa. As exportações cresceram muito rapidamente. Isso possibilitou que esse momento fosse aproveitado, sobretudo pelo setor público, para pagar parte da dívida. Houve, portanto, uma melhoria da chamada vulnerabilidade externa. Mas, ao mesmo tempo, a sustentabilidade desses ganhos é muito questionável diante de uma reversão do cenário internacional.
Por quais motivos?
Por duas razões. Primeiro, porque o crescimento das exportações foi muito fundado em commodities primárias e industriais. Trata-se, portanto, de uma composição de comércio muito ruim. Ela é, por exemplo, muito mais sensível aos ciclos internacionais que a composição baseada em manufaturados de média e alta tecnologias. Desse ponto de vista, o fato de a taxa de câmbio ter se valorizado é péssimo, pois impede que avancemos no sentido de um comércio exterior de melhor qualidade.
A segunda razão deve-se ao fato de que, embora seja verdade que o governo tenha quitado parte da dívida, o país abriu ainda mais a sua economia na área financeira. O Brasil recebeu, sobretudo em 2005 e 2006, uma avalanche de capitais de curto prazo. Abriu-se o mercado de dívidas públicas para estrangeiros e a Bolsa recebeu muito capital especulativo.
Isto certamente será testado nos ajustes que serão feitos neste ano e em 2008. Na verdade, os economistas não têm capacidade de fazer previsão. Na minha opinião, sairemos um pouco chamuscados desse teste. Se o país se sair bem nesse ajuste internacional, que é quase inevitável, a vulnerabilidade externa pode ter sido superada. Do contrário, veremos até onde vai essa fragilidade.
E os demais ganhos?
Registraram-se ganhos também nas áreas de distribuição de renda e emprego. Neste último caso, em razão da economia voltar a crescer comandada pelas exportações. São setores mais formalizados, grandes empresas etc. Por outro lado, num primeiro momento do governo, as importações cresceram muito pouco. O câmbio era favorável à produção doméstica. Mas, já no final, registrou-se uma desaceleração do emprego, a ponto de motivar um pronunciamento do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, quanto à posição da taxa de câmbio. Ele vê claramente que isto já está tirando emprego no âmbito doméstico.
Ou seja, houve uma performance boa do emprego, mas ela não é sustentável. Na distribuição de renda, registramos ganhos importantes mas eles estão vinculados sobretudo à desaceleração muito forte da inflação. De novo, a taxa de câmbio teve um peso importante na queda da inflação. É claro que isto é, de certa forma, artificial. A pergunta é: quanto tempo vai durar?
Houve também a implantação dos programas distributivos. Eles foram importantes – o aumento do salário mínimo, a questão do bolsa-família etc. O aumento do salário mínimo sobretudo foi central, já que ele é o indexador da política social. Tudo é referenciado a ele. Qual o problema? Trata-se de uma política necessária, importante que seja feita, mas que só é sustentável se houver crescimento econômico.
Onde está a assimetria?
Vai haver um comprometimento cada vez maior do Orçamento com essas políticas. É despejada uma conta vez maior na política social. Desse ponto de vista, portanto, ela também não é sustentável.
O país registrou, de novo, um baixo crescimento do PIB. A que o senhor atribui este quadro?
Esse indicador sintetiza a fragilidade do processo como um todo. O país cresceu nesses quatro anos de governo Lula mais ou menos o equivalente o que cresceu a Europa, região claramente conhecida por seu baixo dinamismo. O Brasil cresceu muito abaixo dos Estados Unidos, um terço do que cresceu a China, metade do conjunto dos emergentes e metade da América Latina.
Não é possível que o crescimento internacional tenha estimulado o conjunto das economias – mais ainda as economias emergentes –, e não tenha estimulado o Brasil... É claro que estimulou. O elemento complicador foi a política macroeconômica posta em prática desde o governo Fernando Henrique – juros altos, câmbio valorizado. Este é, pelo menos, um dos fatores cruciais.
Não faltaram comparações entre o desempenho do governo Lula e de FHC. Faz sentido esse tipo de análise, quando se sabe que esse crescimento é baixo há pelo menos duas décadas?
A colocação é pertinente. Na verdade, esse problema já vem do governo Collor. Desde o início dos anos 1990, o Brasil optou, por uma forma incorreta de integração à economia globalizada. Houve uma articulação com o que há de menos dinâmico, que é o canal da articulação financeira. São capitais que não trazem investimento nem tecnologia. Trata-se de um padrão distinto do padrão asiático, que investe mais no produtivo e na inovação tecnológica.
Por que a adesão a esse modelo?
O pressuposto é o de que existe uma nova realidade na economia globalizada. É verdade. Vamos, portanto, nos integrar... Tudo bem, também é necessário. Ocorre que, esquematicamente, são dois os padrões de integração. Um comandado por políticas que vão integrar os países da melhor forma. A outra é aquela comandada pelo mercado, que foi a escolha feita por nós desde o governo Collor e acentuada na era FHC. Foi isto que gerou o baixo dinamismo, que persiste no governo Lula.
Em que medida essa integração é nociva?
Existe uma questão subjacente, que não foi explicitada no livro. Quando se trata a questão do desenvolvimento do ponto de vista produtivo, são duas as grandes vertentes na economia. Existe a teoria cepalina, que é a nossa tradição no Instituto de Economia e está enraizada em outras escolas do pensamento mais avançadas. Essa teoria prega que o processo de crescimento é um processo de diversificação, em direção à fronteira tecnológica.
A outra teoria diz que é preciso se especializar naquilo que você faz atualmente de melhor. Foi este o caso brasileiro – a aposta em commodities, agronegócios, indústrias intensivas em trabalho e recursos naturais etc. Neste caso, a taxa de crescimento é mais baixa e há menos dinamismo tecnológico. Ocorre que você só faz a diferenciação da estrutura produtiva com políticas ativas. Não existem casos de países que conseguem ir em direção a fronteiras tecnológicas comandados pelo mercado. Não há registro disso na história econômica.
É por isso que essa idéia da supremacia dos mercados está embutida também na noção de que não foram feitas as políticas que deveriam ser executadas.
Apesar dos ganhos nos superávits comerciais, dívida pública em queda, inflação sob controle e da conjuntura internacional favorável, nossa expansão ficou na metade da média mundial. Por quê?
São dois determinantes. Como disse, o primeiro é o perfil da política macroeconômica, mais especificamente as políticas de juros e de câmbio. Essa política foi conduzida de uma forma equivocada, no Brasil, nos últimos quatro anos. Tivemos uma sobredosagem, com excesso de juros e com a utilização deliberada da taxa de câmbio para baixar a inflação. Isto tira pontos de crescimento da economia. O outro se deve ao fato de que não foram implementados os instrumentos para uma política de longo prazo.
O senhor poderia dar exemplos?
O governo anunciou uma política industrial, mas quando ela é comparada com a que foi colocada em prática na China, na Índia e em outros países asiáticos, constata-se que a nossa foi um arremedo, aliás ela sequer existiu durante a era FHC. Na verdade, não dá sequer para chamá-la de política industrial. Política industrial pressupõe a defesa de setores nascentes da economia.
Não tivemos, também, uma política de infra-estrutura. Isto é fundamental. A partir da qualidade da infra-estrutura, cria-se uma competitividade sistêmica. Exceto nas telecomunicações, o governo não conseguiu equacionar o problema da infra-estrutura. É absolutamente crucial. Em resumo: de um lado, uma política econômica desfavorável e, de outro, a falta de instrumentos para a infra-estrutura e de uma política industrial. Não é à-toa que a economia cresceu pouco.
O crescimento foi, em certa medida, atribuído ao mercado interno – consumo das famílias e investimentos do setor produtivo e da construção civil. Por outro lado, a participação do setor externo foi inexpressiva. Por que isso aconteceu?
Isto ocorreu, mas em 2006. Houve uma mudança. Até 2005, o impulso era claramente advindo das exportações. Entretanto, as importações cresceram demais e anularam esse impulso. Com o impulso, houve um deslocamento do investimento, sobretudo da área de exportações. Houve também um crescimento da renda e sobretudo do crédito, que move o consumo. Esse crescimento de 2006, portanto, é derivado daquele impulso inicial.
Números revelam que a carga tributária bateu um novo recorde no ano passado. Em que medida essa sobrecarga fiscal é nociva para o crescimento do país. O que precisa ser feito para mudar este quadro?
É muito parcial essa abordagem de que a carga tributária é nociva. Em tese, se você tiver uma carga tributária neutra, se ela não distorcer os preços relativos da economia, não há maiores implicações, pois o que o governo faz é tirar de um lado e gastar de outro. Agora, se a carga tributária distorcer os preços, pode criar falsos sinais para decisão de investimentos.
Não há estudos conclusivos sobre isto no Brasil. Agora, o que há de inadequado na questão é a composição de gasto. Esta, sim, é desfavorável ao crescimento.
Qual o problema dessa composição?
O governo tira com uma mão e dá com a outra. Vamos fazer o pressuposto de que, quando se tira, não está desestimulando demais um setor. Há provas disso. A lucratividade das empresas no Brasil, por exemplo, continua muito alta, apesar da carga tributária. Isto é central, porque demonstra que não está sendo afetada a capacidade de investimento das empresas.
O problema está na forma como o governo gasta. Há, por exemplo, um peso muito grande dos juros, que são transferidos para pessoas de classe alta, que provavelmente vão poupar ainda mais, diminuindo o consumo e gerando mais concentração de renda. Depois, registra-se também uma participação muito grande com gasto corrente e uma percentagem muito pequena com investimento público.
O investimento do governo no Brasil soma 2,5% do PIB. Para se ter uma idéia, o Chile, considerado o paradigma liberal na América Latina, gasta quase o triplo com investimento público, ou seja, 7% do PIB. Este é o desequilíbrio central: muito juro, muito gasto corrente e pouco investimento. É justamente essa assimetria que precisa ser corrigida num primeiro momento. Depois, é necessário consertar a carga tributária tornando-a menos regressiva.
Numa economia como a brasileira, qual seria na sua opinião o papel do Estado?
Teria de cumprir uma função dupla. Precisa ser um instrumento de redistribuição da renda. Isto é fundamental numa sociedade desigual como a brasileira. A outra função, tão importante quanto, é a de sustentação do crescimento, que se dá por meio de investimentos e incentivos públicos em áreas estratégicas. Não dá para defender o papel do Estado apenas na área social.
E a redução dos juros? Qual o seu peso na reversão do quadro de estagnação?
Na verdade, entra aí a questão da política macroeconômica. A redução dos juros e a taxa de câmbio num patamar melhor são condições necessárias para um crescimento maior da economia. Não diria que são necessárias e suficientes. Se o governo não fizer isso, não há crescimento adequado. Não existe na história a experiência de algum país que tenha crescido com esse patamar de juro e com essa taxa de câmbio. Pode até crescer, mas durante dois ou três anos. É como se tivesse fazendo um trabalho de Sísifo. Não adianta, não vai crescer muito.
Quando existe essa chamada configuração de preços macroeconômicos, se estimula a aplicação financeira em detrimento do investimento produtivo; o câmbio valorizado demais faz com que os estrangeiros e até nacionais decidam investir em outro país e não aqui.
É aí que a supremacia dos mercados dá as cartas?
