Durante os 30 anos que marcaram a revolução econômica do país, a incrível flexibilidade trabalhista chinesa serviu de combustível para o crescimento acelerado. Agora, a China pressionada por ONGs de todo o mundo que denunciam sua política de desrespeito aos trabalhadores e também de olho na inclusão na sociedade de consumo de 100 milhões de miseráveis dispersos pelo interior e que formam um enorme contingente de mão-de-obra migratória, coloca em marcha uma grande reforma trabalhista.
A reportagem é de Cláudia Vassallo e publicada na Exame, 16-10-2008.
Mais de 7 000 pessoas - a maioria mulheres - trabalham na fábrica do grupo Stella International em Donnguan, na província de Guangdong, maior base de produção de sapatos da China e do mundo. Vestidas com um uniforme de calça e camiseta pólo e calçadas com chinelos de borracha padrão, as funcionárias do grupo Stella em Donnguan costuram, colam e arrematam modelos para algumas das mais sofisticadas marcas de sapatos do mundo - Clarks, Christian Lacroix, Kenzo, Nine West. A produção é frenética, apesar do calor infernal que faz dentro da fábrica. Não fossem todos chineses, a visão da Stella International seria de uma gigantesca linha de montagem ocidental, com painéis de controle de qualidade e retratos dos funcionários do mês.
Cotado na bolsa de Hong Kong, dono de oito fábricas e de um faturamento total de 1 bilhão de dólares, o grupo Stella é um dos produtores de calçados sobreviventes em Donnguan. Desde 1o de janeiro deste ano, quando o governo de Pequim implantou sua nova legislação trabalhista, mais de 200 fabricantes da região fecharam as portas ou migraram para países como Vietnã e Índia. Em toda a China, cerca de 67 000 pequenos negócios desapareceram. De um ano para o outro, da noite para o dia, empresas cuja competitividade estava alicerçada em mão-de-obra tiveram de se ocidentalizar - ou perecer - num momento em que a crise financeira já dava sinais de que poderia reduzir a volúpia por consumo do mercado mundial.
A chamada Lei do Contrato de Trabalho foi a resposta da China às crescentes pressões de países e ONGs, motivadas às vezes por uma preocupação genuína com os direitos humanos e outras vezes pela concorrência brutal dos produtos chineses. Durante os 30 anos que marcaram a revolução econômica do país, a incrível "flexibilidade" trabalhista serviu de combustível para o crescimento acelerado. A maior parte dos contratos entre empresas e trabalhadores era verbal e normalmente não ultrapassava os dois anos de validade. O pagamento dos salários em dia - ou mesmo dos salários combinados - era um luxo. As jornadas de trabalho não eram reguladas, o que fazia da hora extra uma instituição inexistente.
Não havia também salvaguardas legais para empregados que adoecessem, se acidentassem no trabalho ou para mulheres grávidas, e as multinacionais com operação na China normalmente impediam que funcionários da linha de montagem deixassem a empresa e se empregassem em concorrentes. Por muitas décadas, funcionou o regime de sindicato único - o próprio Partido Comunista Chinês -, que em teoria representava todos os trabalhadores, mas que na prática não tinha o menor interesse em se indispor contra a emergente indústria local.
Afinal, o projeto de país desenhado por Pequim naquele momento não levava em conta supostos direitos individuais. A China de hoje, porém, precisa ser aceita pelo mundo como uma economia moderna, capaz de atrair uma tecnologia que vai além das bolsas Prada e das bonecas Barbie. Precisa também incluir na sociedade de consumo 100 milhões de miseráveis dispersos pelo interior e que formam um enorme contingente de mão-de-obra migratória. O Comitê Central decidiu acelerar as mudanças na lei trabalhista chinesa no ano passado, quando denúncias de trabalho escravo em mais de 8 000 olarias e pequenas minas de carvão nas províncias de Shaanxi e Henan ganharam o noticiário internacional. E a reforma, inicialmente planejada para 2010, foi antecipada para entrar em vigor no início deste ano. Tais mudanças também caberiam bem para ajudar o presidente chinês, Hu Jintao, a consolidar seu legado como promotor da chamada "sociedade harmônica".
As reações foram imediatas. Durante um mês do período de formulação da nova lei, entidades, representantes de empresas e especialistas puderam se manifestar em relação às propostas de mudança. Mais de 200 000 opiniões foram colhidas - boa parte delas críticas vindas de associações que representam empresas estrangeiras com atuação na China. "Os chineses demoram muito a fazer mudanças e, quando fazem, costumam forçar a mão", disse o advogado Rodrigo do Val Ferreira, do escritório Felsberg & Associados em Xangai, durante uma palestra aos integrantes da Missão EXAME na China, evento que levou 47 empresários brasileiros ao país no mês de setembro.
Não há dados oficiais a respeito, mas estima-se que a criação de garantias como pagamento de horas extras, salário mínimo e seguro social aumente em 25% o custo da mão-de-obra chinesa. Pode-se criticar essa postura, mas, para empresas que buscaram na China uma base global de produção barata, a lei - por mais justa que seja para alguns - foi um baque. Logo após a introdução das novas regras, a japonesa Olympus, quarta maior fabricante de câmeras digitais do mundo, migrou para o Vietnã em busca de custos menores.
O mesmo caminho foi seguido pela Yue Yuen Industrial, maior produtora de tênis Nike, e por centenas de fabricantes de sapatos e brinquedos. "A maior vantagem da China na manufatura é a mão-de-obra barata", disse Chang Han-wen, diretor da Associação Nacional de Empresários de Taiwan, a uma publicação da universidade americana Yale. "Mas agora isso está mudando. E milhares de pequenas empresas instaladas no delta do rio da Pérola serão afetadas." A criação de sindicatos passou a ser incentivada. A rede americana Wal-Mart, a maior de varejo do mundo, é conhecida pelas restrições que impõe à sindicalização de seus empregados nos Estados Unidos.
Mas, na China, seus mais de 48 000 empregados filiaram-se recentemente e seus representantes agora têm acesso aos executivos locais para negociar acordos coletivos. Uma das conquistas foi um aumento de 8% nos salários para este e o próximo ano. A Justiça ainda é um ente misterioso e inacessível para a maioria dos chineses. Mas, desde o começo de 2008, o número de processos trabalhistas aumentou 106% em Pequim e 132% em Donnguan - crescimento que se repete em quase todas as províncias.
Nenhuma medida da nova lei, no entanto, assustou tanto velhos e novos capitalistas da China quanto a garantia de estabilidade no emprego dada a empregados que trabalharem mais de 15 anos ininterruptos na mesma empresa. A burocracia para demiti-los é tão grande que, na prática, eles se tornam vitalícios.
Grandes companhias reagiram por antecipação. Em dezembro do ano passado, a Huawei, fabricante de equipamentos de telecomunicações com sede em Shenzen, ofereceu um bônus a 7 000 funcionários com mais de oito anos de serviço para que eles se demitissem e fossem recontratados logo depois. O Carrefour pediu a 40 000 empregados chineses que abrissem mão de seus contratos de trabalho de dois anos antes de seu término e assinassem um novo documento. (A lei atual estabelece que a renovação por duas vezes de contratos temporários leva automaticamente à efetivação do funcionário.)
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