"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, abril 09, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 08/04/08

O mito do campo e uma polarização desesperada. Artigo de Flávio Koutzii

No centro do conflito entre o governo argentino e proprietários rurais está a questão da redistribuição de renda. Do ponto de vista político, a direita argentina, que estava desprovida de agenda, encontra no discurso da “defesa do campo” uma possibilidade de se rearticular em nível nacional. O artigo é de Flávio Koutzii, sociólogo, e publicado pela Agência Carta Maior, 08-04-2008.

Eis o artigo.

A questão que dominou o cenário político na Argentina, a partir de 11 de março deste ano, foi deflagrada pela decisão do governo de atrelar a cobrança de tributos sobre a exportação de produtos primários (“retenciones”) à evolução dos preços desses produtos no mercado internacional. Com essa medida, esses tributos, que eram da ordem de 33%, passaram para algo em torno de 42-43%. A adoção de um sistema móvel para a cobrança de tributos sobre produtos agrícolas, sem elaboração industrial, se dá em um momento de alta sustentada do preço desses produtos no mercado internacional, sobretudo no caso da soja. É importante ter isso em mente para entender o significado da decisão de relacionar a cobrança de tributos à situação do preço dos produtos agrícolas em nível mundial.

Mais do que uma questão técnica – e esse é o ponto fundamental acerca desse tema – trata-se de aproveitar o momento que as exportações têm um preço mais favorável, para instituir um mecanismo de redistribuição de renda. Não se trata, portanto, de uma decisão tecnocrática, mas sim de uma decisão política e social do governo da presidente Cristina Kirchner. Essa decisão implica o aumento de recursos de origem tributária para irrigar melhor a capacidade do Estado argentino de desenvolver as políticas que, é importante destacar, tiraram a economia argentina do fundo do poço. Esse é um tema crucial que deve ser lembrado, pois a memória da direita é curta.

A redistribuição de renda. Este é o ponto.

O que foi o “milagre argentino”? Foi a capacidade do país se recuperar, em um curto espaço de tempo, da tragédia econômica de responsabilidade da ditadura militar e da década da traição menemista, quando houve a aplicação integral da receita neoliberal. Foi a década da privatização dos aeroportos, dos sistemas aduaneiros, da Aerolíneas, da YPF, dos Correios, da telefonia, dos trens e do metrô. Ao contrário do Brasil, onde houve certa resistência e não conseguiram privatizar tudo, na Argentina a obra neoliberal foi completa. O que nenhum analista honesto pode negar é que o governo Kirchner, além dos enfrentamentos que teve coragem de ter nos terrenos político, institucional e especialmente na área de direitos humanos, conseguiu recuperar a economia argentina. Mais do que isso conseguiu levá-la a resultados positivos, sistemáticos e contínuos, nos últimos cinco anos.

Neste período, a economia argentina recupera-se, crescendo a uma média de 8% ao ano. As taxas de desemprego, que chegaram a níveis dramáticos durante o decanato menemista, também melhoram expressivamente. Portanto, a economia é revitalizada a partir de medidas internas e também, é verdade, a partir de uma sincronia bem-vinda com algumas variáveis da economia mundial, especialmente o aquecimento do preço internacional das principais commodities do país. O que é fundamental entender é que a decisão da presidente Cristina Kirchner é uma decisão articulada com o processo dos últimos cinco anos. A questão central aí é redistribuição de renda. É disso que se trata. Estamos falando de um Estado que começa a recuperar capacidade de intervenção em benefício do conjunto da sociedade.

O retorno do mito do “campo”

Aqui é importante refletir sobre uma questão que não é menor. Do ponto de vista de uma esquerda mais exigente, o objetivo da luta política de esquerda não é exatamente só uma melhor distribuição de renda. Este seria um horizonte muito modesto. É e não é. No caso da Argentina, se vê como, em torno da oposição a um aumento de tributos, se constrói um pólo político que consegue se cobrir com o manto “nobre” da afirmação: “de que é um movimento do campo como uma totalidade”. A luta seria entre o “campo” e o governo. E na forma pela qual o conflito político se cristaliza desde o primeiro momento, na polarização Campo x Governo.

A escolha do “campo” como categoria totalizante permite à direita evocar imediatamente para si a Argentina dos anos 20 do século passado, quando o país era a sexta economia do planeta e considerado o “celeiro do mundo”. De fato, nesta época, a Argentina era a maior produtora de carne e de trigo do mundo, o que permitia à elite oligárquica de então (os grandes proprietários rurais) se apresentar como os donos do país no exercício do poder e como os pais da pátria no exercício de consolidação da sociedade argentina como um todo. Então, a elite do campo argentino puxa imediatamente para si a idéia de que “eles fizeram a Argentina” e que, portanto, combater “o campo” (através de uma tributação considerada excessiva) é como querer destruir um alicerce da pátria.

