Para a cientista política Maria Celina D'Araújo, do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica da FGV, o episódio com os jovens do morro da Providência assassinados após serem detidos pelo Exército precisa ser tratado como grave crise institucional de uso eleitoral das Forças Armadas para beneficiar um grupo político. A reportagem e a entrevista é de Antônio Gois e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 18-06-2008.
Autora de estudos e livros sobre a atuação das Forças Armadas, ela diz que o governo Lula tem empurrado os militares a funções que não são as deles e que eles não querem assumir, como o papel de polícia ou a atuação em projetos sociais.
Segundo Maria Celina, estão "brincando" com as Forças Armadas, desvirtuando-as de sua função como se fossem a solução para todos os problemas.
Eis a entrevista.
Em 2006, quando o Exército ocupou o morro da Providência para tentar recuperar fuzis roubados, a senhora disse, em entrevista à Folha, que a atuação nas ruas por tempo indeterminado era um risco alto e que, em todas as vezes em que isso ocorreu, eles acabaram respondendo por abusos de poder. Não foi isso que aconteceu agora?
O que eu sempre disse foi que um soldado não é treinado para atuar como polícia. Quando isso acontece, acabam surgindo problemas de abuso de poder.
Além disso, quando se põe um soldado para combater o narcotráfico, há sempre o risco de contaminação e de ele se envolver com os traficantes. Foi o que ocorreu na Bolívia, na Colômbia, no Paraguai e nos países que colocaram os militares para combater bandidos. Isso não foi uma profecia, mas um diagnóstico comum aos chefes militares que conheço.
Neste caso específico da Providência, o que considero mais grave é o fato de os militares estarem trabalhando num projeto político para beneficiar um candidato [à prefeito da cidade] que é do partido do vice-presidente da República e ex-ministro da Defesa [José Alencar].
É inédito no Brasil ver as Forças Armadas usadas em projetos nitidamente político-eleitorais. Já tivemos experiências de intervenções dos militares em comunidades e acusações de abuso de poder, mas seu uso como braço de um partido ou até de uma igreja [Marcelo Crivella, do PRB, é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus], é a primeira vez. É muito grave.
Os militares têm interesse em exercer essas funções?
Não acredito. Militar não quer subir morro para combater bandido ou fazer serviço social. São atividades que a sociedade precisa, mas ela tem os órgãos certos para cada função.
O que a gente observou no governo Lula foi um retrocesso do ponto de vista da política militar, que foi o uso político-eleitoral das Forças Armadas, contra a vontade dos militares, que têm que obedecer. Isso reflete uma falta de compreensão da nossa classe política.
Estão brincando com as Forças Armadas como se elas fossem uma agência a ser usada a serviço de qualquer problema social, econômico, de transporte ou de saúde. Claro que em todo mundo elas podem cooperar nessas atividades, mas aqui estão banalizando isso.
A imagem do Exército fica arranhada?
Sim. Pelo que me lembro, foi a primeira vez desde o fim da ditadura que as pessoas jogaram pedras no Exército. Há, sem dúvida, um crime a ser investigado porque um tenente se comportou como marginal. O comandante das operações também deve ser questionado por não ter tido capacidade de controlar seus homens.
Suponho que as Forças Armadas, que são profissionais, não vão acobertar o caso como se fazia no regime militar. Todos terão que pagar pelo que fizeram, mas o que eu estou querendo chamar a atenção é que eles não deveriam estar naquele lugar. Há no episódio uma questão fundamental a ser debatida que é o uso que estamos fazendo de nossas instituições.
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