Por que razão Che se transformou em um mito? É o que Jorge Auliciano em artigo para o El País, 30-09-2007, procura desvendar. Segundo ele, esse processo de mitificação de Che começou antes de sua morte, com o que já tinha de mítico a revolução cubana e os seus heróis. Mas o sacrifício converteu Che num emblema de gratuidade, de férrea adesão a ideais, exatamente numa sociedade na qual esse desapego estóico e carregado de princípios parece cada vez mais um objeto de museu.
O autor, considera ainda que contribuiu para consolidar a imagem de um Che mítico e lendário duas fotos históricas, a do fotógrafo cubano Alberto Korda e a do fotógrafo boliviano Freddy Alborta. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A conjugação de uma derrota sublime, de um crasso erro tático e estratégico e de duas imagens que se difundiram quase que simultaneamente fizeram de Ernesto Guevara um símbolo de gratuidade, coragem, absoluto desapego, inclusive pelo objetivo e emblema de uma vitória metafísica.
A história deve ainda dizer muito sobre as razões que levaram Guevara e seus ideais a um beco sem saída na selva de Ñancahuazú no sudeste boliviano. A forma inclusive como Che caiu nas mãos do exército boliviano, ferido, andrajoso, com uma arma avariada, deveria ser tão significativo como o seu corpo estendido sobre uma maca colocada sobre uma espécie de tanque de lavagem no hospital de Vallegrande.
“Não se preocupe capitão, tudo acabou”, é o que Guevara teria dito a Gary Prado, segundo esse, no momento em que se entregou. Prado hoje é general e anda em cadeiras de rodas baleado nas costas por um erro quando despejava, anos depois, ultra-direitas que ocuparam um poço petroleiro. Esse “tudo acabou” não significa mais do que a confissão quase sarcástica de uma impotência que nunca foi explicada.
Não é a frase que Guevara pronunciaria desde o terreno do mito, lugar para o qual foi depois das rajadas de fuzil automático disparadas pelo sargento Mario Terán, no momento em que se encontrava prisioneiro em uma escola do povoado de La Higuera. As palavras que o mito pronuncia são: “Aponte bem e dispare. Você vai matar um homem”. Terán foi quem as repetiu para a posteridade. Elas ressoam hoje de uma maneira estranha. Guevara parece estar dizendo: “Você vai matar um valente”, mas também: “Vai matar um homem, não a sua lenda”.
Como se construiu esse mito?
Hoje, os camponeses dessa região da Bolívia fizeram um santuário não no lugar em que foi fuzilado – a escolinha de La Higuera – mas no local de Vallegrande em que foi exibido o seu cadáver. Os camponeses na época que não se uniram a ele e, tampouco o apoiaram, o têm como um santo. É o que sobrou da verdadeira religiosidade que ainda inspira o Che. O restante é um aluvião de imagens das quais não é possível estabelecer o conteúdo nem o significado. Milhares de jovens que nem haviam nascido quando Che morreu, o carrega em imagens sobre suas camisetas, em tatuagens nos adesivos em automóveis - não são socialistas e nem o serão e ignoram quase tudo sobre o tipo de revolução que Che queria.
Che partiu de Cuba em 1965. Perdeu ali várias batalhas políticas ou não foi demasiado apto para travá-las. Em 1967, o ano da sua morte, o editor marxista Giangiacomo Feltrinelli, que em 1972 morreu vítima de uma explosão enquanto suponha-se tentava sabotar uma torre de alta tensão próxima de Milão, obteve de presente uma foto de Alberto Korda, de 1960. O fotógrafo cubano a tirou em um ato de rua quando Che se aproximou da mureta de um palanque para olhar a multidão. Não gostou e deu a Feltrinelli que viu na foto a imagem de uma espécie de anjo sombrio e visionário. Em poucas semanas vinha à tona o primeiro pôster de Che. A imagem virou milhares de cartazes e cartões postais. Meses depois, Che morria.