Sem dúvida. E há razões para que isso ocorra. A supremacia dos mercados pode ser entendida também como a supremacia das finanças sobre a produção. A remuneração da riqueza financeira são os juros. Há então um excesso de contemplação dos interesses das finanças nesse tipo de capitalismo brasileiro. Isto precisa ser corrigido. A idéia era a de que Lula iria corrigir, mas seu governo está tendo grande dificuldade em mudar esse estado de coisas. Até agora, não conseguiu. É claro que tudo isso é feito sob o pretexto de se combater a inflação. Em primeiro lugar, mesmo sob esse pretexto, essa política me parece excessiva. Em segundo lugar, tornar-se imperioso avaliar os custos dessa opção.
O senhor acredita que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode impulsionar o crescimento? Que avaliação o senhor faz do programa?
Como idéia, vejo que o programa tem o mesmo estatuto da política industrial que o governo pôs em prática. Identifica, até, questões corretas, tanto como a política industrial identificou setores estratégicos que precisam ser modificados. O PAC também identifica setores de infra-estrutura, sobretudo da energia elétrica, que são estratégicos para o crescimento econômico. Qual o problema? É que, concretamente, o PAC não define como vai financiar esses investimentos.
Há uma parte que será financiada pela redução do superávit primário, o equivalente a 0,5% do PIB. Entretanto, os investimentos públicos propostos no PAC aumentam em 2% do PIB. Fica uma pergunta: de onde vem o 1,5% do PIB? Em tese, viria das empresas estatais. Acontece que a forma de contabilização do superávit primário não permite que esses recursos venham das estatais. Em resumo: o PAC é positivo, identifica problemas mas não tem soluções práticas, reais, efetivas.
Para torná-lo um programa efetivo, seria preciso mudar o estatuto da empresa pública. Teria que tirar a empresa pública da contabilidade do superávit primário, possibilidade hoje discutida no âmbito do Fundo Monetário Internacional. O FMI já aceita, dependendo da empresa – tanto que a Petrobras está fora. O próprio Fundo reconhece que a forma pela qual foi montado o critério de apuração do superávit afetou o investimento das empresas públicas e dos países da América latina.
Na introdução do livro, o senhor escreve sobre o fato de a economia norte-americana figurar no epicentro de vários ciclos econômicos recentes. Os indicadores da economia dos EUA vêm mostrando que algo está mudando. Prova disso foi o abalo causado recentemente pela divulgação da queda de 7,8% no indicador de pedidos de bens duráveis. Alan Greenspan, por sua vez, disse que o ciclo de expansão está chegando ao fim, com fortes sinais de recessão à vista. Trata-se de um fato isolado ou prenúncio de algo novo no horizonte?
Precisamos entender que, de fato, a economia norte-americana é e continuará sendo o centro da economia mundial. Mas trata-se de uma economia que tem particularidades. Uma delas é a de que cresce com déficits externos permanentes, o que só é possível porque ela emite a moeda do mundo, se não ela não faria isso há 20 anos.
Qual o resultado mais visível dessa política?
Tem feito, na verdade, com que a economia americana consuma bastante e que este consumo se transmita como impulso para o resto do mundo, sobretudo com esse elo asiático, que exporta muito. Entretanto, essa economia tem problemas. Esses indicadores mencionados por você são mais de superfície. Por se tratar de uma economia muito avançada do ponto de vista financeiro, ela se move de uma forma muito particular. Traduzindo: nos Estados Unidos, as pessoas não consomem porque sua renda aumentou ou vai aumentar. Elas consomem porque a sua riqueza aumentou. As pessoas se endividam e gastam. Pode-se argumentar que a dívida cresce, mas acontece que o patrimônio também cresceu. E é isso que importa.
Existem vários episódios de crescimento da riqueza nos Estados Unidos. O mais recente é a bolha imobiliária. Entretanto, esses processos de bolha têm uma trajetória. Chegam a um pico de valorização e aí ocorre uma desaceleração. Há indicações – e este é o problema central – de que essa bolha começou a desinflar. Ou seja, os preços dos imóveis começaram a cair. Se isto se confirmar, a trajetória será a seguinte: diminui a riqueza das pessoas e elas passam a gastar menos. Como a economia americana é central, isso se transmite em cadeia para o resto do mundo.
Temores de que a economia chinesa esteja passando por um período de desaceleração e boatos dando conta que o país asiático vai impor restrições para conter fraudes bastaram para derrubar as Bolsas no mundo todo. Em seguida, Pequim anunciou medidas para conter o crescimento. Alguns analistas chamaram a turbulência de “soluço temporário”. Mero ajuste da bolha acionária, correção de rota, crise passageira ou sinal de que algo está ocorrendo?
A China investiu muito nesse ciclo de crescimento. O país passou a conviver com problemas sérios de ociosidade em vários setores. Em razão disso, o Congresso do PC chinês decidiu desacelerar o crescimento. Trata-se de uma queda de um terço do crescimento da China. E essa cadeia, desacelerando a China e os Estados Unidos, vai também desacelerar a demanda para nós. O Brasil certamente será afetado.
No caso norte-americano, há uma certa dúvida – será que a bolha vai desinflar? No caso da China, não há dúvida – já está decidido que o crescimento será desacelerado. Os chineses têm um controle maior sobre a economia. Assistiremos, então, a uma desaceleração dessa economia.
Com esse quadro, essa centralidade da economia norte-americana persistirá ou tende a se pulverizar?
