Darrin McMahon, filósofo americano, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, 25-02-2007, mostra como o frenético consumismo moderno levou ao inevitável descrédito o conceito de felicidade e a uma deturpação da filosofia epicurista, que nunca significou o consumo de vinhos raros nem bons sapatos, mas o controle de nossos desejos e apetites.
Darrin McMahon é professor de história na Universidade da Flórida e doutor pela Universidade de Yale (1997). Autor de Enemies of the Enlightenment: The French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity (Oxford University Press, 2001), McMahon teve seu livro Felicidade: uma História, traduzido em nove línguas (no Brasil publicada pela editora Globo). Colaborador de jornais, o historiador organizou com Florence Lotterie o ambicioso estudo sobre iluminismo Les Lumières Européennes das leurs relations avec les grandes cultures et religions du XVIII siècle (Honoré Champion, 2002).
Eis a sua entrevista:
Por que a filosofia contemporânea deixou para trás a discussão sobre felicidade e o que o fez persistir no estudo do tema?
De fato, o século 20 parece ter abandonado a discussão sobre um tema que tem perturbado a humanidade desde os gregos. Creio que os filósofos contemporâneos se voltaram para assuntos que os inquietam particularmente, deixando de lado grandes questões como o que é a verdade ou o bem. O certo é que a filosofia analítica se tornou o pensamento dominante nas universidades e o fim do positivismo lógico provocou drásticas transformações nos movimentos filosóficos. Há, hoje, uma espécie de pessimismo generalizado, uma ausência mesmo de crédito na felicidade. E o existencialismo, derivado do pensamento filosófico de Heidegger, abriu um fosso que a filosofia da era romântica já havia anunciado. É como se o período romântico tivesse expurgado a felicidade de seu convívio, fazendo-a ficar fora de moda ao romantizar a morte. Persisto no estudo do tema porque acho que os filósofos têm de se engajar em assuntos que interessem ao público. Os filósofos profissionais abandonaram a questão grega de como viver bem e transferiram a tarefa aos mascates da auto-ajuda, enquanto eles se ocupam de jogos lingüísticos.
Uma pesquisa divulgada recentemente no Brasil revela que habitantes de países em desenvolvimento tendem a ser mais felizes. Como o senhor explica que os habitantes de países desenvolvidos e prósperos, sem problemas de saúde e vivendo confortavelmente, sejam mais infelizes? O senhor concorda com Rousseau quando ele defende que a ciência e a arte não acrescentam nada à felicidade?
É curiosa essa pesquisa, porque aquelas que eu tenho acompanhado nos Estados Unidos sugerem exatamente o contrário. Há menos satisfação nos países ricos, é verdade, mas muito mais assistência. Não acredito efetivamente que os africanos vivam melhor que os americanos ou os europeus. Rousseau certamente ficaria surpreso com pesquisas que demonstram uma ligação entre felicidade, o ativismo político e a luta pela democracia e Freud mais ainda se soubesse que o número de depressivos é bem maior em culturas que perseguem obsessivamente a felicidade. É romantismo achar que subdesenvolvimento e felicidade caminham juntos ou que o bem-estar não leve necessariamente à felicidade. Depois da 2ª Guerra, no período de reconstrução, as pessoas pareciam mais felizes, mas a economia contemporânea não permite tal otimismo. Há, ao contrário, boas razões para o ceticismo, o que não significa que devamos abdicar da idéia da felicidade.
O senhor costuma dizer que os gregos não pensavam a felicidade do mesmo modo que o homem contemporâneo pensa. O que separa a felicidade dos gregos dos modernos?
Primeiro, os gregos não associavam a felicidade a um rosto sorridente. Felicidade, para eles, significava viver uma vida virtuosa. Mesmo Epicuro jamais pregou o prazer irrestrito. Tanto o epicurismo como o estoicismo são doutrinas ascéticas, que exigem que o desejo seja regulamentado. No mundo moderno, felicidade é um conceito ligado ao hedonismo, fundamentalmente. Ora, não dá para ser feliz num país onde, por exemplo, se pratica a tortura. Aristóteles definia a felicidade como a associação entre prosperidade e virtude. Os países subdesenvolvidos sofrem porque sabem que esse tipo de felicidade é quase impossível. Então, é inevitável a desilusão de alguém que se entrega a uma forma hedonista de ver o mundo. É provável que os sociólogos e cientistas sociais nunca cheguem a um consenso sobre o que torna os homens mais felizes, mas uma coisa é certa: a mídia e o marketing criaram uma idéia falsa de felicidade e vai ser difícil controlar essa onda hedonista no mundo desenvolvido.
Consultar um terapeuta e tomar Zoloft ou Prozac parece ser o caminho mais fácil para se atingir o Nirvana nos dias que correm. O senhor acredita que a ciência terá, no futuro, uma fórmula para se atingir a felicidade ou será a religião a garantir esse estado?
Para quem sofre de depressão, o uso de medicação psicotrópica é por vezes inevitável, mas acontece que esses medicamentos estão sendo usados para propósitos não terapêuticos. Essa indistinção é preocupante, porque há uma linha tênue entre terapia e busca da felicidade a qualquer preço - e isso já se faz sentir na corrida pela fabricação de antidepressivos e ansiolíticos. Criar uma felicidade artificial e ordinária é até possível, mas não garante uma resposta para a questão inquietante de como se atingir a felicidade plena. Quanto à religião, o mundo contemporâneo está cheio de gurus que prometem felicidade a preços módicos. A filosofia perde terreno porque, apesar de Sócrates ter garantido que a felicidade está ao alcance do ser humano, é preciso lutar muito por ela. Filosofar sobre a própria conduta, adotar uma postura ética e refletir são atividades que exigem dedicação, devoção. A felicidade como meta é um legado grego e esse estado de saúde, como disse Cícero, só a filosofia pode garantir.
O senhor não parece muito convencido sobre o ideal da felicidade ser uma estrada para a vida eterna, como Locke pregava. O senhor diria que está mais próximo da filosofia de Hobbes do que do pensamento de Locke?
Não tenho resposta para essa pergunta, mas Hobbes me parece mais explícito ao não associar a felicidade a uma mente conformada. Locke também falou da inquietação que leva o homem a buscar a felicidade, ou persegui-la, no sentido mais hostil que a palavra possa ter. A felicidade passa, então, a ser o momento da recompensa na filosofia de Locke, que se preocupava tremendamente com os descaminhos do desejo.
Já que estamos falando de Locke, a busca da felicidade é garantida pela Declaração da Independência redigida por Thomas Jefferson em 1776, texto adotado não sem muita controvérsia nos EUA. Como o senhor interpreta a apropriação das idéias de Locke por Jefferson? O senhor acredita que os EUA tenham uma idéia diferente de felicidade em relação a outros países?
Não se sabe se Jefferson, ao referir-se aos direitos inalienáveis do homem, entre eles a busca da felicidade, o fez de forma genérica, levando gerações de americanos a perseguir o conforto e a satisfação pessoal com tanta obstinação. Não quero generalizar, mas essa busca cruzou a fronteira americana e lamento que as pessoas, hoje, façam barganha, preferindo a segurança no lugar da liberdade. A felicidade individual parece, hoje, mais importante que a coletiva.
Ao contrário das profecias de Saint-Simon sobre o futuro da humanidade, não estamos vivendo ou trabalhando alegremente no mundo contemporâneo, embora ainda existam otimistas que acreditem em conjugar a busca da felicidade com tecnocracia. É lícito aceitar a ditadura de tecnocratas para alcançar a felicidade?
Preferiria viver insatisfeito, mas livre. Mais uma vez, lamento que as pessoas troquem a liberdade pela segurança. Não é lícito aceitar ditaduras de nenhuma espécie.
Freud dizia que a felicidade tem dois lados, um positivo e outro negativo, lembrando que o princípio do prazer impõe um projeto, o de nos tornarmos felizes, que não pode ser realizado plenamente. O senhor diria que ele anteviu o hedonismo pós-moderno?
Freud não tinha um parâmetro anterior para saber em que direção o mundo iria caminhar, ou seja, não podia imaginar que o mundo iria buscar prazer em sexo desenfreado e no consumo excessivo de drogas. Na visão freudiana, estamos condenados à frustração de não ver esse projeto de felicidade realizado - e isso é trágico, porque as pessoas se esforçam para alcançar o inatingível, um desafio que merece ser considerado.
Os poetas, que estariam mais próximos de imaginar o mundo ideal da felicidade, estão praticamente ausentes do seu livro com exceção de Keats e Byron, que não são exatamente bons exemplos de felicidade. A boa literatura é capaz de ajudar alguém a tentar viver feliz?
Na época de Sócrates, os poetas e dramaturgos aceitavam que a felicidade dependia de deuses ou do destino, ou seja, estava além da intervenção humana. Sócrates chegou para dizer que, ao contrário, ela estava a nosso alcance, que éramos nós que teríamos de decidir entre ser felizes e infelizes. Ou seja, os deuses não eram tão legais quanto pensavam os gregos e nós teríamos de arranjar um jeito de buscar a felicidade. A virtude surgiu, enfim, como um atalho para a felicidade e a literatura não cansou de exaltá-la. Um livro sobre personagens infelizes pode ser, então, um bom exemplo a seguir para quem quer buscar a felicidade. Veja, por exemplo, o começo de Anna Kariênina, em que Tolstoi, já na frase inicial, diz que todas as famílias felizes se parecem e apenas as infelizes são infelizes à sua maneira. É uma proposição falsa, mas creio que Tolstoi estivesse falando dele mesmo e de sua família. Ora, Anna Kariênina é de uma época que não comportava finais felizes, mas, mesmo com a tragédia da protagonista, é uma das grandes obras literárias sobre a busca da felicidade, de uma mulher que lutou por ela.
Por que o senhor conclui seu livro citando Esperando Godot, de Beckett, quando Estragon propõe uma pergunta a Vladimir sobre o que fazer agora que ambos são felizes, evidente ironia do dramaturgo?
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