Quase simultaneamente outra foto se sobrepôs a de Alberto Korda, a foto tirada de Che pelo fotógrafo da UPO, Freddy Alborta em Vallegrande, foto que associa Che a imagem de Cristo. As fotos de Freddy Alborta; a pintura de Andrea Mantegna, A lamentação sobre Cristo Morto, de 1940 e a pintura de Rembrandt, A lição de Anatomia do doutor Nicolas Tulp, de 1632, tornaram aquela morte de uma iconografia do martírio. Um certo modo de vincular estas imagens produzidas pela pintura e a história deram conteúdo a discussões que se sucedem desde que o escritor inglês John Berger relacionou o quadro de Rembrandt com as fotografias de Vallegrande.
Na realidade, os fatos, as causalidades, a pintura, a religião católica, parecem ter se misturado para que a imagem de Guevara saísse da historia e entrasse no terreno do mito, no preciso instante em que morreu. O anjo de 1960 e o mártir de 1967 são dois rostos de um mesmo sacrifício, posto que a foto de Korda deu a volta ao mundo já impregnada do ar sacrifical da foto de Alborta.
Décadas depois, o cineasta argentino Leandro Katz no seu documentário El día que me quieras (1997), pergunta ao fotógrafo boliviano sobre as fotos da morte e esse diz: “Comoveu-me o olhar de Guevara. Tinha a impressão de estar fotografando a um Cristo. Não era simplesmente um cadáver, era algo extraordinário”. Se Alborta sentiu realmente que se movia por um “entorno” místico então estava instintivamente unido à corrente pictográfica que desde o Renascimento acrescentou um poder sobrenatural às imagens do Cristo e do corpo de Cristo.
Nem o comando militar, nem Terán que não feriu o rosto de Che, nem o agente da CIA Félix Rodríguez que ordenou que se evitasse a desfiguração do rosto poderiam prever como a câmara do fotógrafo cavaria na escuridão até encontrar um corpo humano abatido e um olhar sobre-humano ao ponto de que se compararia a cena com a de um Cristo sob a cruz e com uma obra de Rembrandt nas quais luzes e sombras unem a carne detestável e perecível, o cheiro de morte e hospital, com um hálito cósmico. Há muita poesia nisso, mas uma poesia da qual se ‘alimentaram’ sucessivas gerações. A lente fotográfica, a arte mecânica do século, produziu o efeito da grande arte, desde o inicio até o final do mito de Che.
O resto é literatura. E o que vem depois, uma reprodução ao infinito de uma silhueta que não tem conteúdo propagandístico, uma vez que não há o que propagandizar, nem político, mas meramente ideológico em conceito de mistificação.
A imagem de Che estirado o fez imortal. De nada serve hoje dizer que a sua incursão na Bolívia foi um fracasso militar e político, uma sucessão de erros de trágicas dimensões para ele e para o movimento revolucionário. A questão pela qual Che morria não era importante. O estadunidense Peter Bourne em sua biografia Fidel destacou a causa pela qual, mesmo no fracasso político, a morte de Che é éticamente vitoriosa: “Che, um revolucionário purista, romântico, acreditava que estar moralmente correto era, em última instância mais importante do que conseguir a vitória”.
Há idéias que a imagem de Che já não atinge. Idéias que por sua vez seriam muito difícil dos jovens que carregam a imagem de Che compreender. São de um período da história cujo discurso resulta incompreensível. Na A vida vermelha (1197) o ensaísta mexicano Jorge Castañeda anota: “As idéias de Che, a sua vida, a sua obra, inclusive o seu exemplo, pertencem a outra etapa da história moderna, e como tais, dificilmente recobrarão algum dia a sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas vinculadas a Che – a luta armada, o foquismo guerrilheiro, a criação do homem novo e a primazia dos estímulos morais, o internacionalismo combatente e solidário – carecem virtualmente de vigência. A revolução cubana – seu maior triunfo, seu verdadeiro êxito – agoniza ou apenas sobrevive graças à rejeição de boa parte da herança ideológica de Guevara. Mas a nostalgia persiste”.
O “clima da época” se apresenta em uma história que ao longo dos anos parecia desmesurada e impossível. Tinha o selo da revolução cubana, que também em princípio parecia impossível e que foi considerada no mundo da esquerda como um sucesso excepcional, a luta contra os Estados Unidos, a congênita debilidade do exército cubano, a bandeira nacionalista enraizada na ilha e uma coragem fora do comum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário