Site do Azenha - Atualizado em 17 de agosto de 2008 às 21:40 | Publicado em 17 de agosto de 2008 às 18:39
Amazônia, Dantas, Mutran e outros bichos
Rogério Almeida
O crime é o semblante mais nítido na disputa pela terra em latitudes amazônicas? As investidas do considerado banqueiro Daniel Dantas sobre a fronteira agro-mineral do sudeste do Pará parece inaugurar um novo capítulo de uma novela antiga conhecida pela prática do ilícito, a apropriação do estado para a garantia da benesse de uma meia dúzia de “espertos”, o assassinato de representações políticas populares, a devastação da floresta e um horizonte de impunidade.
O elemento Dantas, que a mídia grandalhona insiste em tratar como banqueiro, nos derradeiros três anos fez sem muito estardalhaço um pequeno feudo numa região considerada das mais tensas na disputa pela terra no país. Ainda é uma incógnita o verdadeiro interesse do senhor Dantas em solo paraense. O controlador do Banco Oppotunity, celebrizado por suspeitas de ter cometido um catatau de crimes de variadas ordens, entre elas, espionagem de pessoas influentes do governo, fraudes no mercado financeiro, beneficiamento em mega-transações de privatizações de estatais, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha reacende poderosos holofotes sobre a legalidade das terras na região.
No sul e sudeste do Pará registram-se inúmeras redes econômicas, políticas e sociais na disputa pelo controle do solo farto em recursos naturais, onde se destaca o minério. Muitas destas redes têm nos trilhos da ilegalidade o seu caminhar. Seria essa a perspectiva original do senhor Dantas em controlar num tempo pequeno uma vasta extensão de terras num lugar considerado barril de pólvora, a possibilidade de encontrar novas fontes de minério para posteriormente negociar obtendo grandes vantagens?
Não são nítidos os interesses, a quantidade exata de terras e gado sob o controle da pessoa jurídica do senhor Dantas em terras do Pará, a pecuária Santa Bárbara Xinguara, dirigida pelo ex-cunhado Carlos Rodenburg. Estima-se em cerca de 40 fazendas distribuídas em nove municípios do sul e sudeste do estado. Algumas matérias realizadas por jornais regionais indicam que os fazendeiros locais festejam as ações da pecuária Santa Bárbara.
A legitimidade de posse de terras na região é uma questão delicada. Uma guerra de mapas ladeada pela ausência de dados seguros por parte dos diferentes níveis de intervenção de governos anima ainda mais a intervenção de diferentes setores sobre áreas na região. Calcula-se que somente 10% dos títulos das terras na Amazônia sejam passíveis de legalidade. A grilagem de floresta na região do Xingu pelo empreiteiro Cecílio Rego Almeida é dado revelador nesse sentido. Sem falar na comercialização de áreas consideradas públicas na internet.
Antecedentes regionais
Houve um tempo em que os castanhais das terras do Araguaia-Tocantins[1] eram livres. Os rios configuravam as principais vias de transporte. Os dias reinaram assim até o ano de 1920 do século passado. Na época a Amazônia respirava o ocaso do ciclo do extrativismo da borracha. O Comércio dos irmãos Chamom fazia o aviamento[2] nos municípios de Marabá e Tucuruí (na época Alcobaça), sudeste do Pará. Desta forma era ativado o extrativismo da castanha[3]. Enquanto cabia as empresas Bittar irmãos, Dias & Cia, Nicolau da Costa e A Borges & Cia, entre tantos, a empresa em Belém. Europa e Estados Unidos foram o destino da produção. Explica a pesquisadora Marília Emmi, na obra, A Oligarquia do Tocantins e o Domínio dos Castanhais.
Até então os índios gavião e seus sub grupos (krikateje, parketeje e akrikateje), bem como, kaapor, xicrin, atikum, guajajara, suruí, entre outros povos, eram os senhores do lugar. Ainda que o estado viesse a declarar durante o regime militar a porção de terras um vazio demográfico. Trabalho escravo, mandonismo e clientelismo davam contorno ao poder dos coronéis.
Conforme pesquisa de Emmi, o comerciante e político Deodoro de Mendonça e sua parentela hegemonizam no domínio dos castanhais até 1940. No período aportaram na região descendentes de sírios-libaneses, a família Mutran, oriunda do município de Grajaú, Maranhão, que data da década de 1920. Já em 1930 arrenda e adquire várias terras. Coube a empresa A Borges & Cia aviar a família.