Não acredito. A hegemonia americana é construída em torno de várias determinações, inclusive a político-militar. Não me parece que isto esteja ameaçado. É claro que, se essa economia entrar numa crise que dure bastante tempo, pode haver um questionamento. Nunca se sabe quais são os desdobramentos. Digo isto porque, no final dos anos 1970, registrou-se uma certa crise da hegemonia americana. Essa hegemonia foi contestada e os EUA terminaram por reafirmá-la, aumentado seu poderio do ponto de vista global, apesar de uma década de crise. Os processos históricos são imprevisíveis. Não há hoje, no mundo, nenhuma potência não só econômica como político-militar, que possa se opor aos Estados Unidos.
Essa turbulência é um sinal de que não é tão sólida a ponte construída pelos EUA com o mercado asiático?
Acho ela muito sólida. Boa parte da indústria americana e até de países avançados – do Japão também – hoje está na China e na Ásia em desenvolvimento. Existe de fato uma articulação produtiva muito grande. Não vejo ameaça. Agora, acho que o que será corrigido nesse processo são alguns excessos. Quando a China decide, por exemplo, como agora, que corrigirá a trajetória de seu crescimento, o governo está dizendo o seguinte: nós investimos demais, criamos uma capacidade excessiva. Isto ficará ainda mais evidente com a desaceleração da economia americana.
Ademais, para exportar esse excesso de produção, os chineses criariam um conflito comercial com o mundo todo. É bom lembrar, por exemplo, que os chineses já fazem superávit comercial com a América Latina. Por outro lado, parte expressiva da população chinesa tem um nível de renda muito baixo, não pode absorver essa produção. Dessa maneira, é melhor ajustar a trajetória.
Se a economia americana fosse planejada como a economia chinesa, até poderia prever um processo de desaceleração suave. Ocorre que ninguém sabe o que vai acontecer com os Estados Unidos, que, para mim, continuam a ser o epicentro da economia mundial.
O Brasil pagou recentemente um alto preço em situações de turbulência global. Aparentemente, nesses últimos episódios, apesar do risco-país ter subido 10% imediatamente após a queda da Bolsa de Xangai, o país escapou ileso. O senhor acha que os fundamentos da economia brasileira são suficientemente sólidos para resistir a novas situações de volatilidade?
Não existe uma resposta exata. Não se pode ter o grau de exatidão de que às vezes gostaríamos. Por quê? Estamos hoje melhores do que no passado? Estamos. Mas boa parte dessa melhora se deve ao fato que o cenário melhorou bastante. A resposta à sua pergunta depende de outra indagação-suposição – qual será o grau de deterioração do cenário internacional? Se a deterioração for suave, provavelmente o país responderá de uma maneira melhor que nas crises anteriores. Se a crise for mais intensa, o país responderá de uma forma ainda muito negativa.
A resposta é condicional. Se for apenas um ajuste de rota, do tipo China não cresce 10%, mas 7%, os capitais dos países emergentes não vão fluir nessa magnitude, mas vão continuar fluindo. Os preços das commodities não vão continuar nesse patamar, mas cairão 10% ou 20%. Se o ajuste for dessa natureza, nós reagiremos melhor. Mas eu não tenho certeza que será assim.
E se não for?
Se não for, continuaremos mal. Entram aí as questões estruturais. Não temos, por exemplo, a estrutura produtiva da Ásia. O que acontece quando se exporta commodities? Quando muda a situação internacional, os países que exportam manufaturados perdem mercado, ou seja, quantidade. Já quando se exporta commodities, perde-se em quantidade e, também, em preço. Esse é um exemplo emblemático da nossa fragilidade comercial.
Pelo lado financeiro, há também uma saída mais abrupta de capitais por conta da qualidade dos investimentos recebidos por nós, em parte, especulativos. A resistência se mede também pelo volume de reservas: se o Brasil tem US$ 100 bilhões para enfrentar isso, a China tem US$ 1 trilhão.
Existe uma hierarquia. No topo dela, com capacidade de resistência muito forte, estão a China, a Coréia do Sul, Taiwan etc. Mais resistente, mas lá embaixo na hierarquia, estão o Brasil, a Argentina, os emergentes da América Latina. Nós não somos os piores, mas estamos muito longe dos melhores.
O Brasil sobe a ladeira sob a supremacia dos mercados?
Acho que não. Aí vale a experiência histórica. O Brasil optou, desde os anos 1990, pelas privatizações excessivas, apostou na retirada do peso do Estado em determinadas políticas. Vejo que esse processo deu errado, e não vejo a mínima possibilidade de dar certo. De resto, a experiência exitosa é outra. O que diferencia os países asiáticos dos latino-americanos? É o grau de elaboração de profundidade das suas políticas nas áreas financeira, comercial, produtiva etc. Eles planejaram a sua integração; nós, da América Latina, não.
A razão disso é que, quando se iniciou para valer a integração da periferia, nos anos 1990, os Estados nacionais dos países latino-americanos estavam muito debilitados em razão de uma década de crise da dívida externa. Foram aceitas todas as imposições, tanto dos Estados Unidos como dos organismos internacionais, no sentido de liberalizar sem critério as respectivas economias. Deu no que deu.
A avaliação é do economista Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp (IE). O docente e seus colegas do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/IE) já vinham fazendo análises sistemáticas que foram difundidas em sete edições do boletim eletrônico Política Econômica em Foco, produzido desde 2003. A síntese desses estudos acaba de ser exposta no livro A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula (Editora Unesp/Fapesp), talvez a mais aprofundada investigação dos quatros anos da primeira gestão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Organizada por Carneiro, a obra reúne uma introdução e dez capítulos – escritos por 11 docentes do IE – divididos em três grandes blocos: contexto internacional, estabilidades e políticas macroeconômicas, e crescimento econômico e políticas de desenvolvimento.
