Dura batalha pela seguridade social
Em 15 de novembro de 2005, a República Democrática do Congo (RDC) inscreveu “a garantia da saúde e da segurança alimentar” na sua nova Constituição, após o primeiro referendo democrático organizado no país, depois de quase quarenta anos. Inicialmente, o presidente Laurent Gbagbo tinha conseguido que o Parlamento da Costa do Marfim aprovasse a criação de um Sistema de Segurança Universal contra Doenças (AMU – Assurance Maladie Universelle). Entretanto, um ano mais tarde, quando a Costa do Marfim se desestabilizou, num conflito de longa duração [1], a entrada em vigor da AMU foi adiada para uma data desconhecida.
Ruanda foi o segundo país africano a seguer essa direção. A AMU ruandesa, votada pelo Parlamento, ainda não foi realizada, porque as autoridades locais estão engajadas em conselhos com parceiros exteriores, particularmente, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização Mundial de Saúde (OMS). O artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que consagra o “direito de todo ser humano à segurança social”, indica que as obrigações dos Estados, em termos sociais, requerem não só o “esforço nacional”, mas também “a cooperação internacional”.
Sob a marca da informalidade
Na África, “somente 5 a 10% da população ativa é beneficiada por cobertura social”, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que nota a degradação da situação nos últimos vinte anos [2]. A OIT destaca que “aproximadamente 80% da população não tem acesso aos cuidados básicos de saúde”. Em média, as despesas de saúde representam 4,3% do produto interno bruto (PIB) dos Estados do continente — contra 6,4% na Ásia, 8,8% na América Latina, 24,8 % na Europa e 16,6% na América do Norte. “Embora certos países destinem até 9% de seu orçamento nacional à saúde, como prescreve a Organização Mundial de Saúde (OMS), sempre se coloca o problema da utilização adequada dos recursos [3]”, aponta o Doutor Charles Raymond Dotou. Na maior parte dos países africanos, a economia apóia-se sobre um setor informal hipertrofiado, incluindo negociações ilícitas e mercado negro, o que entrava a criação de um sistema geral de proteção social. Somente os assalariados e os funcionários – que representam apenas 10% da população ativa, em média – são beneficiados. Nos anos 70, a maioria dos economistas e dos financiadores pensava que o desenvolvimento acarretaria, automaticamente, o progresso do setor formal (assalariado) e a generalização da segurança sanitária. tais prognósticos revelaram-se falsos. A derrota das políticas de ajuste estrutural aumentou o lado informal da economia nos anos 1980 e 1990 [4]. “Com a crise econômica, após o reajuste estrutural” — nota um estudo do ministério francês das relações exteriores — problemas administrativos, financeiros e econômicos graves apareceram e fragilizaram a situação da proteção social. Seu custo aumentou, enquanto o nível de rendimento (como também, às vezes, o número de trabalhadores do setor público) estagnou, e o número de assalariados baixou, em proveito dos setores tradicionais e informais [5] .”
... e do estrangulamento dos Estados
Além disso, os Estados têm sua capacidade de intervenção financeira reduzida pela crise da dívida, pela ruína dos preços das matérias-primas, pela fraqueza das receitas fiscais, pela má gestão e pelas políticas de rigor recomendadas pelos financiadores internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional a Comunidade Européia). As infra-estruturas de saúde (hospitais, ambulatórios, médicos formados, etc.) degradaram-se, prejudicando a confiança que das populações no poder público [6]. Freqüentemente, os esforços relativos à saúde restringem-se à solidariedade internacional através de grandes organizações humanitárias, de organizações não governamentais (ONGs) e das principais agências especializadas das Nações Unidas, principalmente, a OMS. As classes urbanas mais abastadas recorrem à assistência privada, mas os pobres só consomem lançam mão de tais recursos quando a necessidade é urgente. Em tais casos, recorre-se à solidariedade tradicional (assistência dita comunitária): economia, quotização, doações, ajuda familiar, etc. Entretanto, “os sistemas ’tradicionais’ de proteção social oferecidos pelas comunidades são ameaçados pela ’modernização’ das economias (urbanização, mobilidade geográfica, aumento do individualismo), pelo crescimento demográfico e pela persistência de crises econômicas e políticas (diminuição do nível de vida e insegurança) [7] ”. O Gabão está entre os raros países da África que vivem uma situação relativamente satisfatória, em matéria de cobertura social. Esse privilégio se explica pela existência de indústrias mineradoras (petróleo) e carboníferas de grande rentabilidade. Os dois setores figuram entre as principais fontes de emprego do país. Segundo o ministério dos Negócios Sociais, 61,48% da população é favorecida pela cobertura social. Três ramos são referentes à área de saúde: a distribuição gratuita de medicamentos, a cobertura das despesas de hospitalização e o acesso a um fundo (Evasan) que permite transferências para os hospitais estrangeiros melhor equipados, sobretudo os franceses. A degradação da proteção social contrasta com as ambições dos jovens Estados africanos, nos primeiros anos de independência. Os novos poderes haviam colocado o Estado do Bem-estar Social no centro de seu programa. Essa reivindicação tinha alimentado o combate contra a administração colonial. As lutas sindicais, na África francófona, reivindicavam a extensão de direitos sociais exclusivos dos cidadãos europeus que viviam no continente. Algumas conquistas tinham sido obtidas, principalmente, a favor dos trabalhadores urbanos “autóctones” [8]. O sociólogo Olayiwola Erinosho mostra que a derrota dos governos africanos, em termos de proteção social, enfraqueceu seu crédito e sua legitimidade aos olhos das populações locais [9].
A frustrada “iniciativa de Bamako”
Em 1987, os ministros da saúde do continente negro tentaram reagir adotando a “Iniciativa de Bamako” (Mali), com o patrocínio da OMS e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) [10]. Até então, a OMS defendia a idéia de sistemas de saúde financiados pelos Estados e gratuitos para os pacientes. Porém, o enfraquecimento dos Estados e a má gestão levaram-na a renunciar a essa estratégia. A “Iniciativa de Bamako” é marcada, sobretudo, pelo objetivo de assegurar ao conjunto da população o acesso aos cuidados de saúde primária a preços acessíveis; de minimizar os custos e de restaurar a confiança dos usuários nos serviços públicos de saúde. Este plano era visto como capaz de melhorar a qualidade dos serviços e decentralizar as decisões – principalmente em favor das comunidades locais.
Os resultados não estiveram à altura das esperanças. Segundo a OIT, a “iniciativa” padece por ser “isolada no interior do sistema atual, raramente tendo tentado integrar-se à política global [11]”. Falta uma visão de conjunto que leve em conta a extensão da pobreza geral e a do setor informal. A ausência de diálogo social e de escuta das propostas associativas prejudica os esforços. A falta de controle dos governos sobre as políticas macroeconômicas, decididas sob a influência dos financiadores, limita suas ações e os encarcera numa filosofia liberal que reprime o poder público. Por outro lado, as sociedades e as economias ficam muito vulneráveis aos choques desestabilizadores como a insegurança alimentar ou os efeitos de certas pandemias, como a Aids.
Segundo Charles Raymond Dotou, médico consultor junto das Nações Unidas, a ausência de dados confiáveis e de avaliações suficientes impede a elaboração de uma reforma eficaz de proteção social. “A maioria [das instituições internacionais] financia às cegas”, estima ele, destacando a falta de coordenação. Assim, onde o Banco Mundial procura desenvolver a assistência privada, a OMS ou a OIT tentam sustentar as fundações sem fins lucrativos [12]. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) instalou, por exemplo, um programa chamado de Estratégias e Técnicas contra a Exclusão Social e a Pobreza (STEP). Com a proposta de ser “um instrumento para combater a exclusão social e para estender a proteção social aos grupos excluídos no mundo”, o STEP coopera, sobretudo, pela criação de micro-projetos de fundações de saúde em quase toda África. Um grande número dessas estruturas veio à luz em setores tão diversos como o transporte rodoviário, a pesca artesanal, as cooperativas agrícolas ou ainda a construção civil.