Foi a partir de uma política de indutora do Estado na Amazônia, em particular no sudeste do Pará que a atividade da pecuária ganhou proporção. Os anos eram de chumbo, e além da pecuária o estado incentivou a atividade madeireira e minerária. A idéia era fazer com que a região prosperasse a partir desses três pólos: madeira, minério e gado. Assim vastas extensões de terras foram transferidas ou apropriadas por empresas nacionais do centro sul e internacionais. Entre elas podem ser encontrados bancos como o Bradesco e o extinto Bamerindus, sem falar na Volkswagen. Por falar em banco, outro que antecipou Dantas foi Calmon de Sá, do falido Banco Econômico. A renúncia fiscal foi a política adotada para a atração de empresas. Tal renúncia fiscal tinha nos agentes de planejamento e financeiro estatais a ponta de lança, leia-se Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e Banco da Amazônia (BASA).
Região explosiva
O xadrez de agentes e suas respectivas redes que atuam no sudeste do Pará é complexo. Cá atuam a grande mineradora Vale, privatizada desde 1997, numa operação considerada um crime de lesa pátria. Por ser a detentora de tecnologia de ponta é ela quem estrutura e desestrutura o território do lugar, como ocorre em várias partes do Pará, a exemplo da tensão registrada no município de Ourilândia do Norte e vizinhança, onde inúmeras famílias de projetos de assentamentos da reforma agrária estão sendo expulsas por conta de sua Mineradora Onça Puma (MOP), que explora níquel.
Agem ainda pelo controle do território grupos indígenas, em certa medida já aculturados pelos hábitos do mundo branco. Na década de 1980, quando a disputa pela terra torna-se mais aguda, ganha ares de esquadrão da morte a partir da ação da União Democrática Ruralista (UDR), ligada a fazendeiros do Bico do Papagaio, norte do Tocantins, sul do Pará e oeste do Maranhão. Com tal contexto, ninguém ousou indicar que o campesinato da fronteira iria se territorializar. Hoje a categoria controla mais de 50% do território no sul e sudeste paraense através de projetos de assentamento. O reconhecimento de áreas ocupadas, algumas delas há mais de duas décadas teve no trágico episódio do Massacre de Eldorado o estopim.
Não resta dúvida quanto ao peso dos fazendeiros na região, mas a conversão de fazendas ocupadas em projetos de assentamentos demonstra o avanço do poder de mobilização dos movimentos sociais camponeses da região, expressos através da Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura do Pará e Amapá (FETAGRI), regional sudeste, com atuação de mais de uma década. Mesmo período contabiliza o MST. Além desses agentes registra-se a presença de garimpeiros. Além dos projetos de assentamento há outras expressões de poder do campesinato local, traduzidas através da efetivação da Escola Família Agrícola (EFA), cursos de nível superior, como Agronomia, Pedagogia e Letras, assento de representações da categoria nas câmaras e executivos municipais.
O sudeste do Pará é uma região que merece atenção especial por parte do poder público. Ela coleciona graves passivos oriundos da experiência dos grandes projetos. A região é recordista em trabalho escravo, assassinatos contra dirigentes e militantes da reforma agrária, concentra boa parte dos municípios mais violentos do país, sem citar a devastação florestal. O cenário atual não soa animador. Um exame no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), sinaliza para maior pressão sobre a terra e os recursos nela existentes. Há uma série de obras de infra-estrutura: rodovias, hidrovias, hidrelétricas na bacia do Araguaia-Tocantins que irão reorientar, como nos anos da ditadura, o cenário econômico, social e político da região.
Ligações perigosas de Dantas
O poder da grana suspeita do senhor Dantas o ajuda a manter o bom arsenal de informações privilegiadas, influenciar a imprensa, conquistar a bajulação de jornalistas, transitar entre políticos de diferentes colorações partidárias, angariar a simpatia de elementos da alta corte do judiciário. O poder da grana de Dantas aluga empresas de espionagens, acessa informações de fazendeiros adeptos do trabalho do escravo, grilagens de terras e um vasto histórico de indiferenças com a letra da justiça, como o caso da família Mutran, tronco com maior envergadura no controle de extensões de castanhais no Pará.
Família Mutran – A senhora dos Castanhais
Na paisagem das oligarquias dos castanhais, a dos Mutran se tornou a de maior destaque. Notabilizou-se na história da região pelo abuso da violência. A condição de escravidão, ou modo similar de submissão, continua a ocorrer nas terras do Araguaia Tocantins. O modelo é apenas uma face das várias modalidades de violência que povoam a atmosfera da região.
São muitas as acusações de crimes que pesam nas costas do clã dos Mutran. Assassinatos, corrupção na administração da prefeitura de Marabá, manutenção de cemitérios clandestinos em “suas” fazendas, submissão de trabalhadores rurais à condição de trabalho escravo.
Em listas sujas divulgadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), constam três propriedades da família. As “listas sujas” do trabalho escravo foram divulgadas nos anos de 2003 e 2004. As propriedades são: Fazenda Cabaceiras, ocupada pelo MST desde 26 de março de 1999, a Fazenda Peruano, também ocupada pelo MST em abril de 2004, e a Mutamba, onde o MST ocupou, mas não conseguiu se manter. Sob força de liminar os nomes das fazendas foram retirados nas listas. