“As crianças não são capazes de odiar: são os adultos que lhes ensinam e que, talvez, metem-lhes uma kalashnikov na mão para atirar em seus familiares. E quem exporta armas aos países em risco de guerra deveria se envergonhar”. Novamente, o arcebispo Desmond Tutu, prêmio Nobel da paz e símbolo da luta contra o apartheid, é franco e não usa giros de palavras diplomáticas.
A reportagem é de Giampaolo Cadalanu, do jornal italiano La Repubblica, 16-10-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tutu parece não dar um minuto de trégua: passa de uma declaração lapidar sobre a política interna da sua África do Sul – que corre o risco de se tornar “uma república das bananas”, diz – às missões como enviado da ONU a Gaza – “os bombardeios da parte de Israel poderiam ser um crime de guerra” – a uma viagem ao Chipre para apoiar os esforços de reunificação da ilha junto com o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter.
Mas ele encontrou tempo para ser testemunho da campanha “Riscriviamo il futuro”Save the Children. São 37 milhões os menores que se arriscam a ir para a escola por culpa das guerras. A ONG pediu uma mobilização para dar às crianças “melhor educação e menos armas”: Tutu rapidamente uniu-se à causa. [Reescrevamos o futuro], da organização
Arcebispo, muitas crianças africanas acabam recebendo uma arma na mão antes que um livro escolar. O que o senhor diria aos governos dos países, incluindo a Itália, que produzem armas e as exportam para todo o mundo?
Diria: vocês são sem-vergonhas. O tráfico de armas é uma prática perigosa e imoral. Todos os acordos internacionais vetam a venda de armas aos países envolvidos em guerras civis ou onde há opressão. Entretanto, as armas chegam, até onde os governos usam-nas contra o seu próprio povo. Penso na Birmânia, no Zimbábue. Os chineses continuam mandando armas ao regime de Mugabe, que as usa contra a população. Sabemos disso com certeza, até porque um navio fez uma parada na África do Sul e – por sorte – o sindicato dos trabalhadores portuários se recusou a desembarcar a carga.
O que se deveria fazer para garantir a educação e, assim, o futuro dos povos africanos?
Deveríamos nos colocar de pé para salvar os mais jovens, especialmente aqueles das zonas de guerra: as crianças têm direito ao futuro, a um futuro sem guerra. Têm o direito de viver onde não sofram fome, de ser vacinados para evitar as doenças e de receber o tratamento necessário para crescer. Muitas crianças morrem porque não tiveram acesso à água potável, ou morrem de doenças facilmente curáveis. O objetivo é um futuro melhor.
Quem deve se responsabilizar pela educação das crianças?
Respondo-lhe com um exemplo. Tomemos o Zimbábue: era um país à frente dos outros quanto à educação das crianças; a escolarização alcançava os 100%. Hoje, por culpa das desordens políticas, as crianças não podem contar com uma educação adequada. E até quem vai à escola não tem aulas contínuas. Mas a educação não é um privilégio, é um direito do homem, como diversos acordos internacionais sancionam. É uma obrigação garanti-la.
De um lado, estão a educação e a escola, do outro, a tragédia do alistamento forçado em tenra idade.
O mundo disse que é ilegal e imoral usar as crianças como soldados. Não é justo envolvê-las nos conflitos dos adultos. Nenhuma criança nasceu odiando: as crianças aprendem o ódio de nós, os mais velhos. As crianças não são racistas, mas lhes é ensinado o ódio racial. Vou lhe contar uma história pessoal. Um menino de uma família norte-americana que eu conheci tinha a recém entrado na escola, falava da professora com grande entusiasmo. Os pais lhe disseram: convide-a para vir aqui em casa, queremos conhecê-la. E no dia seguinte, apresentou-se-lhes uma jovem negra, inesperada em uma família branca. O menino não tinha se dado conta, não tinha notado aquilo que os adultos tinham visto como a coisa mais importante.
Há quem acuse também os países ocidentais, como o Reino Unido, que admite rapazes de 16 anos nas academias militares. O senhor concorda?
Existem acordos internacionais que vetam a utilização de menores de 16 anos. Mas é outra coisa com os movimentos de guerrilha, em certos países africanos ou na Birmânia: as milícias raptam os meninos, freqüentemente lhes obrigam a matar seus próprios familiares. Assim, os pequenos ficam traumatizados e não podem voltar para casa. Isso está mal, é um mal de primeira ordem.
Mas por que a história da África é cheia de conflitos e de tragédias?
Há situações muito tristes, mas não creio que seja muito diferente da Europa do século passado. Refiro-me ao Holocausto, às ditaduras militares na Espanha e em Portugal. Na Itália, vocês tiveram o fascismo. E, mais recentemente, foi o Kosovo, com a limpeza étnica. É verdade, na África acontecem muitas coisas ruins. Mas acreditamos que podemos resolvê-las, como no Quênia, em Botswana. Certo, precisa-se de tempo. Os governos podem ser trocados rapidamente, como se fossem meias. Mas, para conquistar a estabilidade e a democracia, precisa-se de séculos.
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