O conflito que já matou e desalojou de suas casas milhões de pessoas, inspirou protestos raivosos de ONGs e celebridades e preocupa países vizinhos acaba de completar cinco anos. E, por maior que seja a semelhança, não estamos falando do Iraque, e sim de Darfur, no Sudão. Mais de 200 mil mortes, inúmeros acordos de paz fracassados e dezenas de manifestações depois, o conflito em Darfur continua longe do fim. A reportagem é de Mariana Della Barba e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 06-04-2008.
Para quem observa de fora, a cena envolve uma missão de paz apoiada pela ONU que ainda demorará meses para entrar com força na região; dois terços da população de 6,5 milhões à mercê de ajuda humanitária e diplomatas discutindo sobre o conceito de genocídio. Quem presencia o conflito de perto, como a brasileira Silvia Yasuda, relata como as pequenas tragédias do dia-a-dia formam a pior crise humana da atualidade.
Quando começou, em fevereiro de 2003, o conflito envolvia basicamente muçulmanos negros de Darfur que se rebelaram contra o governo, alegando que Cartum os estava negligenciando ao favorecer os muçulmanos de etnia árabe.
Não que nessa época a briga fosse fácil de ser resolvida. Mas agora, com dezenas de milícias combatendo até fora das fronteiras do país, a situação é bem mais intrincada. E, assim como os rebeldes e os refugiados, os entraves também se multiplicam a cada mês.
Em entrevista à reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, especialistas em Sudão destrincharam cinco dos principais obstáculos para uma solução do conflito: sua origem, a fragmentação das milícias, os refugiados, o impasse com a comunidade internacional e a ação da China no país.
Seja nos Bálcãs ou na África, a origem de boa parte das disputas está na formação do país. No Sudão, não é diferente. Após ser colonizado pelos britânicos, foi repartido pela elite muçulmana árabe, que queria impor leis islâmicas. “Eles seguraram o país unido à força, com o velho jogo imperial do dividir para governar”, diz Richard Dowden, diretor do Royal African Society, da Universidade de Londres.
MASSACRE
Dowden explica que, quando um acordo de paz pôs fim à guerra civil entre norte e sul, outras partes do Sudão, como Darfur, se sentiram excluídas do governo e decidiram lutar. Uma política agrícola equivocada e fortes secas empobreceram Darfur e exacerbaram a disputa. “Quando rebeldes atacaram as tropas do governo, em 2003, Cartum respondeu enviando janjaweeds (milícias árabes tribais) para destruir o inimigo.”
Responsáveis pelas maiores atrocidades cometidas em Darfur, os janjaweeds passaram a incendiar vilas, seqüestrar, estuprar e matar milhares de civis. O massacre atraiu atenção internacional e Cartum passou a negar qualquer ligação com as milícias. Acordos de paz efêmeros dissolveram alguns grupos armados, que logo formaram outros ou se juntaram aos rebeldes patrocinados pelo governo. É daí que surge o segundo entrave para o fim do conflito: a multiplicação das milícias. “O fracasso das negociações de paz provocou uma incrível fragmentação dos rebeldes”, diz Dowden.
Autor de vários livros sobre a África, como Darfur: a Short History of a Long War (“Curta história de uma longa guerra”), o britânico Alex De Waal assegura que “a completa quebra de confiança entre as partes beligerantes é o maior obstáculo à paz em Darfur”.
O número de milícias cresceu tanto que incomoda até o governo, que fomenta essa divisão. Cartum chegou a reconhecer o impasse e se comprometeu a trabalhar para unir esses grupos. Enquanto a promessa não é cumprida, líderes rebeldes recusam-se a negociar e milhares de civis têm de fugir de Darfur.
Os mais de 2,5 milhões de sudaneses desalojados pela guerra são outro obstáculo apontado pelos especialistas. Entre os refugiados, 280 mil estão no Chade. O fardo para o país é tanto que o governo local proibiu a entrada de mais sudaneses, que acabam trazendo o conflito para o território vizinho. “A comunidade internacional, que é tão leniente com (o presidente sudanês) Omar al-Bashir, deve procurar outro país para abrigá-los”, disse o premiê chadiano, Nouradine Coumakoye, em fevereiro.
CONSPIRAÇÃO
A crônica falta de entendimento entre Cartum e ONU, União Européia e EUA também emperra o processo de paz. “O governo sudanês não confia na comunidade internacional e acredita que há uma conspiração liderada pelos americanos para derrubá-lo. Diante disso, não vê razão para aceitar acordos ou tréguas”, disse De Waal. Dowden é ainda mais taxativo: “O governo linha-dura de Darfur venceu ao perceber que os países ocidentais não têm autoridade moral, apoio da ONU ou força militar pra intervir.”
O americano John Prendergast, ex-conselheiro da Casa Branca e diretor do projeto Enough (Basta), acredita que o fato de os EUA tratarem o Sudão como um Estado terrorista dificulta a solução para o genocídio - como ele e Washington qualificam o conflito. “O presidente (George W.) Bush vive repetindo o termo genocídio, mas até agora não criou um plano sério para Darfur, nem militar nem político, e só piorou a situação, ao impor sanções que não afetam os responsáveis.”
Além disso, Prendergast afirma que a guerra no Iraque está sugando todos os recursos políticos, diplomáticos e militares dos EUA, impedindo o envio de tropas. No entanto, outras nações que não têm soldados no Oriente Médio também hesitam na hora de enviar seus militares para integrar a força de paz da ONU, que tem hoje apenas 9 mil homens.
A desconfiança e o desinteresse do governo sudanês em relação aos órgãos internacionais também prejudicam a ajuda humanitária no país - a maior do mundo, envolvendo mais de 75 ONGs e 15 agências das Nações Unidas. No mês passado, a ONU cortou pela metade sua remessa de alimentos a Darfur, onde 80 crianças morrem de desnutrição por dia, por causa de ataques a comboios de mantimentos .
AMIZADE PERIGOSA
A última peça do xadrez em Darfur é a China, principal parceiro comercial do Sudão e seu maior investidor estrangeiro. A amizade sino-sudanesa é, no mínimo, perigosa. Pequim compra cerca de 60% da produção de petróleo do Sudão, estimada em 500 mil barris por dia, e afirma que isso está impulsionando o crescimento do país. Mas, em troca do petróleo, Pequim vende armas para Cartum, muitas das quais acabam nas mãos dos janjaweeds.
Um relatório da Anistia Internacional aponta que, em 2005, o Sudão comprou dos chineses armas, aviões e peças de reposição no valor de US$ 83 milhões. Com essa “parceria”, os sudaneses ganham a confiança necessária para desafiar a ONU e os EUA.
Mas, para Prendergast, a comunidade internacional tem de virar o jogo e aproveitar a ação chinesa para pressionar Cartum: “Estamos vivendo um momento de ouro. Sob intensa pressão internacional por causa da Olimpíada, Pequim agora está mais receptiva às mudanças em sua política para o Sudão porque não vai arriscar sofrer um boicote aos Jogos.”
O primeiro a seguir o conselho de Prendergast foi o diretor de cinema Steven Spielberg, que desistiu do cargo de consultor artístico dos Jogos de Pequim para protestar contra o que qualifica como omissão chinesa em relação ao conflito.
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