A Nova (Des)Ordem Financeira
Jamais o sistema financeiro mundial foi tão opaco. O montante diário das transações de câmbio, há algumas décadas aproximadamente igual ao capital de um grande banco dos Estados Unidos, equivale hoje ao capital acumulado dos cem primeiros bancos norte-americanos.
Os aventureiros das finanças inventam, constantemente, novos "produtos" que desafiam, ao mesmo tempo, os Estados-Nações e os bancos internacionais. Em maio de 2006, o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo de Rato, lamentou esses novos riscos, fortemente agravados pela fraqueza do dólar e pelo déficit comercial dos Estados Unidos. Seus temores refletem a desorganização, tanto estrutural quanto intelectual, que abala atualmente o FMI.
Do ponto de vista estrutural, o volume dos créditos do Fundo e de seus empréstimos baixou espetacularmente, caindo de mais de 70 bilhões, em 2003, a US$ 20 bilhões, no final de julho de 2006. Isso reduziu de forma sensível a influência do FMI sobre a política econômica dos países em desenvolvimento e fez a renda da instituição cair abaixo do limite requisitado por seus custos de funcionamento elevados. O FMI reconhece estar "quantitativamente marginalizado" [1]. Suas dificuldades devem-se, muito amplamente à duplicação, desde 2003, dos preços mundiais das matérias-primas (petróleo, cobre, prata, zinco, níquel, etc.), das quais os países em desenvolvimento são tradicionais exportadores, o que lhes permitiu quitar dívidas por antecipação, reduzindo dessa forma o papel do Fundo.
Essas altas vão continuar, porque o rápido crescimento econômico da China, da India e de outros países acarreta um aumento brutal da demanda — o que não existia, quando a balança comercial externa era sistematicamente favorável aos países ricos. Além disso, a posição relativa dos Estados Unidos em termos de ativos líquidos no exterior deteriorou-se a favor do Japão, dos países emergentes da Ásia e dos países exportadores de petróleo, que afirmam seu poder e tornam-se, cada dia mais, credores de Washington. O aprofundamento dos déficits norte-americanos empurra o dólar para baixo: queda de 28% em relação ao euro, somente no período de 2001-2005.
Intelectualmente, o FMI e o Banco Mundial encontram-se igualmente na defensiva, após a série de crises financeiras na Ásia, na Rússia e na América Latina, entre 1997 e 2000. Inúmeros de seus dirigentes mais famosos afirmam não mais acreditar nas premissas do pensamento econômico clássico do laissez-faire, que até este momento inspiraram suas políticas. Vários deles admitem, no entanto, que seu "conhecimento do crescimento econômico é extremamente limitado" e que é necessário dar provas de "mais humildade". Com o propósito de advertência, Stephen Roach, economista chefe do banco Morgan Stanley, afirmou que o mundo "não fez grande coisa para se preparar para aquilo que bem poderia ser a próxima crise" [2].
A nova natureza da sistema financeiro
A própria natureza do sistema financeiro mundial não tem estritamente mais nada a ver com as políticas econômicas nacionais "virtuosas" recomendadas pelo FMI. Os gestores das carteiras de fundos de investimento e os grandes bancos marginalizaram os bancos nacionais e os organismos internacionais. Os arrojados operadores da Bolsa (traders) levaram a melhor sobre os banqueiros tradicionais mais prudentes, pois a compra e a venda de ações, de obrigações e outros produtos "derivativos" [3] permitem obter os lucros mais importantes e a regra, agora, é assumir riscos mais elevados.
Esses operadores são remunerados com base dos lucros obtidos – quer sejam fictícios ou reais. Habitualmente, colocam em jogo os fundos depositados em sua instituição. Baixas taxas de juros e bancos interessados em emprestar dinheiro apenas a "hedge funds" (fundos especulativos de altos riscos) e a firmas especializadas em operações de fusão-aquisição deram aos fundos toda a margem de manobra necessária para jogar no cassino das finanças — tanto nos Estados Unidos como no Japão e em outros pontos do mundo. Eles conceberam uma série de fusões mais que duvidosas, que antigamente teriam sido julgadas temerárias. Em certos casos, as recapitalizações financiadas por empréstimos (leveraged recapitalisations) [4] lhes permitem obter enormes honorários e dividendos que aumentam na mesma proporção o endividamento da empresa. Quanto ao que acontecerá a seguir — bem, isso não será mais problema deles...
