"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, julho 09, 2010

Perigo verde no mundo rosa

Instituto Humanitas Unisinos - 09 jul 10

"Eu sou uma mãe medíocre e reivindico esse direito." A filósofa e feminista francesa Elisabeth Badinter aplica essa conclusão pessoal às mães em geral. "Todas nós somos mães medíocres." Autora de vários livros de sucesso, que imediatamente após o lançamento entram na lista dos mais vendidos na França, Elisabeth é famosa por suscitar polêmicas nos meios intelectuais do país e também é criticada pelas próprias defensoras dos direitos das mulheres. Há 30 anos, havia dito que o instinto materno não existe e que surgiu a partir do fim do século XIX apenas por razões econômicas, para estimular o aumento da mão de obra. Agora, a filósofa acaba de declarar guerra ao "mito da mãe perfeita" em seu último livro, "Le Conflit, la Femme et la Mère" (O conflito, a mulher e a mãe, em tradução literal).

A reportagem é de Daniela Fernandes e publicada pelo jornal Valor, 09-07-2010.

Nessa nova obra, mais uma vez Elisabeth provocou grande polêmica na França. A intelectual de 66 anos acusa os movimentos ambientalistas de representar grande perigo para a emancipação feminina. Mais do que isso: eles contribuem para a regressão do papel da mulher na sociedade, com seus discursos sobre a necessidade de amamentar, de usar fraldas de pano em vez das descartáveis e de alimentar as crianças somente com pratos preparados em casa, de preferência com produtos orgânicos.

É o que ela chama de "ofensiva naturalista". Essas obrigações todas, segundo Elisabeth, limitariam a mulher ao papel único de mãe e as levariam a ficar em casa e abdicar de uma vida profissional. Publicado em fevereiro na França, o livro já vendeu cerca de 180 mil exemplares, segundo a editora Flammarion. Ele deve ser lançado neste ano no mercado brasileiro pela Editora Record (o título no Brasil ainda não foi definido).

Elisabeth
diz que ambientalistas contribuem para a regressão do papel da mulher, com seus discursos sobre a necessidade de usar fraldas de pano em vez das descartáveis

"Denuncio um discurso que não leva em conta as ambivalências da maternidade. As mulheres não têm mais liberdade para dizer não. Nas maternidades públicas, há pressões para que as mulheres amamentem. As que não fazem isso se sentem culpabilizadas. Todas as revoluções morais ocorrem graças ao sentimento de culpabilidade", disse Elisabeth.

Casada com o advogado Robert Badinter, ex-ministro francês da Justiça que pôs fim à pena de morte no país, em 1981, a filósofa é filha de um grande publicitário, Marcel Bleustein-Blanchet, fundador do grupo Publicis, a terceira maior agência de propaganda do mundo. A feminista, presidente do conselho de administração da companhia, é a principal acionista da Publicis, com pouco mais de 10% do capital. Essa atividade também lhe rendeu algumas críticas na época do lançamento do livro e questionamentos sobre a sua não intervenção em publicidades que ressaltariam o papel de dona de casa das mulheres.

Em um momento em que os discursos para a preservação do planeta, como também a necessidade de hábitos de consumo mais saudáveis ganham força a cada dia, a filósofa conta ter ficado revoltada com a proposta de uma ministra francesa de aumentar os impostos sobre as fraldas descartáveis.

A ideia, lançada em setembro de 2008, não entrou em vigor e a secretária de Estado do Meio Ambiente em questão, Nathalie Kosciusko Morizet, já até mudou de pasta no governo do presidente Nicolas Sarkozy. Mas Elisabeth utiliza esse exemplo para mostrar como o discurso naturalista passou a exigir uma série de comportamentos e deveres que tornariam a maternidade um trabalho em tempo integral. "Ela deveria ter sugerido a criação de fraldas biodegradáveis. Não acho que as árvores tenham mais prioridade do que as mulheres", afirma.

"Tornar a ecologia responsável pelas carências herdadas do mundo patriarcal europeu é algo errado e estéril", diz Cécile Duflot, secretária-geral do Partido Verde francês. Segundo ela, Elisabeth "deveria questionar as diferenças salariais entre homens e mulheres e o problema da divisão das tarefas domésticas".

Na França, aliás, a situação não é muito diferente do que ocorre em muitos outros países. As mulheres ganham, em média, 20% menos do que os homens. Uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França, divulgada no fim do ano, revelou que 80% das tarefas domésticas são realizadas pelas mulheres. O desequilíbrio aumenta com a chegada de um filho.

Em seu elegante apartamento parisiense com vista para o jardim do Luxemburgo, em uma das áreas mais nobres de Paris, Elisabeth, mãe de três filhos e avó, conta ter tido a ideia de escrever "O Conflito" ao ouvir uma notícia no rádio, em 1998. O ministro da Saúde da época, Bernard Kouchner, atual chanceler francês, havia assinado um decreto, na prática a aplicação de uma diretiva europeia, que proibiu a publicidade do leite em pó nos hospitais públicos na França e também a doação do produto às mães.

"Esse minúsculo fato me pareceu simbólico de uma verdadeira mudança em relação à maternidade. Passou a ser necessário encorajar a qualquer preço, até mesmo obrigar moralmente as mulheres a amamentar", afirma. Elisabeth diz ter se interessado por todo movimento iniciado a partir de 1980, "período em que as mulheres faziam o que queriam", até os dias de hoje, em que o governo francês passou a fixar metas em relação ao número de mães que amamentam na maternidade. Segundo ela, em razão dessa política de pressões, o número de mulheres na França que dão o leite materno aos filhos vem crescendo 2% por ano.

