"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, agosto 24, 2007

O Senhor Mercado. Um artigo de Washington Uranga

“Caracterizado como um personagem presente em nossas vidas cotidianas, o Mercado é apresentado com sentimentos quase humanos: é capaz de ter ‘medo e ‘ambições’. É ‘hábil’, às vezes ‘racional’ e outras tantas ‘irracional’. Em alguns casos tem ‘pânico’. Está em condições de ameaçar, escorar ou desestabilizar governos de países como os nossos”, diz o jornalista argentino Washington Uranga em artigo para Página/12, 20-08-2007. A tradução é do Cepat.

As notícias dos últimos dias e meus conhecimentos apenas básicos sobre questões de economia global reavivaram em mim uma velha incerteza e, porque não aceitá-lo, certo pânico diante de um ator alheio, mas ao mesmo tempo presente na minha vida cotidiana e que se costuma imaginar tão inteligente quanto sinistro, audaz mas também arteiro, e que sempre está na espreita para surpreender os desatentos em hora inesperada. É uma espécie de animal multiforme com nome, mas sem sobrenome: Mercado. O mesmo que às vezes se multiplica num plural ainda mais perigoso: Mercados. Um ator sem corpo nem rosto, mas apesar disso visível. Todos os dias as notícias, escritas por aqueles que conhecem o tema em profundidade, nos falam da “estabilidade” ou da “instabilidade” dos Mercados.

Caracterizado como um personagem presente em nossas vidas cotidianas, o Mercado é apresentado com sentimentos quase humanos: é capaz de ter “medo” e “ambições”. É “hábil”, às vezes “racional” e outras tantas “irracional”. Em alguns casos tem “pânico”. Está em condições de ameaçar, escorar ou desestabilizar governos de países como os nossos, mal chamados “emergentes”, desconhecendo e desprezando o que as urnas da democracia tenham determinado. Suponho que aqueles que o conhecem devem chamá-lo respeitosamente de Mister Mercado, porque também dizem que o inglês (e nunca o espanhol) é a linguagem própria dos Mercados. Mr. Mercado se comporta de maneira “inquieta” ou “serena”.

Quando quero imaginá-lo situado em algum lugar concreto, corporificá-lo, escapa dos limites em que tento circunscrevê-lo para aparecer simultaneamente e com diferentes rostos aqui, em Nova York, em Tóquio ou em Londres. Quase nunca na África, onde não deve se sentir muito à vontade, não pelo clima mas por tanta pobreza. Entra e sai sem necessidade de vistos e passaportes, porque em tempos de globalização parece ter cidadania em todos os lugares.

Do ponto de vista ideológico, há Mercados que têm “olhares ortodoxos” e, outros, “heterodoxos”. Pressinto que nem uns nem outros devem guardar alguma analogia com conservadores e progressistas. Todos devem ser “mercadistas”, quer dizer, liberais capitalistas da primeira e da última hora.

As ações do Mercado transcendem cada lugar concreto e específico para incidir na vida de todos os cidadãos e de todas as cidadãs deste mundo global. Também na minha vida. O tal Mercado me condiciona até no preço das abobrinhas na feira, para não falar de temas mais complexos como o valor da moeda, a taxa de juro, o preço dos aluguéis ou a cotização dos bônus da dívida externa.

À luz dos desenvolvimentos científicos, o figuro com rosto tecnológico e cheio de sofisticação informática. E a cada característica que lhe acrescento fica mais distante e mais perverso, para colocar-me no lugar da impotência absoluta diante das suas iniciativas, que não deixam espaço nem para a defesa nem para a réplica com a única arma que possuo: o pequeno salário de cada final de mês. Porque acontece também que cada vez que o Mr. Mercado teve a ver com o meu salário, o único apoio doméstico com o qual continuo contando no marco da economia global, nunca me foi favorável. Quero pensar que não se trata de nada pessoal comigo, mas está claro – porque é isso pelo menos o que dizem os seus porta-vozes e o transmitem aqueles que realmente sabem sobre o tema – que o Mr. Mercado se “inquieta” com as reclamações salariais e até “ameaça” quando acha que as demandas são excessivas.

A julgar pelas conseqüências, o Mercado maximiza benefícios para os que já contam com muito e os minimiza para os que vivem do que ganham no final do mês. Suspeito, então, que, se bem que tem vida própria, o Mr. Mercado e todos os Mercados são alimentados e sustentados por aqueles que se favorecem com as suas ações. Minha pouca ciência sobre o tema não me impede de chegar à certeza de que o manual de cabeceira do Mercado tem vários capítulos sobre “como obter lucros” e nenhum sobre “solidariedade”.

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