Gandhi teve um papel fundamental no processo que culminou na independência da Índia. No entanto, sempre se mostrou contrário à separação entre Índia e Paquistão, que ele qualificou de “monstruosa vivissecção”, mas que tampouco pôde impedir. Henri Tincq, jornalista francês, analisa, em artigo publicado no Le Monde, 4-08-2007, a desastrosa e fratricida luta pela separação.
Tincq retoma as duas explicações - a “primordialista” e a “artificialista” – usadas para compreender os violentos e sangrentos massacres que envolveram hindus e muçulmanos. Ao final diz que ambas são apenas caricaturais, pois a verdadeira fratura se encontra “no interior de cada campo”.
Segue a íntegra do artigo de Henri Tincq traduzido pelo Cepat.
Em Thoa Khalsa, 84 mulheres engolem o ópio e pulam, uma após outra, num poço. Muçulmanos ocupam este vilarejo do Punjab em abril de 1947, alguns meses antes da divisão da Índia, e a tradição sikh quer que as mulheres se imolem quando os homens não estiverem por perto para defendê-las. Quatro delas sobreviveram porque não havia água suficiente no poço para afogar todas, mas as outras são “mártires”.
Ao morrerem, elas preservaram a honra da comunidade. Mártires são também essas meninas que foram mortas por seus pais, com sabre ou por suas próprias mãos, para evitar que fossem arrastadas, violentadas e convertidas ao islã. Mangal Singh e seus dois irmãos mataram 17 membros de sua família, crianças e sobrinhos. Em Les Voies de la partition Inde-Pakistan (Os caminhos da partição Índia-Paquistão), Urvashi Butalia enumera as crueldades ligadas a este capítulo da história indiana que, sessenta anos depois, ainda corrói o país de remorsos e de pesar.
As mulheres arrastadas – 75 mil, segundo as estimativas – são violentadas, vendidas, convertidas à força. Elas são levadas a passear nuas pelas ruas, têm os seios cortados, o sexo tatuado de sinais da “outra” religião. Porque, na orgia de violências nascidas da separação, uma obsessão submerge a Índia: raptar, violar a mulher do “outro” para humilhá-lo, intimidá-lo e destruir a sua capacidade de reprodução. Obsessão que, por rivalidade mimética, devasta tanto os hindus como os muçulmanos. Mutiladas, arrancadas de sua comunidade, essas mulheres são a metáfora do corpo mutilado da Índia, deusa-mãe da Índia – Bharat Mata. E uma das caricaturas mais caras aos nacionalistas hindus é a de um corpo feminino tomando a forma da Índia e Nehru decepando um braço que representa o Paquistão.
A independência é proclamada no dia 15 de agosto de 1947, simultaneamente à divisão em dois Estados: a União índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana. O Lord Mountbatten, o último vice-rei das Índias, e da Inglaterra, foge deixando para trás a jóia da coroa, que se transformou num lamaçal infernal. Outros suicídios coletivos e tumultos provocaram milhares de mortos em Rawalpindi (Punjab) em março de 1947. Ou em Bengala, em novembro de 1946, quando peregrinos muçulmanos massacraram, em Garh Mukhteshwar, comerciantes muçulmanos. Em agosto de 1946, em Calcutá, uma Action Day da Liga Muçulmana voltara à “grande matança”: armados de machados, paus, chuços, armas de fogo, homens assassinaram, pilham, depois de verdadeiros pogroms, e profanaram mesquitas. Em represália, no distrito de Noâkhâli, muçulmanos mataram e queimaram templos.
Todo o mundo sabe que a divisão dos dois países se transformará num banho de sangue, mas, em agosto de 1947, o Congresso produz um momento de alívio. Jawaharlal Nehru, pai da independência, reconhece: “Nós estávamos prostrados. Era preciso que se terminasse. Nós pensávamos que a divisão seria temporária”. Chefe da Liga Muçulmana, Mohammed Jinnah expõe o sonho de sua vida: uma Índia independente em “duas nações”. Mas “ninguém sabe onde vai passar esse Paquistão da utopia, esse país de nenhuma parte”, escreve o historiador Eric-Paul Meyer. Votado em Londres em julho, o Ato da Independência da Índia não diz uma só palavra sobre os riscos do êxodo, do dilaceramento das famílias. A comissão Radcliffe traça uma fronteira que mutila zonas urbanas e rurais, populações misturadas. Punjab e Bengala são de maioria muçulmana, mas abrigam numerosas minorias de hindus e de sikhs. Lahore e Karachi, cidades de comerciantes e de funcionários, são de maioria hindu.
Desde que o traçado da fronteira se tornou oficial, em 15 de agosto, as casas são evacuadas. Em Déli, cidade na fronteira entre os dois novos países, a milícia hindu RSF tira à força os ocupantes muçulmanos de seus bairros, refugiados nas mesquitas, para abrir espaço para os hindus que chegam em comboios. Karachi é esvaziada de seus hindus como Déli de seus muçulmanos. Nos bairros mistos, pessoas comuns massacram seus vizinhos sem outra razão que a diferença de religião. É a primeira vez na Índia que se elimina fisicamente, em tal escala, populações para confiná-las a zonas etno-religiosas puras.
Políticos e clérigos fanáticos atiçam os ódios. É a hora da grande “limpeza” – safa’i. É assim que relata um sikh da fronteira de Attari: “Um dia, toda a nossa cidade se encontrou na estrada rumo a uma cidade muçulmana próxima, para uma expedição punitiva. Nós enlouquecemos... E isso me custou cinqüenta anos de remorsos, de noites insones. Eu não consigo esquecer os rostos das pessoas que matei”. O mesmo se ouve de Nasir Hussain, agricultor muçulmano: “No espaço de dois dias, uma onda selvagem de ódio nos dominou. Eu não consigo me lembrar de quantos homens eu matei”.
A divisão fez da Índia um território dividido ao meio. As duas partes do novo Paquistão, a ocidental e a oriental [a partir de 1971, Bangladesh], estão separadas por 1.300 km de território indiano. E o número de vítimas é fenomenal. As estimativas mais elevadas informam um milhão de mortos em três meses e um êxodo humano jamais visto. Quinze milhões de pessoas cruzaram a fronteira nos dois sentidos: 9 milhões de hindus e sikhs vindos do Paquistão; 6 milhões de muçulmanos deixando a Índia. Um milhão o fizeram a pé nas kafila, colunas que se estendem dezenas de quilômetros, homens e mulheres esfarrapados, esfomeados, abatidos, esmagados de pesar, mas encontrando ainda um pouco de força para provocar o outro. Numa única noite, milhares de famílias são separadas, vidas para sempre deslocadas. Segundo Urvashi Butali: “É difícil separar duas vidas. Separar milhões é pura loucura”.
Uma “monstruosa vivissecção”, havia previsto Mahatma Gandhi a propósito da divisão. Aos 77 anos, Gandhi, herói shakespeariano, anda alucinado, como o Rei Lear, entre as ruínas e o caos do mundo. De seu mundo. Ele caminha pelas ruas desertas de Calcutá, onde os habitantes são enterrados entre as carcaças calcinadas dos carros e as casas incendiadas. Ele se dirige aos vilarejos destruídos onde os urubus já rondam os cadáveres. Ele tem encontros de oração, ouve os relatos das atrocidades, “enxuga as lágrimas de todos os olhos”, escreve a escritora Christine Jordis em sua bela biografia. Até o último minuto, sobre sua tábua de madeira que servia de cama e de escritório, ele terá tentado de tudo: estabelecer contatos, jejuar, buscar um acordo com Mohammed Jinnah para convencê-lo a não ceder à miragem de uma Índia dividida que é, para ele, um contra-senso histórico, um nonsense absoluto.