“O livro não faz profecias, mas aponta os desequilíbrios e anuncia esses ajustes que vêm ocorrendo no campo internacional”, observa Carneiro em entrevista concedida ao Jornal da Unicamp. Nesta entrevista, o intelectual analisa os descompassos e assimetrias da política econômica brasileira. “A sustentabilidade do modelo adotado é muito questionável”.
Eis a entrevista.
Quais são as principais conclusões do livro?
As conclusões não são nada otimistas. Analisando o governo Lula, constatamos que foram registrados ganhos em algumas áreas. Ocorre que esses ganhos ficaram aquém do que poderia ter sido feito ao longo do governo. Mais do que isto: eles foram de fato resultantes, na área econômica, de uma conjuntura internacional muito favorável. Se essa conjuntura mudar, uma grande parte desses ganhos será revertida.
Por exemplo, foram registrados ganhos na área externa. As exportações cresceram muito rapidamente. Isso possibilitou que esse momento fosse aproveitado, sobretudo pelo setor público, para pagar parte da dívida. Houve, portanto, uma melhoria da chamada vulnerabilidade externa. Mas, ao mesmo tempo, a sustentabilidade desses ganhos é muito questionável diante de uma reversão do cenário internacional.
Por quais motivos?
Por duas razões. Primeiro, porque o crescimento das exportações foi muito fundado em commodities primárias e industriais. Trata-se, portanto, de uma composição de comércio muito ruim. Ela é, por exemplo, muito mais sensível aos ciclos internacionais que a composição baseada em manufaturados de média e alta tecnologias. Desse ponto de vista, o fato de a taxa de câmbio ter se valorizado é péssimo, pois impede que avancemos no sentido de um comércio exterior de melhor qualidade.
A segunda razão deve-se ao fato de que, embora seja verdade que o governo tenha quitado parte da dívida, o país abriu ainda mais a sua economia na área financeira. O Brasil recebeu, sobretudo em 2005 e 2006, uma avalanche de capitais de curto prazo. Abriu-se o mercado de dívidas públicas para estrangeiros e a Bolsa recebeu muito capital especulativo.
Isto certamente será testado nos ajustes que serão feitos neste ano e em 2008. Na verdade, os economistas não têm capacidade de fazer previsão. Na minha opinião, sairemos um pouco chamuscados desse teste. Se o país se sair bem nesse ajuste internacional, que é quase inevitável, a vulnerabilidade externa pode ter sido superada. Do contrário, veremos até onde vai essa fragilidade.
E os demais ganhos?
Registraram-se ganhos também nas áreas de distribuição de renda e emprego. Neste último caso, em razão da economia voltar a crescer comandada pelas exportações. São setores mais formalizados, grandes empresas etc. Por outro lado, num primeiro momento do governo, as importações cresceram muito pouco. O câmbio era favorável à produção doméstica. Mas, já no final, registrou-se uma desaceleração do emprego, a ponto de motivar um pronunciamento do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, quanto à posição da taxa de câmbio. Ele vê claramente que isto já está tirando emprego no âmbito doméstico.
Ou seja, houve uma performance boa do emprego, mas ela não é sustentável. Na distribuição de renda, registramos ganhos importantes mas eles estão vinculados sobretudo à desaceleração muito forte da inflação. De novo, a taxa de câmbio teve um peso importante na queda da inflação. É claro que isto é, de certa forma, artificial. A pergunta é: quanto tempo vai durar?
Houve também a implantação dos programas distributivos. Eles foram importantes – o aumento do salário mínimo, a questão do bolsa-família etc. O aumento do salário mínimo sobretudo foi central, já que ele é o indexador da política social. Tudo é referenciado a ele. Qual o problema? Trata-se de uma política necessária, importante que seja feita, mas que só é sustentável se houver crescimento econômico.
Onde está a assimetria?
Vai haver um comprometimento cada vez maior do Orçamento com essas políticas. É despejada uma conta vez maior na política social. Desse ponto de vista, portanto, ela também não é sustentável.
O país registrou, de novo, um baixo crescimento do PIB. A que o senhor atribui este quadro?
Esse indicador sintetiza a fragilidade do processo como um todo. O país cresceu nesses quatro anos de governo Lula mais ou menos o equivalente o que cresceu a Europa, região claramente conhecida por seu baixo dinamismo. O Brasil cresceu muito abaixo dos Estados Unidos, um terço do que cresceu a China, metade do conjunto dos emergentes e metade da América Latina.
Não é possível que o crescimento internacional tenha estimulado o conjunto das economias – mais ainda as economias emergentes –, e não tenha estimulado o Brasil... É claro que estimulou. O elemento complicador foi a política macroeconômica posta em prática desde o governo Fernando Henrique – juros altos, câmbio valorizado. Este é, pelo menos, um dos fatores cruciais.
Não faltaram comparações entre o desempenho do governo Lula e de FHC. Faz sentido esse tipo de análise, quando se sabe que esse crescimento é baixo há pelo menos duas décadas?
A colocação é pertinente. Na verdade, esse problema já vem do governo Collor. Desde o início dos anos 1990, o Brasil optou, por uma forma incorreta de integração à economia globalizada. Houve uma articulação com o que há de menos dinâmico, que é o canal da articulação financeira. São capitais que não trazem investimento nem tecnologia. Trata-se de um padrão distinto do padrão asiático, que investe mais no produtivo e na inovação tecnológica.
Por que a adesão a esse modelo?
O pressuposto é o de que existe uma nova realidade na economia globalizada. É verdade. Vamos, portanto, nos integrar... Tudo bem, também é necessário. Ocorre que, esquematicamente, são dois os padrões de integração. Um comandado por políticas que vão integrar os países da melhor forma. A outra é aquela comandada pelo mercado, que foi a escolha feita por nós desde o governo Collor e acentuada na era FHC. Foi isto que gerou o baixo dinamismo, que persiste no governo Lula.
Em que medida essa integração é nociva?
Existe uma questão subjacente, que não foi explicitada no livro. Quando se trata a questão do desenvolvimento do ponto de vista produtivo, são duas as grandes vertentes na economia. Existe a teoria cepalina, que é a nossa tradição no Instituto de Economia e está enraizada em outras escolas do pensamento mais avançadas. Essa teoria prega que o processo de crescimento é um processo de diversificação, em direção à fronteira tecnológica.
A outra teoria diz que é preciso se especializar naquilo que você faz atualmente de melhor. Foi este o caso brasileiro – a aposta em commodities, agronegócios, indústrias intensivas em trabalho e recursos naturais etc. Neste caso, a taxa de crescimento é mais baixa e há menos dinamismo tecnológico. Ocorre que você só faz a diferenciação da estrutura produtiva com políticas ativas. Não existem casos de países que conseguem ir em direção a fronteiras tecnológicas comandados pelo mercado. Não há registro disso na história econômica.
É por isso que essa idéia da supremacia dos mercados está embutida também na noção de que não foram feitas as políticas que deveriam ser executadas.
Apesar dos ganhos nos superávits comerciais, dívida pública em queda, inflação sob controle e da conjuntura internacional favorável, nossa expansão ficou na metade da média mundial. Por quê?
São dois determinantes. Como disse, o primeiro é o perfil da política macroeconômica, mais especificamente as políticas de juros e de câmbio. Essa política foi conduzida de uma forma equivocada, no Brasil, nos últimos quatro anos. Tivemos uma sobredosagem, com excesso de juros e com a utilização deliberada da taxa de câmbio para baixar a inflação. Isto tira pontos de crescimento da economia. O outro se deve ao fato de que não foram implementados os instrumentos para uma política de longo prazo.
O senhor poderia dar exemplos?
O governo anunciou uma política industrial, mas quando ela é comparada com a que foi colocada em prática na China, na Índia e em outros países asiáticos, constata-se que a nossa foi um arremedo, aliás ela sequer existiu durante a era FHC. Na verdade, não dá sequer para chamá-la de política industrial. Política industrial pressupõe a defesa de setores nascentes da economia.
Não tivemos, também, uma política de infra-estrutura. Isto é fundamental. A partir da qualidade da infra-estrutura, cria-se uma competitividade sistêmica. Exceto nas telecomunicações, o governo não conseguiu equacionar o problema da infra-estrutura. É absolutamente crucial. Em resumo: de um lado, uma política econômica desfavorável e, de outro, a falta de instrumentos para a infra-estrutura e de uma política industrial. Não é à-toa que a economia cresceu pouco.
O crescimento foi, em certa medida, atribuído ao mercado interno – consumo das famílias e investimentos do setor produtivo e da construção civil. Por outro lado, a participação do setor externo foi inexpressiva. Por que isso aconteceu?
Isto ocorreu, mas em 2006. Houve uma mudança. Até 2005, o impulso era claramente advindo das exportações. Entretanto, as importações cresceram demais e anularam esse impulso. Com o impulso, houve um deslocamento do investimento, sobretudo da área de exportações. Houve também um crescimento da renda e sobretudo do crédito, que move o consumo. Esse crescimento de 2006, portanto, é derivado daquele impulso inicial.
Números revelam que a carga tributária bateu um novo recorde no ano passado. Em que medida essa sobrecarga fiscal é nociva para o crescimento do país. O que precisa ser feito para mudar este quadro?
É muito parcial essa abordagem de que a carga tributária é nociva. Em tese, se você tiver uma carga tributária neutra, se ela não distorcer os preços relativos da economia, não há maiores implicações, pois o que o governo faz é tirar de um lado e gastar de outro. Agora, se a carga tributária distorcer os preços, pode criar falsos sinais para decisão de investimentos.
Não há estudos conclusivos sobre isto no Brasil. Agora, o que há de inadequado na questão é a composição de gasto. Esta, sim, é desfavorável ao crescimento.
Qual o problema dessa composição?
O governo tira com uma mão e dá com a outra. Vamos fazer o pressuposto de que, quando se tira, não está desestimulando demais um setor. Há provas disso. A lucratividade das empresas no Brasil, por exemplo, continua muito alta, apesar da carga tributária. Isto é central, porque demonstra que não está sendo afetada a capacidade de investimento das empresas.
O problema está na forma como o governo gasta. Há, por exemplo, um peso muito grande dos juros, que são transferidos para pessoas de classe alta, que provavelmente vão poupar ainda mais, diminuindo o consumo e gerando mais concentração de renda. Depois, registra-se também uma participação muito grande com gasto corrente e uma percentagem muito pequena com investimento público.
O investimento do governo no Brasil soma 2,5% do PIB. Para se ter uma idéia, o Chile, considerado o paradigma liberal na América Latina, gasta quase o triplo com investimento público, ou seja, 7% do PIB. Este é o desequilíbrio central: muito juro, muito gasto corrente e pouco investimento. É justamente essa assimetria que precisa ser corrigida num primeiro momento. Depois, é necessário consertar a carga tributária tornando-a menos regressiva.
Numa economia como a brasileira, qual seria na sua opinião o papel do Estado?
Teria de cumprir uma função dupla. Precisa ser um instrumento de redistribuição da renda. Isto é fundamental numa sociedade desigual como a brasileira. A outra função, tão importante quanto, é a de sustentação do crescimento, que se dá por meio de investimentos e incentivos públicos em áreas estratégicas. Não dá para defender o papel do Estado apenas na área social.
E a redução dos juros? Qual o seu peso na reversão do quadro de estagnação?
Na verdade, entra aí a questão da política macroeconômica. A redução dos juros e a taxa de câmbio num patamar melhor são condições necessárias para um crescimento maior da economia. Não diria que são necessárias e suficientes. Se o governo não fizer isso, não há crescimento adequado. Não existe na história a experiência de algum país que tenha crescido com esse patamar de juro e com essa taxa de câmbio. Pode até crescer, mas durante dois ou três anos. É como se tivesse fazendo um trabalho de Sísifo. Não adianta, não vai crescer muito.
Quando existe essa chamada configuração de preços macroeconômicos, se estimula a aplicação financeira em detrimento do investimento produtivo; o câmbio valorizado demais faz com que os estrangeiros e até nacionais decidam investir em outro país e não aqui.
É aí que a supremacia dos mercados dá as cartas?
Sem dúvida. E há razões para que isso ocorra. A supremacia dos mercados pode ser entendida também como a supremacia das finanças sobre a produção. A remuneração da riqueza financeira são os juros. Há então um excesso de contemplação dos interesses das finanças nesse tipo de capitalismo brasileiro. Isto precisa ser corrigido. A idéia era a de que Lula iria corrigir, mas seu governo está tendo grande dificuldade em mudar esse estado de coisas. Até agora, não conseguiu. É claro que tudo isso é feito sob o pretexto de se combater a inflação. Em primeiro lugar, mesmo sob esse pretexto, essa política me parece excessiva. Em segundo lugar, tornar-se imperioso avaliar os custos dessa opção.
O senhor acredita que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode impulsionar o crescimento? Que avaliação o senhor faz do programa?
Como idéia, vejo que o programa tem o mesmo estatuto da política industrial que o governo pôs em prática. Identifica, até, questões corretas, tanto como a política industrial identificou setores estratégicos que precisam ser modificados. O PAC também identifica setores de infra-estrutura, sobretudo da energia elétrica, que são estratégicos para o crescimento econômico. Qual o problema? É que, concretamente, o PAC não define como vai financiar esses investimentos.
Há uma parte que será financiada pela redução do superávit primário, o equivalente a 0,5% do PIB. Entretanto, os investimentos públicos propostos no PAC aumentam em 2% do PIB. Fica uma pergunta: de onde vem o 1,5% do PIB? Em tese, viria das empresas estatais. Acontece que a forma de contabilização do superávit primário não permite que esses recursos venham das estatais. Em resumo: o PAC é positivo, identifica problemas mas não tem soluções práticas, reais, efetivas.
Para torná-lo um programa efetivo, seria preciso mudar o estatuto da empresa pública. Teria que tirar a empresa pública da contabilidade do superávit primário, possibilidade hoje discutida no âmbito do Fundo Monetário Internacional. O FMI já aceita, dependendo da empresa – tanto que a Petrobras está fora. O próprio Fundo reconhece que a forma pela qual foi montado o critério de apuração do superávit afetou o investimento das empresas públicas e dos países da América latina.
Na introdução do livro, o senhor escreve sobre o fato de a economia norte-americana figurar no epicentro de vários ciclos econômicos recentes. Os indicadores da economia dos EUA vêm mostrando que algo está mudando. Prova disso foi o abalo causado recentemente pela divulgação da queda de 7,8% no indicador de pedidos de bens duráveis. Alan Greenspan, por sua vez, disse que o ciclo de expansão está chegando ao fim, com fortes sinais de recessão à vista. Trata-se de um fato isolado ou prenúncio de algo novo no horizonte?
Precisamos entender que, de fato, a economia norte-americana é e continuará sendo o centro da economia mundial. Mas trata-se de uma economia que tem particularidades. Uma delas é a de que cresce com déficits externos permanentes, o que só é possível porque ela emite a moeda do mundo, se não ela não faria isso há 20 anos.
Qual o resultado mais visível dessa política?
Tem feito, na verdade, com que a economia americana consuma bastante e que este consumo se transmita como impulso para o resto do mundo, sobretudo com esse elo asiático, que exporta muito. Entretanto, essa economia tem problemas. Esses indicadores mencionados por você são mais de superfície. Por se tratar de uma economia muito avançada do ponto de vista financeiro, ela se move de uma forma muito particular. Traduzindo: nos Estados Unidos, as pessoas não consomem porque sua renda aumentou ou vai aumentar. Elas consomem porque a sua riqueza aumentou. As pessoas se endividam e gastam. Pode-se argumentar que a dívida cresce, mas acontece que o patrimônio também cresceu. E é isso que importa.
Existem vários episódios de crescimento da riqueza nos Estados Unidos. O mais recente é a bolha imobiliária. Entretanto, esses processos de bolha têm uma trajetória. Chegam a um pico de valorização e aí ocorre uma desaceleração. Há indicações – e este é o problema central – de que essa bolha começou a desinflar. Ou seja, os preços dos imóveis começaram a cair. Se isto se confirmar, a trajetória será a seguinte: diminui a riqueza das pessoas e elas passam a gastar menos. Como a economia americana é central, isso se transmite em cadeia para o resto do mundo.
Temores de que a economia chinesa esteja passando por um período de desaceleração e boatos dando conta que o país asiático vai impor restrições para conter fraudes bastaram para derrubar as Bolsas no mundo todo. Em seguida, Pequim anunciou medidas para conter o crescimento. Alguns analistas chamaram a turbulência de “soluço temporário”. Mero ajuste da bolha acionária, correção de rota, crise passageira ou sinal de que algo está ocorrendo?
A China investiu muito nesse ciclo de crescimento. O país passou a conviver com problemas sérios de ociosidade em vários setores. Em razão disso, o Congresso do PC chinês decidiu desacelerar o crescimento. Trata-se de uma queda de um terço do crescimento da China. E essa cadeia, desacelerando a China e os Estados Unidos, vai também desacelerar a demanda para nós. O Brasil certamente será afetado.
