“Que me importa, a mim, que o leitor estaque na leitura corrente, se a impressão que lhe dou com esse termo esquecido é a mais verdadeira, a mais nítida, e, em verdade, a única que eu lhe queria dar?!”
(Euclides da Cunha)
É triste verificar que um autor da envergadura moral e cultural de um Euclides da Cunha seja tão pouco conhecido por uma nação que não aprendeu, ainda, a cultuar e valorizar seus antepassados. A repugnante série denominada ‘Desejo’, levada ao ar de 27 de maio a 22 de junho de 1990, em vez de mostrar a importância do ilustre brasileiro no contexto nacional, se preocupou apenas em mostrar aos mal informados brasileiros os desvarios de uma esposa infiel. Mas o que esperar de um povo que tem, em sua própria cédula monetária nacional, a estampa de animais em vez de seus heróis nacionais ou vultos históricos que se destacaram no campo da política, das artes e das ciências?
- Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha
Euclides nasceu no dia 20 de janeiro de 1861, em Santa Rita do Rio Negro, Fazenda da Saudade, município de Cantagalo, antiga província do Rio de Janeiro. Filho do baiano Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e Eudóxia Moreira da Cunha de Cantagalo. Aos três anos de idade, com o falecimento de sua mãe, ele e a irmã foram entregues aos cuidados da tia Rosinda de Gouveia, que faleceu dois anos mais tarde. Novamente, foram encaminhados para a companhia de outra tia, Laura Moreira Garcez, em Conceição de Ponte Nova, Fazenda de São Joaquim e São Fidélis, no Estado do Rio de Janeiro, onde iniciou o aprendizado das primeiras letras. Passou por diversos colégios antes de chegar à Escola Militar revelando-se um aluno invulgar e de sagaz inteligência.
- Escola Militar da Praia Vermelha
Assenta praça, a 20 de fevereiro de 1886, na Escola Militar da Praia Vermelha fazendo parte de uma geração de notáveis, destinada a ter uma participação fundamental nos destinos da nação brasileira. Euclides se tornou colaborador assíduo, seja em prosa ou em verso, da recém fundada revista da escola - ‘A Família Acadêmica’. O ideal republicano vicejava pelo país encontrando na Escola um de seus núcleos mais ativos, empolgando professores e alunos.
José Lopes da Silva Trovão, um dos republicanos mais atuantes, regressava da Europa e preparavam-se grandes manifestações de apoio, com a presença dos alunos da Escola Militar. O Coronel Clarindo de Queirós, comandante da Escola, comunica a visita do Conselheiro Tomás Coelho, Ministro da Guerra, para a mesma ocasião tentando evitar a participação dos seus alunos nos protestos. O Ministro passou em revista a 1ª Companhia sem que se verificasse qualquer tipo de indisciplina, mas, quando chega à 2ª Companhia, Euclides sai de forma e tenta quebrar sua baioneta, jogando-a depois aos pés do ministro a quem se dirige com violentas palavras de protesto.
É recolhido, imediatamente, à prisão. Dr. Lino de Andrade transfere Euclides para o hospital com diagnóstico de ‘esgotamento nervoso por excesso de estudo’. Os jornais republicanos exploram o fato prenunciando o fim da Monarquia. Submetido, mais tarde, a interrogatório, professa sua fé republicana com veemência e coragem provocando seu desligamento do Exército por indisciplina.
- A República
No dia 15 de novembro, eclode o movimento da proclamação da República e Euclides obtém de Benjamin Constant sua reintegração, a 19 de novembro, sendo promovido, no dia 21, a alferes-aluno. No ano seguinte, matricula-se na Escola Superior de Guerra, atingindo o posto de 2º Tenente a 14 de abril de 1890. Em dezembro de 1891, após a conclusão do curso, foi promovido a 1º tenente, da arma de Artilharia, sendo designado para instrutor na Escola Militar e, em 1893, é colocado à disposição do Ministério da Viação na Estrada de Ferro Central, distrito de São Paulo.
- Canudos
Incompatibilizado com a farda é reformado em julho de 1893. Em São Paulo, é contratado como engenheiro-ajudante de 1ª classe da Superintendência de Obras. Seu amigo, Júlio de Mesquita, do jornal ‘O Estado de S. Paulo’, convida-o para acompanhar a campanha de Canudos como correspondente. Euclides é nomeado adido do Estado-Maior do Marechal Carlos Machado Bittencourt, Ministro da Guerra, e segue para Canudos para fazer a cobertura da última fase da campanha. Ao retornar, em 1898, publica um artigo que fará parte de ‘Os Sertões’ - ‘Excerto de um livro inédito’. Ao término da Guerra de Canudos, mudou-se, com a família, para São José do Rio Pardo onde organizou suas anotações de campanha transformando-as na sua Obra-Prima.
- Os Sertões
“Conta-nos contristado os episódios horríveis da caatinga conflagrada. Repugnava-lhe aquela reação da legalidade que não lhe pareceu na altura da nossa força militar, como não agiu consoante à cultura que, como um povo civilizado e cristão, representávamos. Não acusava a indivíduos; reprovava, porém, a ação descabida, errônea, incontida dos responsáveis”. (Teodoro Sampaio)
Logo após a publicação de ‘Os Sertões’, passou a ser conhecido como o maior escritor brasileiro do seu tempo. O escritor e crítico literário Tristão de Alencar Araripe Júnior promoveu-o de ‘recruta a triunfador’. A primeira edição foi esgotada em tempo recorde e, como reconhecimento, a Academia Brasileira de Letras elegia-o para a vaga de Valentim Magalhães.
- Fronteira Brasil x Peru
“Quando poucos desviavam suas atenções para o extremo norte, ele soube conduzir a opinião nacional para a primeira meditação acerca dos destinos dele, obrigações e responsabilidades de que o país precisava tomar consciência”. (Arthur Cézar Ferreira Reis)
Os conflitos entre brasileiros e peruanos, no alto Juruá e alto Purus, anunciavam um desenrolar sangrento. O Brasil precisava assumir, no continente, uma posição mais firme nas relações internacionais.
Em 15 de janeiro 1904, Rio Branco nomeia-o chefe da ‘Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus’, cuja missão era mapear o rio Purus desde a desembocadura no Solimões até suas cabeceiras no atual Estado do Acre, definindo as fronteiras do país com a Bolívia e o Peru. A viagem foi patrocinada pelo Ministério das Relações Exteriores e realizada conjuntamente com uma comissão do governo peruano.
Com essa missão, Euclides realizava o velho sonho: o de ver a Amazônia, satisfazendo a curiosidade de muitos anos. Preparara-se para a grande aventura lendo clássicos como: La Condamine, Bates, Wallace, Spruce, Alexandre R. Ferreira, Tavares Bastos, Frei João de São José, Silva Coutinho, dentre outros. Em Belém, fica maravilhado com o Museu do Pará onde teve a oportunidade de conhecer ‘dois homens admiráveis’: o Dr. Emílio Goeldi e Jacques Huber. Chegou a Manaus, em 30 de dezembro, onde encontrou o seu antigo companheiro de Escola, Alberto Rangel, e em cuja casa ficou hospedado. Rangel escreveu um livro capital para a cultura amazônica: ‘Inferno Verde’, publicado no Rio de Janeiro em 1908.
Belém e Manaus viviam o auge do ciclo da borracha, as grandes casas de negócio eram estrangeiras, tudo era importado. Euclides se assustou com a tremenda desordem social que se agravava com a incorporação de estranhos valores alienígenas.
O trabalho de campo das duas comissões demonstrou a tenacidade invulgar de Euclides vencendo obstáculos de toda ordem: enfermidades, escassez de víveres, revolta, naufrágio e, inclusive, a desconfiança dos peruanos, que identificavam, nas atitudes dos brasileiros, manifestações que poderiam colocar em risco a sua soberania.
A visão holística de Euclides é caracterizada pelos seus comentários de cunho antropológico, aspectos do relevo, solo, fauna, flora, clima da região e sobre o caráter divagante do rio Purus, baseados na concepção do ‘ciclo vital’. Durante a viagem teve, ainda, o cuidado de recolher amostras de fósseis e rochas, posteriormente encaminhadas ao Museu do Pará (atualmente Emílio Goeldi).
Concluído o levantamento, Euclides, regressa ao Rio de janeiro onde inicia a redação do Relatório sobre a evolução fisiográfica da bacia do Purus. Terminado o Relatório, no final de 1905, o Barão do Rio Branco o mantém como auxiliar técnico. Neste período, escreve para diversos jornais suas impressões sobre a Amazônia e faz o mapeamento de diversas questões de limites defendidas pelo grande estadista. Escreve, então, em um mês, a obra ‘Peru Versus Bolívia’. Considerado por alguns, menos informados, como mero relatório técnico são na realidade páginas repletas de uma lógica insofismável e de um conhecimento fantástico da história e política do continente. Mais uma vez foi reconhecido e consagrado não só no Brasil, mas em todo continente Americano.
- Peru versus Bolívia
Como chefe da ‘Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus’ vivencia o angustiante problema do seringueiro no Acre e passa a se preocupar com a questão da demarcação das fronteiras entre a Bolívia e o Perú. Assumindo apaixonadamente partido da Bolívia, tornou-se o ‘Cavaleiro andante da Bolívia contra o Peru’, conforme ele mesmo se definia.
‘Muitos talvez não compreendam que, numa época de cerrado utilitarismo, alguém se demasie em tanto esforço numa advocacia romântica e cavalheiresca, sem visar um lucro, ou interesse indiretos. Tanto pior para os que não o compreendam. Falham à primeira condição prática, positiva e utilitária da vida, que é aformoseá-la...’ (Euclides da Cunha)
Euclides da Cunha é um imortal e como tal consegue transformar um árido relatório técnico numa obra magistral onde os argumentos de irrefutável lógica cartesiana ombreiam com a história e acompanham harmonicamente seus devaneios de pura poesia. Vamos citar apenas algumas de suas memoráveis considerações:
‘A barreira colonial renasce num majestoso traço imperialista, espichada, e deslocando-se para o norte, golpeantemente, em pleno seio da Amazônia. Depois de tantas resoluções debatidas, afirmadas e ratificadas em numerosos atos oficiais, a República sonhadora do Pacífico abandona, de improviso, os compromissos oriundos da sua existência autônoma e, abdicando a própria altitude política, volve, às recuadas, aos tempos em que ainda não existia, acolhendo-se à placenta morta da metrópole extinta, e revivendo, entre as singularidades desse processo retrospectivo, as fantasmagorias do Vice-reinado, cujo acabamento foi a primeira condição da sua própria vida’.
‘Contemplemos nos seus vários aspectos, desde o nascedouro abortício à caduquice lastimável - periclitante e vária, à mercê dos lápis arbitrários dos copistas de mapas - aquela risca fantástica e curiosa de uma espécie de geografia espectral’.
‘A tanto se alarga a amplitude de oscilação da fronteira jogada, à toa, no deserto. A agitante caduquice político-geográfica, estereotipa-se. Vê-se. Aí está, sempre dúbia, sempre incompreendida, sempre errante, sempre atarantada, hoje como há um século, a saltar de um para outro lado, numa inambulação desesperadora, ora ao norte, ora ao sul, sem pouso, sem posição, sem fixidez, sem descanso, ocupando todos os pontos, abandonando todos os pontos, fugindo de todos os pontos; e a espelhar nesta volubilidade pasmosa, em nossos dias - depois de Humboldt, depois de Castelnau, depois de Gibbon, depois de Chandless - os mesmos erros, que a obscureceram nos primeiros tempos’.
‘Não combatemos as pretensões peruanas. Denunciamos um erro.
Não defendemos os direitos da Bolívia. Defendemos o Direito’.
- À Margem da História
Em 1909, ano da sua morte, é publicado postumamente Á Margem da História, que reúne o que é de melhor de seus escritos dedicados à Amazônia.
‘A inconstância tumultuária do rio retrata-se ademais nas suas curvas infindáveis, desesperadoramente enleadas, recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou arrojando-se à ventura em repentinos atalhos. Assim ele se precipitou pela angustura afogante de Óbidos num abandono completo do antigo leito, que ainda hoje se adivinha no enorme plaino maremático ganglionado de lagoas, de Vila Franca; ou vai, noutros pontos, em furos inopinados, afluir nos seus grandes afluentes, tornando-se ilogicamente tributário dos próprios tributários: sempre desordenado, e revolto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decênios - com a ânsia, com a tortura, com o exaspero de monstruoso artista incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar perpetuamente um quadro indefinido...’
‘Ao passo que no Amazonas, o contrário. O que nele se destaca é a função destruidora, exclusiva. A enorme caudal está destruindo a terra. O Professor Hartt, impressionado ante as suas águas sempre barrentas, calculou que ‘se sobre uma linha férrea corresse dia e noite, sem parar, um trem contínuo carregado de tijuco e areias, esta enorme quantidade de materiais seria ainda menor do que a de fato é transportada pelas águas...’
‘Neste ponto, o rio, que sobre todos desafia o nosso lirismo patriótico, é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário, entregue dia e noite à faina de solapar a sua própria terra’.