"Estamos assistindo a uma verdadeira mudança radical, que está ocorrendo de forma subterrânea. Há um aumento considerável dos deveres maternos. A natureza se tornou um novo Deus, com critérios morais que culpabilizam quem não seguir o discurso", afirma Elisabeth. A filósofa diz que o "direito de amamentar" está se tornando uma obrigação, reforçada pela Organização Mundial da Saúde, que recomenda essa prática por um prazo de dois anos, que pode ser estendido. Mas a feminista ressalta que não critica o ato em si. "Só não quero que seja um modelo imposto. A mamadeira também é boa para a criança. Os estudos provam isso."

Na prática, diz a filósofa, a liberdade de escolha das mulheres está sendo ameaçada por "uma santa aliança reacionária", que inclui autoridades médicas, feministas naturalistas, ecologistas radicais e a Liga do Leite. Essa associação americana que promove a amamentação, criada em 1956 em Chicago, ganhou força nas últimas décadas em vários países, principalmente nos escandinavos, e conta com o apoio de grandes organizações internacionais, diz Elisabeth em seu livro, que reúne estatísticas sobre o assunto. Exemplo: na Noruega, 99% dos bebês continuam sendo amamentados após deixar a maternidade.

Logo após o lançamento do "Conflito, a Mulher e a Mãe", Elisabeth recebeu uma saraivada de críticas e enfrentou discussões acirradas em programas de debates na TV. Na linha de frente, obviamente, representantes dos ecologistas, pediatras e defensores da amamentação, que a acusaram de minimizar os benefícios do lei materno.

"Elisabeth Badinter continua o mesmo caminho da escritora Simone de Beauvoir. É o feminismo à francesa, que recusa a maternidade", rebate Bénédicte Opitz, presidente da Liga do Leite na França. "A reivindicação de direitos em relação a um modelo masculino, como ocorreu nos anos 70, acabou. As mulheres querem hoje que suas especificidades sejam levadas em conta e a amamentação não é incompatível com as atividades profissionais", diz a militante da Liga do Leite.

Talvez incompreendida, Elisabeth alerta justamente sobre os perigos de um conceito que, segundo ela, define as mulheres de maneira uniforme. "Não devemos, não podemos fazer todas a mesma coisa. É reduzir a mulher à espécie animal, como se todas nós fossemos chimpanzés fêmeas." Como para a Liga do Leite não existe nenhuma desculpa aceitável para recusar a amamentação, a liberdade de dizer não deixa de existir, diz a filósofa.

"É realmente ideal que as mães de hoje voltem ao trabalho alguns dias após o parto e transfiram a educação de seus filhos já nas primeiras semanas para outras pessoas?", questiona a escritora canadense Nancy Houston, que vive em Paris há 30 anos e chegou a integrar o Movimento de Libertação das Mulheres.

"Considerar que a ecologia envia as mulheres para casa e as leva a sair da esfera social e profissional é uma caricatura grosseira, até mesmo desonestidade intelectual", afirmam, em uma carta aberta, sete jornalistas e feministas francesas ligadas a movimentos ecológicos, entre elas Pascale d'Erme, presidente da associação "EcoMamans", que tem como objetivo "sensibilizar as mães em relação aos grandes desafios ambientais e ajudá-las a mudar de comportamento".

Acostumada às críticas, Elisabeth dá outros exemplos da "ofensiva naturalista". Além da "guerra do leite", como ela define as pressões para que as mulheres amamentem, o discurso ecologista influencia, segundo ela, outros comportamentos. "Os potinhos para bebê se tornaram um sinal de egoísmo da mãe, então voltamos para os purês preparados em casa", afirma. "Em nome dessa ideologia, nos países escandinavos quase não há mais anestesia peridural nos partos, ela até mesmo é fortemente desaconselhada", diz.

Segundo Elisabeth, o discurso naturalista ganhou força por causa das crises econômicas, que tornaram o trabalho mais precário e estressante. "As crises representam primeira causa da regressão da condição feminina e "mudaram profundamente as mentalidades."

Desde os anos 80 a situação no emprego vem se tornando mais difícil, principalmente para as mulheres, com salários inferiores e "demitidas como um lenço de papel usado", afirma. "As mulheres têm dificuldade para encontrar um emprego, são mal pagas e mal vistas quando ficam grávidas. Elas passaram a questionar se valeria a pena trabalhar duro, sem satisfação pessoal, para ganhar pouco ou se seria melhor cuidar dos filhos em casa e se realizar plenamente como mãe."

Mas a questão agora é saber se com a redução dos gastos públicos nos países europeus e a possível diminuição das ajudas sociais, as mulheres ainda poderão fazer esse tipo de questionamento.

Tava demorando para esses dois grupos que lutam pelas liberdades baterem de frente um com o outro. Apenas como questionamento. Devemos dar acesso aos direitos das minorias, mas, se esses direitos forem amplos não teremos uma "democracia" que não vai a lugar nenhum, exatamente por cada grupo defender os seus interesses e não os da coletividade? A ausência de um senso comum nesse caso não levará à ingovernabilidade?

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