Desde o início de 2006, os bancos de investimentos multiplicaram seus empréstimos destinados a compras de empresas, afastando os bancos comerciais que até então dominavam esta atividade. Para conquistar fatias importantes do mercado, os bancos de investimento "vivem perigosamente", segundo os termos do responsável pela representação dos empréstimos bancários da Standard & Poor. Eles se lançam em operações cada vez mais arriscadas. Esse é o motivo pelo qual "os observadores prevêem uma sensível alta do número de empresas fortemente endividadas que se encontrarão impossibilitadas de efetuar os pagamentos", como o assinalava o Financial Times em julho último [5].
Quando o próprio FMI sente-se alarmado
Mas como as cláusulas jurídicas destinadas a proteger os investidores foram reduzidas, os credores têm menos possibilidades de obrigar as empresas mal gerenciadas a se declarar em impossibilidade de pagar suas dívidas. Conscientes de que suas apostas são a cada dia mais arriscadas, os hedge funds arranjam-se para que seja muito mais difícil retirar o dinheiro com o qual eles especulam. Os operadores reposicionaram-se como intermediários entre os devedores tradicionais – nacionais e privados – e os mercados. Isso contribui para desregulamentar um pouco mais ainda a estrutura financeira mundial e aumentar sua vulnerabilidade às crises. Eles buscam retornos para os investimentos elevados e assumem, em nome disso, riscos cada vez maiores.
A situação é tão inquietante que, no início de 2006, o FMI fez uma publicidade não habitual a uma obra publicada por Garry J. Schinasi: Safeguarding Financial Stability [6]. Este livro, alarmista, revela as angústias do Fundo com abundância de detalhes perturbadores. Em essência, a "desregulamentação e a liberalização" que o Fundo e os partidários do "Consenso de Washington" [7] preconizam há décadas tornaram-se um pesadelo. Certamente, assegura o autor, esta política produziu "benefícios sociais e privados fenomenais" [8], mas ela encobre também "um potencial (…) de fragilidade, de instabilidade, de risco sistêmico e de conseqüências econômicas desfavoráveis."
Soberbamente documentada, a obra de Schinasi conclui que o desenvolvimento irracional da economia globalizada, conjugada à desregulamentação, "ampliou o perímetro da inovação em matéria de finanças e aumentou a mobilidade dos riscos". Garry J. Schinasi e o FMI preconizam um quadro radicalmente novo para acompanhar de perto e prevenir os problemas que podem aparecer. Mas, para que a opração seja bem sucedida, será necessário tanto "contar com a sorte" quanto com as políticas adaptadas e com o controle dos mercados… Houve um tempo em que a economia não se entregava à sorte para prever o futuro.
Surgido na mesma época e também recomendado pelo FMI, um estudo ainda mais alarmista, redigido por especialistas do establishment financeiro, analisa a miríade de problemas criados pela liberalização do sistema financeiro mundial. Os autores chegam à conclusão de que "os sistemas financeiros nacionais [são] cada vez mais vulneráveis a um risco sistêmico, também recrudescido, e a um número crescente de crises financeiras" [9]. Os especialistas bancários da antiga escola dividem cada vez mais com o FMI a convicção de que esta precariedade é muito mais forte do que antes.
Bancos e Fundo: menos poder, muito mais riscos
A moratória soberana da Argentina (2004) mostrou que os governos que resistiam às pressões do FMI e dos bancos poderiam tirar proveito das divisões entre os Estados-membros da instituição para ignorar a maior parte das suas exigências, se não todas elas. Aproximadamente 140 bilhões de obrigações do Estado, nas mãos de credores privados e do FMI, estavam então em jogo. Os bancos que haviam multiplicado os empréstimos ao país, nos anos 1990, terminaram por pagar o preço.
Com a alta das cotações das matérias-primas, os países emergentes (China, países do Sudeste da Ásia e da América Latina) conheceram, em 2004 e 2005, taxas de crescimento duas vezes mais elevadas que as dos países ricos. Desde 2003, os emergentes detinham 37% dos investimentos diretos estrangeiros (IDE) nos outros países em desenvolvimento. A China conta muito nesse crescimento, o que significa igualmente que o FMI e os ricos banqueiros de Nova York, Tóquio e Londres têm muito menos influência que antigamente. A postura dos bancos em relação ao futuro tornou-se muito mais prudente, após as crises financeiras do final dos anos 1990, nos países emergentes. No entanto, sua exposição aos riscos representados por ações e obrigações destes mercados nunca foi tão forte, em virtude dos rendimentos que buscavam em certos países (como Filipinas ou Zâmbia) e do excesso de liquidez. Como disse um trader, "recomeça uma história de amor" [10].
A crescente complexidade da economia mundial e as negociações que se eternizam na Organização Mundial do Comércio (OMC) não conseguiram superar os subsídios e medidas protecionistas, que são um obstáculo a um acordo global de livre-comércio e ao fim das ameaças de guerras comerciais. O planeta econômico vive agora sob a ameaça de uma instabilidade bem maior – e de perigos mais importantes para os ricos.
O problema financeiro global que se anuncia torna-se inextricável em razão do rápido agravamento dos déficits comercial e orçamentário dos Estados Unidos. Desde que tomou posse em 2001, o presidente George W. Bush elevou em mais de 3 trilhões de dólares a dívida federal, que beira agora os 9 trilhões de dólares. Enquanto a cédula verde continuar a se desvalorizar, os bancos e as operadoras procurarão proteger seus ativos e as aventuras financeiras de altos riscos parecerão cada vez mais atraentes. Antes de sua moeda enfraquecer, Washington preconizava uma maior desregulamentação financeira...
O mundo fantásticos dos hedge funds
Existem, pelo menos 10 mil hedge funds. Quatro, em cada cinco, estão localizados nas Ilhas Caiman. Apesar disso, 400 dentre eles — que administram, cada um, pelo menos um bilhão de dólares — realizam sozinhos 80% das operações. No estado atual, não existe qualquer meio de regulamentá-los. Esses fundos especulativos detêm mais de 1,5 trilhão de dólares em ativos, e o montante de negócios diários realizados com derivativos globais aproxima-se dos 6 trilhões de dólares – a metade do Produto Nacional Bruto dos Estados Unidos. No clima de euforia dos últimos cinco anos, a maioria ganhou, mas outros perderam. Em um ano (de agosto de 2005 a agosto de 2006), perto de 1.900 hedge funds apareceram, mas 575 outros foram liquidados. A agência de rating Standard & Poor gostaria de avaliar sua solvabilidade, mas ela nem sempre o fez. Os mais importantes deles afirmam utilizar modelos informáticos para efetuar suas transações.
No outono de 1998, a economia mundial esteve perto de uma das mais graves crises do pós-guerra, quando Long-Term Capital Management (LTCM), hedge fund célebre pela utilização de técnicas matemáticas concebidas por dois ganhadores do prêmio Nobel (Myron Scholes e Robert Merton) foi à falência [11]. Os esforços conjugados de Washington e de Wall Street impediram o desastre, mas os fundos especulativos estão tornando-se cada vez maiores, o que dificulta eventuais operaçõ es de salvamento.
Em concorrência selvagem entre si mesmos e com investidores propensos por natureza a assumir grandes riscos, esses fundos são atraídos pelos derivativos de crédito [12] e outros procedimentos imaginados para ganhar dinheiro. O mercado desses produtos, praticamente inexistente em 2001, desenvolveu-se bem lentamente até 2004 (tratava-se, então, de 5 trilhões de dólares). Porém, chegou à altura estratosférica de 17,3 trilhões de dólares no final de 2005. Os instrumentos financeiros multiplicam-se: já despontam no horizonte mercados de contratos a termo de derivativos de crédito, de credit default swaps (trocas de créditos não pagos) [13] e outros..
Ninguém pode dizer exatamente o que são os derivativos de crédito. Nem mesmo Gillian Tett, principal responsável pelos mercados de capitais no Financial Times, apesar de sua extensa pesquisa. O produto nasceu há uma dezena de anos, durante uma reunião de dirigentes do banco J.P. Morgan, em Boca Raton, na Flórida. Entre dois coquetéis, e antes de se jogarem uns aos outros na piscina, eles tiveram a idéia de um novo instrumento financeiro, que deveria proporcionar grandes lucros e ser suficientemente complexo para dificultar imitações (o copyright não é aplicado para as idéias no campo das finanças).
Tett é extremamente crítica em relação aos mecanismos que, segundo ela, ameçam provocar uma reação em cadeia de perdas capaz de engolfar os fundos especulativos que se aventuraram nesse mercado. "Nestes tempos de liquidez fácil", os banqueiros tornaram-se "ultra-criativos [...] em seus esforços para redistribuir o risco após tê-lo cortado em fatias e em cubos", conclui ela no Financial Times. O influente cotidiano financeiro, por sinal, divulgou, nestes últimos meses, uma série de artigos sobre essa "magia financeira", não escondendo seu ceticismo quanto aos meios e fins dessas inovações [14].
As "armas financeiras de destruição em massa"
As baixas taxas de juros conduziram os investidores a jogar nos mercados com dinheiro emprestado, estima Avinash Persaud, um guru das finanças, e "uma redução dolorosa da taxa de endividamento é tão inevitável como à noite sobrevir o dia[...]. A única questão é saber em que momento ela acontecerá". No que diz respeito aos hedge funds, que rapidamente tornaram-se mais complexos para garantir sua segurança, a hora da verdade não tardará e eles serão "forçados a vender seus investimentos mais líquidos." "Eu não apostaria um centavo em uma saída assim tão feliz", nota Gillian Tett, após ter examinado certas tentativas tardias para salvar esses fundos de seus próprios desvarios [15].
Aos olhos do investidor norte-americano Warren Buffet, bem colocado para conhecer todos os subterrâneos das finanças, os derivativos de crédito são "armas financeiras de destruição em massa". Ao mesmo tempo em que representam teoricamente uma segurança contra os riscos de falta de pagamento, eles encorajam apostas ainda mais audaciosas e uma nova expansão de empréstimos. A Enron [16] usou-os amplamente, o que foi um dos segredos de seu sucesso – e de sua bancarrota final, que se traduz por um rombo de 100 bilhões de dólares. Totalmente opacos, os derivativos de crédito não estão sujeitos a qualquer controle real. Vários desses "produtos" inovadores, segundo um diretor financeiro, "só existem no ciberespaço e são somente meios que permitem aos ultra-ricos de escapar do fisco" [17].
Na realidade, nem os altos dirigentes dos bancos e da regulamentação financeira compreendem como funciona a cadeia de exposição aos riscos, e não sabem "quem possui o que". Esses fundos pretendem ser honestos. Contudo, também é verdade que aqueles que os controlam recebem remunerações ligadas aos lucros realizados, e que implicam em assumir riscos. Muitos coletam informações confidenciais – prática tecnicamente ilegal mas, no entanto, corrente.
Existe um consenso sobre o aumento constante dos perigos. Se podemos colocar de lado a persistência dos déficits orçamentários nacionais, devidos a um crescimento das despesas e a reduções de impostos para os mais ricos, não se pode fazer o mesmo para a instabilidade dos mercados financeiros e de matérias-primas. Esta já provocou uma queda nos rendimentos dos fundos especulativos em maio último, a mais importante em um ano. Os hedge funds conseguem ainda consideráveis lucros, mas de maneira cada vez mais perigosa.
Os problemas são estruturais, como testemunha a relação entre o endividamento das empresas e seus lucros sobre fundos próprios — que passou de quatro a seis desde o último ano. Enquanto as taxas de juros estavam baixas, os empréstimos com efeito de alavanca [18] eram apresentados como a solução. Devido aos hedge funds e os outros instrumentos financeiros, existe hoje um mercado para as empresas mal administradas e atoladas em dívidas. No início de setembro de 2006, a Ford Motor Company anunciou que estava perdendo 7 bilhões de dólares por ano: o valor de suas ações saltou 20%. Mesmo as regras que alguns associavam antigamente ao capitalismo, como o lucro, não são mais válidas.
Transações bilionárias "registradas" num pedaço de papel
Os problemas, quase surreais, são também inerentes à rapidez e à complexidade destas operações financeiras. No final de maio, a International Swaps and Derivatives Association revelou que uma entre cinco transações relacionadas aos derivados de crédito (muitas delas envolvendo bilhões de dólares) corria o risco de grandes erros, que aumentaram com o volume das transações. Mais de 90% de todos os contratos fechados nos Estados Unidos eram consignados em papel, freqüentemente em pedaços de papel, e não eram corretamente registrados. Em 2004, Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve (O Banco Central norte-americano), declarou-se "francamente chocado" com esta situação. As primeiras medidas para remediar esta negligência somente foram tomadas em junho de 2006, e estão longe de resolver um fenômeno de tal amplitude, que coloca em jogo valores colossais. Pior ainda: devido à desregulamentação e à multiplicação dos instrumentos financeiros, não é mais possível coletar nem quantificar dados essenciais. A realidade escapa tanto aos banqueiros quanto aos governos. Talvez estejamos vivendo uma "nova era das finanças", mas não há qualquer dúvida de que avançamos com os olhos vendados.
Stephen Roach escreveu, em 24 de abril de 2006, que uma crise financeira maior se aproximava e que as instituições mundiais (FMI, Banco Mundial e outros mecanismos da arquitetura financeira internacional) estavam totalmente desarmadas para enfrentá-la [19]. Por seu lado, o chefe do Executivo de Hong Kong lamentou, no início de junho, os perigos que representavam os hedge funds. Na mesma época o economista-chefe do FMI, o iconoclasta Raghuram Rajan, advertiu contra a própria estrutura de compensação desses fundos, que força a assumir riscos cada vez maiores e a colocar em perigo o conjunto do sistema financeiro. No final de junho, Stephen Roach mostrou-se ainda mais pessimista: "Um certo senso de anarquia" domina as comunidades universitária e política que se mostram "incapazes de explicar como funciona o novo mundo" [20]. Reina o mistério. Recentemente, o próprio FMI estimava que o risco de uma desaceleração séria da economia mundial jamais havia sido tão grande desde 2001, essencialmente em virtude da queda do mercado imobiliário nos Estados Unidos e na maior parte dos países da Europa Ocidental. Roach ainda acrescenta a diminuição das rendas reais dos assalariados e a insuficiência do poder de compra nos Estados-Unidos [21]. Mas mesmo que o atual nível de prosperidade se mantenha no próximo ano, e que se prove que todos esses especialistas tenham se enganado, a transformação do sistema financeiro mundial é um fato que terá, cedo ou tarde, conseqüências desastrosas.
A realidade escapa de qualquer controle. A "extensão e o campo de operação dos mercados financeiros internacionais", a "arquitetura" do sistema "evoluíram como por acaso", e sua regulação, praticamente inexistente, é "ineficaz", segundo especialistas do establishment [22]. As leis econômicas de antigamente deveriam operar, desde que o sistema financeiro mundial abandonasse todas as restrições. Não foi esse o caso.
O BIS teme "um big bang"
A liberalização financeira gerou um monstro, e aqueles que lastimam os controles sobre a realização dos lucros não estão em situação de resolver os múltiplos problemas que apareceram. O relatório anual do Banco de Compensações Internacionais (BIS), publicado no final de junho de 2006, evoca o triunfo dos comportamentos econômicos predadores e suas orientações, às quais é "difícil encontrar uma explicação lógica". Os tubarões das finanças mostraram-se mais espertos que os banqueiros tradicionais. "Tendo em vista a complexidade da situação e os limites de nossos conhecimentos, é extremamente difícil prever como tudo isso vai acabar" [23], explica o BIS, que não deseja que seus temores provoquem pânico e que permanece, portanto, ao lado dos não-alarmistas. Porém ele admite que um big bang poderia abalar os mercados, e considera que existem "vários motivos para se inquietar por um certo nível de desordem".
Não estamos, atualmente, na situação de forte probabilidade de um desabamento, diz o relatório, mas seria prudente "esperar o melhor, preparando-se para o pior". E deixa claro que: tendo em vista que durante uma década as tendências econômicas globais e os "desequilíbrios financeiros" criaram perigos crescentes, "é, portanto, essencial compreendemos como chegamos até aqui, para podermos escolher as políticas capazes de reduzir os riscos atuais" [24]. O BRI está inquieto, muito inquieto.
Mas esse pessimismo incita os abutres das empresas e dos bancos de investimento a imaginar novos instrumentos para tirar proveito da eminente catástrofe econômica – de uma crise que, a seus olhos, é uma questão de tempo e não de princípios. Ainda mais sabendo que os especialistas estão de acordo, ao pensar que o não-pagamento de dívidas vai aumentar substancialmente em um futuro muito próximo. Há, portanto, dinheiro para se ganhar. Repentinamente, os especialistas em dívidas impagáveis e em reestruturações de empresas em falência são cada dia mais solicitados em Wall Street.