‘... Esqueceu-lhe, porém, que aquele originalíssimo sistema hidrográfico não acaba com a terra, ao transpor o Cabo Norte; senão que vai, sem margens, pelo mar dentro, em busca da corrente equatorial, onde aflui entregando-lhe todo aquele plasma gerador de territórios. Os seus materiais, distribuídos pelo imenso rio pelágico que se prolonga com o Gulf-Stream, vão concentrando-se e surgindo a flux, espaçadamente, nas mais longínquas zonas: a partir da costa das Guianas, cujas lagunas, a começar no Amapá, a mais e mais se dessecam avançando em planuras de estepes pelo mar em fora, até aos litorais norte-americanos, da Geórgia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes expliquem o crescer contínuo os breves cursos d'água das vertentes orientais dos Aleganis.
Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro, e está pisando em terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritorialidade, que é a pátria sem a terra, contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa’.
- Recordando Euclides da Cunha - Teodoro Sampaio
“Ninguém lê; ninguém escreve; ninguém pensa. A mofina literária nacional traduz-se, naturalmente, numa vasta poliantéia, a 100 réis por linha. De todo absorvidos no presente, às voltas com seus interessículos, estes homens, tão descuidados do futuro, ainda menos curam o passado; e decerto não escutarão a grande voz do historiador. Entretanto, quero crer que ainda haverá meia dúzia de espíritos capazes do esforço heróico de um rompimento com tanta frivolidade. E entre estes me alinharei”. (Euclides da Cunha)
Como professor de matemática, do Colégio Militar de Porto Alegre, tenho procurado reforçar, nos meus alunos, o interesse e a importância da interpretação de textos para todas as ciências e me valho sempre deste belo texto relatado por Teodoro de Sampaio, grande amigo de Euclides.
“Conversamos uma vez a propósito do estouro da boiada e dos costumes do vaqueiro da caatinga, quando me ocorreu citar-lhe um bilhete de sertanejo cujo teor, como se vai ver, me deram por autêntico de um vaqueiro dos Inhamuns:
- Ilustríssimo Senhor meu amo. Participo-lhe que a sua boiada meteu-se em despotismo. Um boi no deixar o curral entregou o couro às varas. O resto... o resto trovejou naquele mundão.
‘Falar assim é que é falar com a natureza’, atalhou-me encantado o Euclides. ‘Não conheço deveras povo, como o nosso do sertão, que por palavras dê mais realce ao seu sentir, tenha mais energia no dizer.’
Uma boiada que ‘se meteu em despotismo’, comentávamos então, é em verdade a revolta, a convulsão da bovina caterva, mugindo, arremetendo, arrombando porteiras e levando tudo adiante de si. ‘Meter-se em despotismo’ quer dizer tudo isso numa frase sintética muito verdadeira ao sabor da gente simples do sertão.
‘Um boi que entrega o couro às varas’ é a vítima do incontido tropel sobre cujo cadáver passou a avalanche de manada e de que o provido boiadeiro tirou o couro, espichando-o por meio de varas a secar no oitão da casa da fazenda.
‘Trovejar naquele mundão...’ exprime de modo incomparável o que é o horizonte da caatinga quando, como um furacão, o sacode o arranco da boiada por entre nuvens de pó. O chão treme. O ruído da ramalhada partida e levada a peitos estruge como um trovão ao longe, numa tempestade em que aos euros se substituem bisões furibundos como que tangidos por demônios invisíveis. Euclides repetia essas frases como que a pesar-lhes as imagens, a haurir-lhes na onomatopéia significativa, a sensação real que lhe produziam”.
- Poesia de Euclides da Cunha - Gonçalves Dias
"... chegou a notícia da morte de Gonçalves Dias, o grande poeta dos Cantos e dos Timbiras. A poesia nacional cobre-se, portanto, de luto. Era Gonçalves Dias o seu mais prezado filho, aquele que de mais louçania a cobriu. Morreu no mar-túmulo imenso para talento”. (Machado de Assis)
Gostaria de fazer minhas as palavras da primeira estrofe do verso, de Euclides, homenageando o poeta Antônio Gonçalves Dias, para reverenciar, um justo tributo, a ele próprio, que tanto fez por esta Terra Brasilis. Euclides cumpriu suas missões com invulgar e total dedicação, sem medir esforços, sem jamais buscar o reconhecimento pessoal a não ser a satisfação do dever cumprido.
“Seu eu pudesse cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante!...
Filho dos trópicos que - audaz gigante -
Desceste ao túmulo subindo à Glória!..”.
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