A quase cento e cinqüenta anos após a formulação da teoria de Darwin sobre a evolução compartilhada pelas formas biológicas, se revela ser ainda de estrita atualidade o debate sobre o significado zoológico da espécie humana. Uma exposição no Museu de História natural de Trento propõe um articulado percurso entre genética, história, arte e paleo-antropologia, para dar conta das últimas, com freqüência mal entendidas pesquisas no campo evolutivo. O artigo é de Roberto Marchesini e publicado no jornal Il Manifesto, 21-07-2007. Sobre o mesmo tema abordado no artigo confira a entrevista com Claudio Tugnoli, sob o título Pós-humanismo. O ser humano e o animal se hospedam um ao outro publicada pela revista IHU On-Line, no. 200,16-10-2006. Na mesma edição, Roberto Marchesini concedeu igualmente uma entrevista.
Eis o artigo.
O tempo profundo da história da nossa espécie, que não se mensura em séculos, mas em milhões de anos, fala das raízes biológicas do homem e dos percursos de adaptação que plasmaram os seus fundamentos morfológicos, como a expansão do cérebro, o bipedismo, a evolução da linguagem. A quase cento e cinqüenta anos desde a formulação, da parte de Charles Darwin, da teoria da origem compartilhada das formas biológicas e de sua especialização por seleção natural, pode parecer anacrônico refletir sobre o significado zoológico da nossa espécie. Apesar das numerosas evidências científicas que a paleontologia e a genética acumularam, ainda se registram desconfianças, hostilidades e banalizações da ampla área de pesquisas à qual a fértil teoria do naturalista inglês deu início.
Parece que o homem realmente não aceita a idéia de uma plena consistência natural e de um parentesco comum com os outros seres vivos, preso pela ânsia de afirmar o seu ser especial e a sua transcendência da natureza. E, no entanto, a grave crise ecológica em ato deveria fazer-nos refletir sobre o perigo desta concepção do homem que induz a negar a realidade natural em nome de uma “outra” dimensão que não permite colher o nexo que nos liga às diversas formas do ‘bios’.
A recordar-nos a pertença ao catálogo biológico e a colocação taxonômica do homo sapiens provê, agora, a mostra interativa, em curso até 6 de janeiro de 2008, no Museu de Ciências Naturais de Trento. Através de suas dezesseis seções, a mostra dedicada ao macaco nu – título retomado do ensaio homônimo de Desmond Morris sobre a etologia humana – acompanha o visitante ao longo de um itinerário de pertença e compartilhamento, qualidades que nos enraízam na natureza e nos aproximam das outras espécies animais, sublinhando também os traços que tornam o homem “único” no seu gênero.
Tudo no signo de um percurso de adaptação que seguiu mais as lógicas da casualidade e da contingência do que um desenho finalístico ou inteligente, orientado para a magnificação da nossa espécie. A mostra tem o mérito de fazer-nos entrar no universo dos nossos primos, os antropomorfos gorilas e chimpanzés, através de suportes multi-midiáticos e interativos que nos imergem numa floresta tropical, nos fazem experimentar locomoções braçais entre a vegetação, ao modo de gibões, ou a caminhada sobre as raízes.
Duas seções inteiras estão estruturadas de maneira lúdica, para permitir-nos entrar no universo cotidiano dos nossos parentes próximos e compreender quão profunda seja a sua dimensão cultural. Trata-se de uma passagem crucial, porque com demasiada freqüência a recusa do darwinismo passa através de uma leitura preconceituosa das outras espécies, cartesianamente estigmatizadas como autômatos privas de qualquer forma de pensamento. Experimentar de modo direto a afinidade do abraço, da mímica facial, das refinadas formas de interação social, das capacidades tecnológicas dos nossos primos primatas significa reencontrar uma pertença comum que não contrasta, mas até mesmo sustenta aquele percurso de diferenciação que deu vida ao nascimento da espécie humana.
No início, poderíamos dizer, foi o pé. Com o bipedismo, inaugurado há uns seis milhões de anos, teve origem o ramo dos australopitecos que, destacando-se dos chimpanzés, deu origem a um tipo de espécie que se transmite por quatro milhões de anos. Na segunda metade do século vinte a paleo-antropologia enriqueceu os museus com um grande número de achados arqueológicos de australopitecos. É famosa a “Lucy” de Donald Johanson, descontraída (o nome retoma a peça dos Beatles) visão de uma comunidade pré-humana bem diferente do que aquela ordenada ao longo da tradicional marcha do progresso.
Os australopitecos escondem um mundo ainda desconhecido que colocou as bases da pratognose, ou seja, do desenvolvimento das habilidades manuais e da coordenação óculo-manual, fundamentos da utilização e da construção de arneses. Nesta atmosfera adaptativa tem lugar a segunda grande revolução morfofuncional que sanciona a emergência do gênero homo, vale dizer, a notável expansão do volume encefálico. Trata-se de uma especialização biológica sob todos os efeitos, ou seja, de uma dotação particular que traz consigo complementos etográficos e novas oportunidades de expressão comportamental, a despeito dos assim chamados teóricos da incompletude humana.
Mas, a esta altura somos arrastados no labirinto das causalidades adaptativas: como dar a correta seqüência aos predicados? Primeiro a linguagem ou o pensamento simbólico? Primeiro a complexidade social ou a particularidade sexual? A arte ou a tecnologia? Escolher entre as várias opções e construir fileiras de causalidades é um exercício infundado que nos arrasta nos fluxos de recursividade já magistralmente enunciados por Edgar Morin.
Por isso é uma mostra importante, esta de Trento, capaz de falar-nos tanto de uma pertença comum de origem quanto de um destino compartilhado a salvaguardar. Querendo encontrar um contra-senso nesta viagem em torno do homem, resta a estrita visão das qualidades humanas como emanação dos caracteres biológicos do homem.
Hoje a auto-suficiência do fazer-se humano é desmentida pelas descobertas da genética molecular da última década. Mais do que nu, o homem aparece como um símio híbrido que deu vida aos seus percursos seletivos apoiando-se no mundo exterior, não para satisfazer carências, mas para dar vida a funções híbridas. Toda pesquisa que tente explicar o homem simplesmente encarando-o a partir do interior apela a uma pretensão de pureza que inevitavelmente cai no essencialismo, traindo o próprio núcleo da mensagem de Darwin.
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