Mas, ninguém mais ouve Gandhi. Ele é detestado pelos ativistas dos dois campos, que não acreditam mais, há muito tempo, nas virtudes da ahimsa (não-violência). Os britânicos sempre viram nele um político hábil ou um santo fanático. Acaso, já se viu alguma vez um opositor prevenindo tão cortesmente a potência colonial das ações de resistência civil que tenha feito dele o revolucionário mais original do mundo? Os massacres de 1947 e o êxodo marcam o insucesso de seu combate pelo swaraj, a emancipação de uma Índia sonhada. Ele havia lutado pela harmonia entre as religiões, mas elas se entregaram a um impiedoso massacre; contra a “intocabilidade”, mas isso lhe vale o ódio de todos os extremistas hinduístas; contra a opressão das mulheres, mas elas são as primeiras vítimas da desgraça indiana. Gandhi perdeu. Ele retoma sua roca e sua marcha cantando com o poeta Tagore, seu amigo: “Marcha sozinho. Se ninguém responder ao teu apelo, marcha sozinho”.
A crueldade da separação permanece por longo tempo um segredo muito pesado para ser carregado, um parto doloroso para cuja memória não há tempo porque outras tempestades se multiplicam. Na Caxemira, por exemplo. O assassinato de Gandhi, a 30 de janeiro de 1948, permanece como o gesto isolado de um desequilibrado hindu mais que o último morto de uma longa série. A ironia da história quis que Jinnah morresse também, de tuberculose, a menos de oito meses depois. Depois as línguas se soltaram, como por uma necessidade compulsiva de explicar, de compreender, de exorcizar. Mas cada tumulto posterior – contra os sikhs depois do assassinato de Indira Gandhi em 1984, a destruição da mesquita de Ayodhya em 1992, os massacres antimuçulmanos de Gujarat em 2002 – ressuscita as lembranças da separação. Sessenta anos depois, o trabalho de memória apenas começou.
A tentação foi opor, durante muito tempo, duas religiões de valores antagônicos: o islã, monoteísta, igualitarista e prosélito; o hinduísmo, politeísta, hierarquizado, tolerante. O islã conquistou a Índia, que dominou, embora minoritariamente, durante seis séculos, da criação do sultanato de Déli à decadência dos mongóis no século XVIII. Mas a conquista britânica (1715-1818) pôs fim à sua hegemonia e pôs em relevo sua fraqueza numérica. “Na Índia, o islã deixou de ser a referência política e cultural dominante”, explica o estudioso do islã Marc Gaborieau. O enfrentamento tornou-se inevitável. Em 1940, Jinnah afirmava: “Os hindus e os muçulmanos pertencem a duas civilizações diferentes, fundadas sobre idéias e concepções contraditórias”.
Esta explicação dos massacres, chamada de “primordialista”, foi defendida por Louis Dumont em seu Homo Hierarchicus: O Sistema das Castas e suas Implicações (São Paulo: EDUSP, 1992), de 1966. Esta é ainda a visão tanto dos historiadores oficiais e islamistas paquistaneses como da extrema direita hindu. A outra tese, chamada de “artificialista”, consiste, ao contrário, em negar esta oposição de fundo entre o islã e o hinduísmo e atribuir a catástrofe da separação ao colonizador britânico. Em nome do sempiterno princípio “dividir para reinar”, a reforma Morley-Minto de 1909 cedeu às pressões muçulmanas de eleitorado separado das províncias e que transformou as comunidades religiosas em circunscrições eleitorais.
O que foi suficiente para atiçar a tensão entre a Liga Muçulmana, fundada em 1906, e o Partido do Congresso (1885), que reagrupa majoritariamente as elites nacionalistas hindus. A teoria das “duas nações” nascerá de um reflexo de medo da minoria muçulmana. Os efeitos combinados da democracia e da política do raj (império) teriam, dessa maneira, feito eclodir conflitos intercomunitários estranhos à história da Índia.
Esta tese se apóia sobre uma suposta era de ouro – pré-colonial – em que muçulmanos e hindus teriam vivido juntos em boa vizinhança. Os soberanos hindus escolhem muçulmanos como oficiais e gurus e os soberanos muçulmanos, mulheres, generais e conselheiros hindus. Eles falam as mesmas línguas, têm os mesmos gostos musicais, arquitetônicos, culinários e as mesmas estruturas familiares (poligamia). Os valores que partilham são mais numerosos que aqueles que os dividem. Longe de ser “igualitarista”, sublinha Marc Gaborieau, o islã indiano reproduz hierarquias sociais que não estão tão distanciadas do sistema das castas.
