Uma entrevista com o autor do livro Por que não nos odeiam. A verdadeira história do conflito de civilização. Uma análise corrosiva e brilhante da globalização e das formas de resistência que se desenvolvem no norte e no sul do planeta. A reportagem e a entrevista são de Benedetto Vecchi e foram publicadas pelo jornal Il Manifesto, 21-05-2008.
O estilo de vida, as instituições políticas, em suma o etos dominante nos Estados Unidos corre o risco de ser submerso na crescente maré de latinos, portadores de identidade orgulhosa em relação à estadunidense. Fecha-se assim o livro de Samuel Hungtinton no “conflito de civilização” subterrâneo que caracteriza a vida do planeta. O considerado cientista americano não podia, por certo, prever que o título do seu folheto se tornasse a chave interpretativa de todos os conflitos em que os Estados Unidos se vêem envolvidos. Há o conflito de civilização, de fato, atrás do ataque de 11 de setembro ao World Trade Center, e a reação estadunidense culminou na invasão do Afeganistão e do Iraque. Há conflito de civilização atrás das tensões entre os Estados Unidos e o Irã ou entre Washington e a Coréia do Norte. No horizonte, está-se esboçando, talvez, o pai de todos os conflitos de civilização do futuro, que será entre Pequim e todo o mundo ocidental.
De um lado então o “nosso” Ocidente; do outro, o resto do planeta. Uma representação em que, para o Ocidente, a palma da superioridade faz parte das instituições políticas, do respeito aos direitos individuais, da democracia, enquanto o mercado livre, naturalmente, é o melhor modo para produzir riqueza.
Mark LeVine é um jovem estudioso – ensina História Moderna do Oriente Médio na Universidade da Califórnia – para quem o paradigma do conflito de civilização é restrito; na verdade o considera o resultado de uma campanha ideológica real e oportuna para garantir a hegemonia ocidental no planeta. No volume Porque Não nos Odeiam (DerivaApprodi), sustenta que há muitos mais pontos de contato entre um homem de negócios do Marrocos e da Califórnia do que entre um operário de Chicago e um manager wasp da Wal-Mart. Para LeVine, na realidade, a globalização favoreceu o crescimento de uma elite global que compartilha não a religião, mas a mesma tendência de viver como um corpo separado dentro do estado-nação onde nasceram. Para o resto da população mundial, ao contrário, a articulação da identidade, das formas de vida produz uma colcha de retalhos na qual, por exemplo, o Islã convive com a música heavy metal ou o rap.
A entrevista foi obtida em duas vezes. Primeiro on-line, e depois face a face, visto que o cientista está na Itália para apresentar seu livro.
Eis a entrevista.
O seu livro transforma a imagem dominante da hostilidade do Islã em relação ao Ocidente. Sustenta, por exemplo, que não são muitas as diferenças entre um muçulmano do Cairo e um “americano médio” em relação aos terroristas, e que ambos manifestam certa hostilidade em relação ao poder constituído. É assim mesmo?
As diferenças culturais entre a América profunda – uma expressão que nos Estados Unidos é usada para indicar os brancos evangélicos, os colarinhos brancos ou os operários triturados pela globalização – e os muçulmanos conservadores do mundo árabe são, de há muito tempo, menos profundas do que as principais correntes dos estudiosos sustentam. Ambos propõem uma leitura nacionalista e religiosa de seu próprio mundo, representado como uma carvoeira sitiada por inimigos indignos de confiança, pagos por Satanás. Uma visão luciferina da realidade que os leva a justificar, se bem que da parte oposta da barricada, o conflito entre os Estados Unidos e o mundo islâmico. As identidades que expressam é “identidade resistente” caracterizada pelo medo contra tudo o que se põe em discussão, estilo de vida e autoridade consolidada. Daí o pedido dos líderes que exprimem virilmente força e determinação no reagir, em nome do grupo, às ameaças do “inimigo”. Esses os pontos de contato.
Há, todavia, uma coisa que me surpreendeu enormemente nas minhas tardes prolongadas no mundo islâmico: os muçulmanos conhecem melhor que nós, estadunidenses, a história da relação entre o Ocidente e o mundo islâmico. Isso provoca uma “desconexão” entre quanto os americanos e a maioria dos muçulmanos levam em consideração.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a maioria da população acreditou que a escolha de Washington para invadir o Afeganistão e o Iraque era cheia de intenções “nobres” – a liberdade, a democracia, os direitos humanos, a segurança – e, não obstante os desastres sociais e políticos provocados, poucas são as dúvidas manifestadas em relação à boa fé da nossa política estrangeira. Diferente é, ao contrário, o julgamento dos mulçumanos, que se limitam a constatar empiricamente que aquela escolha era um contra-senso. Essa desconexão não produz, todavia, um ódio em relação aos estadunidenses: se é odiada, como admitiu muitas vezes o próprio Pentágono, a política estrangeira de Washington. Por essas razões, considero essencial definir uma agenda política que favoreça o relacionamento entre ativistas europeus, estadunidenses e ativistas presentes nos países islâmicos. Uma agenda política que ofereça aquela “cultura de interferência” dentro da qual teçam alianças para construir uma globalização inclusiva, baseada em um desenvolvimento econômico sustentável e igualitário.
O senhor escreve muito sobre a difusão global de estilos de expressão, sobre formas artísticas que vêm moldadas segundo os contextos locais. O Senhor quer dizer que a globalização neoliberal está parada, enquanto a cultural não?
Na atual globalização, o social e o econômico foram “culturalizados”. Explico-me: as empresas baseiam seus lucros no poder da marca, enquanto fazem uma rede de empreendimentos externos fazer o trabalho “sujo”. Tudo isso significa que empresas, como Nike ou Microsoft, vendem a idéia de um produto que é produzido por outros. Também, no livro escrevo sobre “walmartização” da economia global. Wal Mart não é somente uma empresa transnacional, mas também um modelo de relação entre capital e força de trabalho oposto àquele normalmente definido como fordista. Nas fábricas automobilísticas de Henry Ford, é sabido, os salários eram relativamente altos, de tal modo que os operários podiam comprar o modelo T que produziam. Wal Mart, ao contrário, paga salários tão baixos que os seus empregados conseguem apenas sobreviver. Essa tendência de rebaixamento salarial vale em todo o mundo. Por exemplo, na Jordânia, as empresas não contratam os trabalhadores jordanianos ou palestinos, mas os homens e mulheres provenientes de Bangladesh ou do Paquistão, porque são “mais baratos”; desse modo, pode-se pagar-lhes pouquíssimo e rapidamente podem ser substituídos a qualquer momento. E isso acontece também em Dubai, em Israel, em qualquer lugar.
Atualmente, Rotana, o gigante saudita do entretenimento, traz à luz produtos culturais dentro de um modo de produção que não é assim tão diferente do que os intelectuais islâmicos denunciavam como orquestração ocidental de eliminar a diversidade cultural do Islã. Ao mesmo tempo, são manifestadas fortes tendências underground em que a hibridização entre o Islã e outras “culturas” é muito acentuada. Por exemplo, os jovens mulçumanos – o grupo demográfico mais importante dos países árabes – produzem artefatos culturais “contaminados”. E, desse modo, existem muitíssimos grupos de jovens islâmicos que tocam Heavy Metal. Essa é a “cultura de interferência”, o lado positivo da globalização que pode ajudar a formação de ações políticas e relações econômicas alternativas àquela proposta pelos extremistas neoliberais ou religiosos.
No volume, a globalização é sinônimo de desigualdade, uma bomba-relógio que pode trazer uma nova guerra global bem mais temível do que aquela preventiva desejada por George W. Bush. Cresce, além disso, a ascensão da China e da Índia. O senhor não acredita que realmente o ingresso fragoroso deles na boa sala de estar da economia mundial trará outro tipo de globalização e que precisará considerar recomposta aquela que o pesquisador Ken Pomerranz chamou de eterna “grande divergência”?
O livro de Pomeranz A grande divergência é importante, porque convida a olhar os eventos atuais dentro de uma perspectiva histórica de longa duração. Pomeranz afirma que até 1750 a China era a sociedade econômica e socialmente mais desenvolvida do mundo. Então, uma combinação de fatores (presença de enormes recursos naturais como o carvão e a madeira unidos ao acesso colonial às minas de prata do Novo Mundo) permitiu a alguns países o velho continente – a Inglaterra, França e mais tarde a Alemanha – conquistar a liderança da economia mundial. Concordo com essa reconstrução, porque ajuda a compreender o fato que o desenvolvimento capitalista europeu, e, mais tarde, o estadunidense, baseou-se sobre o que eu chamo de “a matriz da modernidade”. O colonialismo e o nacionalismo são fenômenos amplamente estudados: sem eles não teria sido possível o desenvolvimento capitalista.
Igualmente estudada é a tendência de reduzir os fenômenos sociais à entidade mensurável. Uma tendência à racionalização usada para construir a ideologia sobre superioridade ética, cultural do Ocidente com relação ao resto do planeta.
A atual relevância da China e da Índia no panorama mundial está seguramente em contra tendência em relação à história dos últimos séculos. Todavia, a realidade que está escondida atrás do “milagre asiático” é menos rósea que contínua. Na China, por exemplo, a democracia permanece uma miragem, ao passo que a opressão em que é mantida grande parte da população e o aumento das desigualdades sociais são os preços pagos pelos chineses pelo desenvolvimento econômico. Para completar esse triste afresco há o deslocamento voraginoso de milhões de camponeses em direção à cidade. A Índia, por sua vez, é com certeza um país democrático, mas com milhões de trabalhadores que recebem salários um pouco acima do nível de pobreza, enquanto se multiplicam as denúncias de corrupção do pessoal político e da burocracia estatal. O milagre econômico chinês e indiano está, sim, mudando o equilíbrio na globalização, mas não representa um modelo alternativo para ela. A China e a Índia constituem-se um exemplo de como funciona hoje a globalização.
Segundo o senhor, o Islã tornou-se uma marca global. Provocação por provocação: não acha que a reivindicação de uma identidade islâmica seja, na realidade, um modo para afirmar uma marca que participa do grande banquete da economia mundial?
Depende de qual Islã se fala. Existem, de fato, inumeráveis expressões da cultura islâmica, muitas das quais estão em conflito profundo, e freqüentemente radical, uma contra a outra. Por exemplo, se é desenvolvida uma cultura islâmica neoliberal, freqüentemente é ridiculariza como o “Islã do ar condicionado”, que é explícita da burguesia muçulmana, uma classe social protagonista na definição das políticas neoliberais dos regimes autoritários como o Egito, o Marrocos, a Tunísia, onde a repressão dos grupos islâmicos e de outros opositores foi particularmente brutal. A elite islâmica neoliberal vive em comunidade fechada, exibem artigos de grife, estão sempre conectados à rede, exatamente como a elite ocidental. Comportamentos e estilos de vida que têm a sua representação na visão distópica proposta na arquitetura de Dubai.
Até eu creio, então, que a elite dos países muçulmanos participa do grande banquete da economia mundial. Há, no entanto, mulheres e homens islâmicos que lutam contra a pobreza em seus países. A verdadeira questão é como todos nós, independentemente de nossa religião ou nacionalidade, podemos sentar-nos a uma mesa em que cada um possa comer segundo sua necessidade. Isso significa achar uma saída do neoliberalismo, antes que os danos sociais, ambientais e políticos desses produtos se tornem irreversíveis.
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