Assim, na disputa político-ideológica, os interesses desse setor (que sempre são de maximizar seus lucros) ganham ar de nobreza a partir da evocação de uma espécie de raiz histórica e de uma mitologia que já não corresponde aos fatos. Essa tática ganhou força também em função de um erro de abordagem cometido pelo governo. Esse erro ocorreu, primeiro, em não construir socialmente sua decisão, e segundo, no primeiro discurso feito pela presidente Cristina Kirchner sobre o tema, no dia 25 de março, 14 dias depois do início do conflito.

Cabe observar que ela fez quatro grandes intervenções públicas em um período de oito dias, o que é um fato inédito na história recente da Argentina. Esse primeiro discurso ocorreu no momento em que os proprietários rurais, com apoio de setores de pequenos e médios agricultores, cortam as rutas, bloqueiam a passagem dos caminhões e atingem, assim, o abastecimento de alimentos, num processo similar ao que ocorreu no Chile durante o governo Salvador Allende.

O erro do governo

Neste cenário, inicia-se uma tentativa de desqualificação da figura da presidente Cristina Kirchner, similar ao que a elite brasileira tentou (e ainda tenta) fazer com Lula, numa espécie de diminuição permanente da estatura do personagem. Esse processo é alimentado com uma série de preconceitos e reservas em relação a ela. Pressionada por tal cenário, a presidente faz um discurso à nação no dia 25 de março. Neste discurso, marcado por um tom de confronto, ela não distingue, na sua fala, o pequeno e o médio proprietários dos grandes proprietários. Isso dá espaço para que seus adversários reforcem o discurso da “soberba” como marca de Cristina Kirchner. Ao não falar sobre as diferenças reais de situação social dentro da própria produção do campo, ela ajuda a unir todos os produtores, tanto os pequenos quanto os grandes. Um erro indiscutível, que ela procura corrigir no seu segundo discurso à nação.

No segundo discurso, ela lembra a cifra que 80% dos proprietários do campo são responsáveis por 20% da produção agrícola (pequenos e médios agricultores). Os outros 20% são responsáveis por 80% da produção (agronegócio exportador). Esses números mostram a dimensão do erro do governo. A oligarquia do campo ganhou de graça um aliado importante, a Federação Agrária, entidade de tradição progressista, que reúne pequenos produtores. Isso permitiu o discurso da unidade do “campo” contra o governo.

O cacerolaço e a reação do governo

No dia 26 de março, as centrais agrárias anunciam que seria realizado um cacerolaço (panelaço) às 20 horas daquele mesmo dia como forma de protesto e de solidariedade com o campo. Foi impressionante. Centenas de pessoas caminhando pela avenida Santa Fé em direção à Praça de Maio. Havia muitos jovens e o perfil dos manifestantes era de classe média alta. Os bairros do norte de Buenos Aires baixavam para a praça em busca de seu encontro com a história.

A manifestação foi muito expressiva, indicando uma polarização mais clara, não só de classe, mas de setores da sociedade. A cena deste 26 de março era, então, a seguinte: estradas bloqueadas, um cacerolaço espetacular e depois um certo conflito na Praça de Maio entre os manifestantes e alguns setores sindicais e piqueteros favoráveis ao governo. Há uma enorme aceleração da crise política e um sentimento de perigo de desestabilização: o panelaço lembrava 2001 (a queda de De la Rua); os cortes das estradas, a perda de autoridade do governo (eleito cinco meses antes); o desabastecimento, o Chile de Allende; a demonização da presidente mulher, a retomada do anti-peronismo; e tudo junto, a sombra da tentação golpista e o temor traumatizado de 1976. Há aqui uma mistura de símbolos, de memórias e de vivências da sociedade argentina que fizeram a solenidade inquieta do momento.

Cristina Kirchner exige a liberação das estradas para iniciar qualquer negociação. Alguns dias depois, vem a resposta mais expressiva em favor do governo: uma manifestação de apoio na Praça de Maio que reúne cerca de 80 mil pessoas, a maioria vinda dos bairros populares de Buenos Aires. O governo mostra força, os líderes do movimento de protesto recuam e anunciam a suspensão dos bloqueios nas estradas para iniciar negociações.

A agenda encontrada

Do ponto de vista político, a direita argentina, que estava desprovida de agenda, encontra no discurso da “defesa do campo” uma possibilidade de se rearticular em nível nacional. Os próximos embates definirão qual o real poder dessa rearticulação que se opõe aos planos do governo de instituir novas políticas capazes de alterar o quadro de distribuição de renda no país. O assunto não terminou.

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