As duas explicações, a “primordialista” e a “artificialista”, são, na verdade, caricaturas. Apesar dos séculos de coabitação mais ou menos pacífica, as duas culturas estão, de fato, de costas uma para a outra: em nome das regras de pureza, não se come junto, não se tocam, não se casam. Os hindus consideram o islã ou o cristianismo como religiões impuras e bárbaras. Muçulmanos e cristãos estão, como os intocáveis, no último degrau da escala. Um sikh conta esse estranho fato no livro de Urvashi Butalia: “Se um muçulmano vinha até nós e trocava conosco um aperto de mão e nós tivéssemos um pacote de alimento na outra, este alimento estava sujo e nós não o comíamos. Se tivéssemos numa mão um cachorro e na outra um alimento, este alimento poderia ser comido sem nenhum problema”.
A verdadeira fratura estava, de fato, no interior dos dois campos. Diante da arrogância do colonizador, as identidades se revelam no final do século XIX. Os hindus restauram os rituais de purificação, retomam a memória mitificada do passado pré-muçulmano, retornam a um rigoroso espírito de castas, ao culto da vaca e ao sacrifício na guilhotina. O nacionalismo hindu explora o descontentamento das populações reticentes à ocidentalização da Índia e que se agrupam em torno de um vedismo original que teria sido pervertido pelo islã e pelo cristianismo.
A mesma evolução se dá entre os muçulmanos que querem “deshinduizar” o islã, eliminar o culto dos ídolos, voltar à letra do Corão, cassar o sufismo, visto como uma contaminação do islã pelo hinduísmo. Assim, o fundamentalismo islâmico nasce em Bengala e no Punjab. Em 1927, a organização Tabligh (Fé e prática) – ainda hoje muito ativa na França – é criada com a vocação de purificar, de purgar o que séculos de coabitação poluíram. No mesmo ano, um intelectual ocidentalizado, Maududi, um dos inspiradores dos Irmãos Muçulmanos no Egito, publica um livro retumbante sobre a “guerra santa”, que ele encoraja em todo o mundo muçulmano, e funda, em 1941, o Jamaat al-Islam, que transformará o Paquistão em República islâmica.
A recuperação política desses extremistas religiosos prepara a tragédia. A organização radical hindu Rashtriya Svayamsevak Sangh (RSS) organiza manifestações rituais que são igualmente demonstrações de força. A Liga Muçulmana, por sua vez, retoma a proposição feita em 1930 pelo poeta e filósofo [Muhammad] Iqbal de um Estado separado que tenha por vocação reunir todos os muçulmanos. Mohammed Jinnad é, portanto, tudo menos um islamista. É um reformador moderno, casado com uma ismaelita, comedor de porco e bebedor de whisky, mas que compreendeu que a única maneira de criar o Paquistão era utilizar os ulemás [indivíduos reconhecidos como autoridades em matéria e de lei e religião]. “É porque atores políticos consideraram que era de seu interesse reativar essas linhas de clivagem religiosa”, conclui o pesquisador Christophe Jaffrelot, “que terminaram por se tornar pertinentes, quando não eram mais”. O cenário estava preparado para o pior.
Para ler
Ao final do artigo, Henri Tincq faz as seguintes sugestões de leitura:
Histoire de l’Inde moderne, sob a direção de Claude Markovits, Fayard, 2005;
Une histoire de l’Inde. Eric-Paul Meyer, Albin Michel, 2007;
Un autre islam. Inde, Pakistan, Bangladesh, Marc Gaborieau, Albin Michel, 2007;
Les voix de la partition Inde-Pakistan, Urvashi Butalia, Actes Sud, 2002;
L’Inde contemporaine, de 1950 à nos jours, Christophe Jaffrelot, Fayard, 2006.
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