"Ao contrário da crise americana de 2008, a crise europeia de 2010 não é apenas financeira, nem se restringe à insolvência de alguns estados de menor importância econômica, dentro da comunidade. Agora sim se trata de uma crise monetária, de insolvência do próprio euro, uma moeda que é emitida por um Banco Central "metafísico", que não pertence a nenhum Estado, nem administra a dívida de nenhum Tesouro Central", analisa José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor, 30-06-2010.
Eis o artigo.
"Germany is the dominant power in Europe, but they don ' t want to take responsibility for it. When you are in that position, you must be prepared to spend something. With the euro, Germany wants to have its cake and eat it. The "German question is back, you can ' t get away from it".*
Ao contrário da crise americana de 2008, a crise europeia de 2010 não é apenas financeira, nem se restringe à insolvência de alguns estados de menor importância econômica, dentro da comunidade. Agora sim se trata de uma crise monetária, de insolvência do próprio euro, uma moeda que é emitida por um Banco Central "metafísico", que não pertence a nenhum Estado, nem administra a dívida de nenhum Tesouro Central.
O novo sistema monetário europeu começou a ser construído com o Tratado de Maastricht, em 1992, e culminou com a criação do euro, em 2002. Baseado na suposição dos dirigentes europeus de que essa nova moeda "global" conduziria à criação de um poder central capaz de geri-la. Apesar disso, a história europeia ensina que foram sempre os seus estados que emitiram suas próprias moedas soberanas, definindo e garantindo o seu valor e a sua circulação com base na sua capacidade de tributação e de endividamento.
Desse ponto de vista, se pode dizer que o euro tem uma "falha de nascimento", e que funcionou até hoje como uma espécie peculiar de moeda semi-privada e inconclusa, sendo aceita com base na crença privada e na certeza pública de que o BCE e a Alemanha cobririam todas as dívidas emitidas pelos 16 estados membros da "eurozona" - como ocorreu até 2008, permitindo que todos esses países praticassem taxas de juros quase iguais às da Alemanha, apesar da sua imensa desigualdade de poder e riqueza.
A situação mudou depois do colapso financeiro de 2008, quando a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel, estabeleceu o novo princípio de que cada país europeu teria que ser responsável - a partir daquele momento - pelos seus próprios bancos, e pela cobertura de suas dívidas soberanas. A consequência imediata da nova posição alemã foi a crise de insolvência de alguns governos da Europa Central, no ano de 2009, contornada pela intervenção do FMI. No início de 2010, entretanto, a denúncia do novo governo socialista da Grécia, de que o déficit orçamentário do ano anterior, havia sido maior do que havia sido publicado inicialmente serviu como estopim de uma nova crise, que foi magnificada pelo veto alemão - durante seis meses - a qualquer tipo de ajuda comunitária ao governo grego. Até o momento em que a situação da Grécia ameaçou se estender a outros países endividados, atingindo a própria "credibilidade" do euro, obrigando a Alemanha a aceitar a aprovação do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com capacidade anual de mobilização de até € 750 bilhões. Valor suficiente para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do sistema monetário europeu, que foi criado em 2002, sob a tutela alemã.
Para corrigir essa "falha de fabricação" do euro, a França propôs a criação de um "governo econômico europeu", que não foi aceito pela Alemanha. O governo alemão, por sua vez, propõe - sem o apoio francês - a criação de um Fundo Monetário Europeu, para exercer o controle rigoroso da disciplina fiscal da eurozona, com o poder de expulsão dos faltosos. O impasse permanece, mas assim mesmo, no curto prazo, se impôs a posição alemã favorável a um ajuste fiscal draconiano a todos os países da zona do euro. Como o ajuste está sendo aplicado em economias que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, é como colocar gasolina na fogueira e apostar numa profunda e prolongada recessão, como fizeram os EUA no início da crise da década de 1930. Mas, atenção, porque neste caso, a recessão e a desvalorização do euro, apesar de tudo, acabarão beneficiando a Alemanha, como principal economia exportadora do velho continente, e acabarão transferindo para as economias mais fracas, o ônus da recessão, do desemprego, da perda salarial e da proteção social, e do aumento da luta de classes, da xenofobia e do nacionalismo de direita.
O que é pior, entretanto, é que nada disto resolverá o problema da insolvência do euro, porque a moeda europeia só terá valor efetivo no momento em que for lastreada por um poder e por um Tesouro Central capazes de assumir a responsabilidade permanente pela sua sustentação, com base na sua capacidade de tributação e endividamento. Se isso não acontecer, e se os pequenos estados europeus não aceitarem a condição de províncias fiscais da Alemanha, o sistema monetário europeu, e o próprio euro, estão com seus dias contados Por quanto tempo? Talvez o tempo que dure o atual armistício europeu, do pós-II Guerra Mundial, que desta vez se chamou de União Europeia.
*J. Pisani-Ferry, "Toward a system to secure the euro", FT, 22/06/2010
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