No caso norte-americano, há uma certa dúvida – será que a bolha vai desinflar? No caso da China, não há dúvida – já está decidido que o crescimento será desacelerado. Os chineses têm um controle maior sobre a economia. Assistiremos, então, a uma desaceleração dessa economia.
Com esse quadro, essa centralidade da economia norte-americana persistirá ou tende a se pulverizar?
Não acredito. A hegemonia americana é construída em torno de várias determinações, inclusive a político-militar. Não me parece que isto esteja ameaçado. É claro que, se essa economia entrar numa crise que dure bastante tempo, pode haver um questionamento. Nunca se sabe quais são os desdobramentos. Digo isto porque, no final dos anos 1970, registrou-se uma certa crise da hegemonia americana. Essa hegemonia foi contestada e os EUA terminaram por reafirmá-la, aumentado seu poderio do ponto de vista global, apesar de uma década de crise. Os processos históricos são imprevisíveis. Não há hoje, no mundo, nenhuma potência não só econômica como político-militar, que possa se opor aos Estados Unidos.
Essa turbulência é um sinal de que não é tão sólida a ponte construída pelos EUA com o mercado asiático?
Acho ela muito sólida. Boa parte da indústria americana e até de países avançados – do Japão também – hoje está na China e na Ásia em desenvolvimento. Existe de fato uma articulação produtiva muito grande. Não vejo ameaça. Agora, acho que o que será corrigido nesse processo são alguns excessos. Quando a China decide, por exemplo, como agora, que corrigirá a trajetória de seu crescimento, o governo está dizendo o seguinte: nós investimos demais, criamos uma capacidade excessiva. Isto ficará ainda mais evidente com a desaceleração da economia americana.
Ademais, para exportar esse excesso de produção, os chineses criariam um conflito comercial com o mundo todo. É bom lembrar, por exemplo, que os chineses já fazem superávit comercial com a América Latina. Por outro lado, parte expressiva da população chinesa tem um nível de renda muito baixo, não pode absorver essa produção. Dessa maneira, é melhor ajustar a trajetória.
Se a economia americana fosse planejada como a economia chinesa, até poderia prever um processo de desaceleração suave. Ocorre que ninguém sabe o que vai acontecer com os Estados Unidos, que, para mim, continuam a ser o epicentro da economia mundial.
O Brasil pagou recentemente um alto preço em situações de turbulência global. Aparentemente, nesses últimos episódios, apesar do risco-país ter subido 10% imediatamente após a queda da Bolsa de Xangai, o país escapou ileso. O senhor acha que os fundamentos da economia brasileira são suficientemente sólidos para resistir a novas situações de volatilidade?
Não existe uma resposta exata. Não se pode ter o grau de exatidão de que às vezes gostaríamos. Por quê? Estamos hoje melhores do que no passado? Estamos. Mas boa parte dessa melhora se deve ao fato que o cenário melhorou bastante. A resposta à sua pergunta depende de outra indagação-suposição – qual será o grau de deterioração do cenário internacional? Se a deterioração for suave, provavelmente o país responderá de uma maneira melhor que nas crises anteriores. Se a crise for mais intensa, o país responderá de uma forma ainda muito negativa.
A resposta é condicional. Se for apenas um ajuste de rota, do tipo China não cresce 10%, mas 7%, os capitais dos países emergentes não vão fluir nessa magnitude, mas vão continuar fluindo. Os preços das commodities não vão continuar nesse patamar, mas cairão 10% ou 20%. Se o ajuste for dessa natureza, nós reagiremos melhor. Mas eu não tenho certeza que será assim.
E se não for?
Se não for, continuaremos mal. Entram aí as questões estruturais. Não temos, por exemplo, a estrutura produtiva da Ásia. O que acontece quando se exporta commodities? Quando muda a situação internacional, os países que exportam manufaturados perdem mercado, ou seja, quantidade. Já quando se exporta commodities, perde-se em quantidade e, também, em preço. Esse é um exemplo emblemático da nossa fragilidade comercial.
Pelo lado financeiro, há também uma saída mais abrupta de capitais por conta da qualidade dos investimentos recebidos por nós, em parte, especulativos. A resistência se mede também pelo volume de reservas: se o Brasil tem US$ 100 bilhões para enfrentar isso, a China tem US$ 1 trilhão.
Existe uma hierarquia. No topo dela, com capacidade de resistência muito forte, estão a China, a Coréia do Sul, Taiwan etc. Mais resistente, mas lá embaixo na hierarquia, estão o Brasil, a Argentina, os emergentes da América Latina. Nós não somos os piores, mas estamos muito longe dos melhores.
O Brasil sobe a ladeira sob a supremacia dos mercados?
Acho que não. Aí vale a experiência histórica. O Brasil optou, desde os anos 1990, pelas privatizações excessivas, apostou na retirada do peso do Estado em determinadas políticas. Vejo que esse processo deu errado, e não vejo a mínima possibilidade de dar certo. De resto, a experiência exitosa é outra. O que diferencia os países asiáticos dos latino-americanos? É o grau de elaboração de profundidade das suas políticas nas áreas financeira, comercial, produtiva etc. Eles planejaram a sua integração; nós, da América Latina, não.
A razão disso é que, quando se iniciou para valer a integração da periferia, nos anos 1990, os Estados nacionais dos países latino-americanos estavam muito debilitados em razão de uma década de crise da dívida externa. Foram aceitas todas as imposições, tanto dos Estados Unidos como dos organismos internacionais, no sentido de liberalizar sem critério as respectivas economias. Deu no que deu.
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