“Em seu surgimento, o liberalismo aparece como um movimento de ruptura, em claro antagonismo com o Antigo Regime, em sua dupla dimensão política e religiosa, às quais se opõe e quer substituir”, diz José Vidal-Beneyto. Por conta disso, “a conjunção destes dois absolutismos [a Igreja Católica e a Monarquia] faz da luta liberal contra eles um dos primeiros movimentos de libertação política na Europa ocidental”.
Entretanto, escreve Vidal-Beneyto, os pais fundadores e seus teóricos mais recentes “construíram um impressionante corpo doutrinal que representa uma proposta filosófica e político-econômica digna, que eu inevitavelmente banalizei, e que o lamentável trabalho dos políticos e a voracidade do lucro transformaram num mundo de horrores”.
Segue a íntegra do artigo de José Vidal-Beneyto publicado no El País, 12-04-2008. A tradução é do Cepat.
Para efeito desta reflexão, o ideal é um conjunto de princípios, valores e propostas a cuja realização aspiram os seres humanos num determinado âmbito ou na totalidade de suas existências. As grandes formações políticas, os corpos doutrinais que as sustentam e os marcos referenciais que as demarcam sofrem transformações com o passar do tempo, e, às vezes, desembocam em contra-imagens que pervertem seus valores iniciais e são uma dramática caricatura de sua versão inicial.
Esse foi o destino dos principais movimentos políticos – liberalismo, socialismo, comunismo, anarquismo, conservadorismo e fascismo –, assim como das forças que os apoiaram, que ocuparam o espaço político durante os últimos dois séculos e sem solução de continuidade.
Dentre eles, hoje, na perspectiva democrática do mundo ocidental, os mais robustos são o liberalismo e as versões atenuadas do socialismo, que conhecemos como social-democráticas e, mais conservadoramente, social-liberais.
Em seu surgimento, o liberalismo aparece como um movimento de ruptura, em claro antagonismo com o Antigo Regime, em sua dupla dimensão política e religiosa, às quais se opõe e quer substituir. A impugnação do absolutismo religioso e a batalha pela secularização, que entronca com a colocação básica da ideologia do Iluminismo, supõe um enfrentamento frontal com as posições da Igreja católica alinhada com as opções da Monarquia e estreitamente associada às práticas absolutistas do poder real.
A conjunção destes dois absolutismos faz da luta liberal contra eles um dos primeiros movimentos de libertação política na Europa ocidental. O impulso para a democracia neles subentendido constitui, como assinala Pierre Manent em História Intelectual do Liberalismo (Rio de Janeiro: Imago, 1998), uma determinação democrática permanente que voltaremos a encontrar em sua ação contra os poderosos por herança, na desqualificação do Estado e sua oposição à dominação das massas.
Essa pulsão inesgotável acabará produzindo a convergência de liberalismo e democracia numa das figuras dominantes da contemporaneidade política: o liberalismo democrático ou demoliberalismo. Seus pilares fundamentais são os interesses e os indivíduos, ou mais precisamente os interesses individuais únicos capazes de organizar uma comunidade livre e autônoma, suscetíveis de cobrir suas necessidades naturais, sem que as opiniões nem as paixões interfiram nessa satisfação, o que é seu primeiro direito natural básico e ao qual ninguém pode se opor.
Matriz que desemboca em três grandes blocos: direito à vida e à integridade física; direito à propriedade e ao trabalho, que é o que nos assegura a subsistência, e direito à liberdade e à crítica, que são os que nos garantem o poder de escolher o que mais nos convém. A organização e o poder político não têm outra razão de ser que afiançar e proteger esses direitos.
A conjunção entre fins do indivíduo e cumprimento social se realiza no intercâmbio de bens e serviços cuja eficácia igualitária repousa na eliminação de grupos e classes dominantes herdeiras que falseiam a troca e perpetuam a injustiça. A troca se realiza num espaço privilegiado da sociedade, o mercado, que não necessita de nenhum poder nem regras alheias a ele, porque dispõe de disposições reguladoras próprias, as leis do mercado, que, além disso, são presididas por “uma mão invisível” que opera por si só a partir de dentro, afiançando e preservando sua articulação.
Os pais fundadores, John Locke, Adam Smith, Edmund Burke, Thomas Paine, François Guizot e Jean-Baptiste Say, e os mais próximos, Tocqueville, Stuart Mill, Von Mises, Von Hayek, Jouvenel e Aron construíram um impressionante corpo doutrinal que representa uma proposta filosófica e político-econômica digna, que eu inevitavelmente banalizei, e que o lamentável trabalho dos políticos e a voracidade do lucro transformaram num mundo de horrores.
Dany-Robert Dufour acaba de publicar – em Le divin marché. La révolution culturelle libérale [O divino mercado. A revolução cultural liberal] – um inventário dos mesmos em forma de mandamentos: “Deixar-te-ás guiar exclusivamente pelo egoísmo”, “Utilizarás os outros como meio para alcançares os teus objetivos”, “Combaterás todos os Estados e governos”, “Violarás as leis sem que te condenem”, e assim por diante até dez.
Ilustrando a máxima de Mandeville, “os vícios privados produzem a riqueza pública”, o que reduz o ideal liberal a uma abominável caricatura.
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