O sistema financeiro mundial está atormentado pelas contradições; um consenso crescente existe entre quem o apóia e quem julga que o status quo é, ao mesmo tempo, imoral e causador de crises. A crer nas instituições e personalidades que estiveram nos postos avançados de defesa do capitalismo, o sistema pode estar às vésperas de profundas perturbações.
Tradução: Marci Helaine
marci.helaine@terra.com.br
[1] IMF Survey, Nova Iorque, 29 de maio de 2006, p. 147 ;IMF in Focus, Nova York, setembro 2006, p. 11.
[2] Roberto Zagha e outros, "Rethinking Growth", Finance & Development, Washington D.C., março de 2006, p. 11; Stephen Roach, Global Economic Forum, Morgan Stanley, Nova Iorque, 16 de junho de 2006.
[3] Os "derivativos" servem, em princípio, para prevenir seus possuidores contra riscos provocados por mudanças de preços, de quotações de moedas e também respeito de matérias-primas, ações, títulos de dívida... São uma aposta sobre o futuro que pode render muito. Ler Ibrahim Warde, "o desvio de rumo dos novos produtos financeiros", Le Monde Diplomatique, edição francesa, julho de 1994.
[4] Tais aumentos de capital permitem divulgar balanços com altos lucros, sobre os quais são calculados honorários e dividendos.
[5] The Financial Times, Londres, 17 de julho, 14 de agosto de 2006.
[6] Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability: Theory and Practice, FMI, Nova Iorque, 2006.
[7] A expressão vem do economista John Williamson, em 1989, e resume as "recomendações" feitas aos Estados, entre as quais a baixa de impostos, a liberalização do comércio, as privatizações e a desregulamentação financeira. O FMI condiciona seus empréstimos à adoção dessas medidas. Ler Moisés Naim, "Ordem do FMI, ’Consenso de Washington’", Manière de Voir, n°72, dezembro de 2003/janeiro de 2004.
[8] Esta citação e as seguintes foram extraídas de Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability, op.cit. pp. 8, 14 e 17.
[9] Kern Alexander, Rahul Dhumale e John Eatwell, Global Governance of Financial Systems :The International Regulation of Systemic Risk, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 22 e passim.
[10] The Financial Times, 27 de julho de 2006.
[11] O LTCM assumiu, nos mercados, compromissos de 100 bilhões de dólares, embora gerisse fundos de… US$ 5 bilhões. Para evitar um desabamento do sistema, o banco central norte-americano forçou outros fundos a desembolsar US$ 3,6 bilhões e assumir seus prejuízos.
[12] Como em outros derivativos, os invetidores apostam em riscos previsíveis, mas neste caso, os créditos (obrigações, dívidas) são a base das apostas.
[13] O vendedor compromete-se, contra o depósito de um prêmio, a indenizar o cliente, em caso de falta de pagamento ou simplesmente degradação da qualidade de seus devedores.
[14] Gillian Tett, "The dream machine," The Financial Times magazine, Londres, 24-25 de março de 2006 ;The Financial Times, 10 e 19 de julho de 2006, 14, 24 e 29 de agosto de 2006.
[15] Financial Times, 23, 24-25 de junho de 2006.
[16] Conglomerado do setor energético célebre no mundo das finanças, a Enron afundou quando foram reveladas suas práticas de fraude contábil, delito de iniciados… Ler Tom Franck, "Mil e uma trapaças", Le Monde Diplomatique-Brasil, fevereiro de 2002.
[17] Financial Times, 17 de julho de 2006. Ler também os números de 31 de maio e 8 de junho de 2006.
[18] Esses empréstimos permitem comprar uma empresa com um aporte em capital muito fraco e empréstimos a taxas inferiores à rentabilidade esperada.
[19] Global Economic Forum, Morgan Stanley, 24 de abril de 2006.
[20] Global Economic Forum, Morgan Stanley, 23 de junho e 5 de setembro de 2006.
[21] Financial Times, 6 de setembro de 2006.
[22] K. Alexander, R. Dhumale e J. Eatwell, op. cit., p. 251.
[23] "76th Annual Report", BIS, Bâle, 26 de junho de 2006.
[24] "76th Annual Report", op.cit.
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