No meio do caminho, o FMI
A maioria dos observadores estima que a promoção da segurança social na África passa pela busca de uma complementaridade entre os diferentes sistemas públicos e comunitários, as seguradoras e as fundações. Assim quando o governo de Gbagbo conseguiu que se adotasse a Lei sobre a Segurança Universal contra Doenças (AMU) em outubro de 2001, a OIT manifestou reservas. “A principal inquietação emitida pelo BIT a propósito da AMU era de ver esse novo sistema de proteção social, por mais abundante que seja, destruir as estruturas existentes, sem ter sido testado”, como relata um dos especialistas que estudou o tema. Segundo os especialistas internacionais, a AMU da Costa do Marfim necessitaria anualmente de 400 bilhões de francos CFA (600 milhões de euros) repartidos entre os principais agentes sociais — em primeiro lugar, o Estado. Um orçamento desse tipo implicaria, obrigatoriamente, uma importante contribuição direta e constante dos poderes públicos. Principalmente, para compensar a ausência de contribuições financeiras reduzidas das populações rurais sem rendimentos fixos e dos grupos urbanos que sofrem com o desemprego, ou sobrevivem graças à economia informal. Todavia, tais despesas são incompatíveis com a doutrina imposta pelo FMI aos países submetidos às prioridades neoliberais (planos de reajuste estrutural e outros), como é o caso da Costa do Marfim. Esse círculo vicioso é destacado por Lambert Gbossa, diretor da agência da OIT em Kinshasa (República Democrática do Congo). O debate sobre a proteção social na África “deveria sair do estreito quadro original no qual ele sempre esteve inscrito, para permitir que se trate, de forma mais geral, dos problemas novos: o avanço da pobreza, a extensão do setor informal, a relação entre a proteção social e o emprego, e a capacidade de organização das populações [13]”.
(Trad.: Leonardo Teixeira da Rocha), leorocha2003@yahoo.com.br
[1] Ler Colette Braeckman, “Grande fatigue des Ivoiriens”, Manière de voir 79 « Résistences africaines », fevereiro-março de 2005.[2] Organização Internacional do Trabalho, La Protection sociale, vers un nouveau consensus, Genebra, 2001.
[3] Charles Raymond Dotou, « La Carence sanitaire des Etats africains », Géopolitique africaine, nº21, Paris, janeiro 2006.
[4] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit., p.45.
[5] Ministério dos Negócios Estrangeiros, Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, estudo realizado por Sylvie Boyer, Caroline Delesvaux, Jean-Pierre Foirry e Christian Prieur, Paris, setembro de 2000, p.83.
[6] Para uma análise da experiência de gratuidade dos cuidados na África do Sul a partir de 1994, ler Ministério dos Negócios Estrangeiros, Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, op. cit., p.70 e seguintes.
[7] Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, op. cit., p.81.
[8] Ler Olayiwola Erinosho, « African welfare systems in perspective », Revue internationale des sciences sociales, Paris, junho de 1994.
[9] « African welfare systems in perspective », op. cit.
[10] Ler Valérie Ridde, L’iniciative de Bamako, 15 anos après, Banque mondial, Health, nutrition and population (HNP) discussion paper, Washington, outubro de 2004.
[11] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit.
[12] Ler Maria-Pia Waelkens e Bart Criel, Les mutuelles de santé en Afrique subsaharienne, Banque mondiale, Health, nutition and population (HNP) discussion paper, Washington, março de 2004.
[13] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit., p.5.
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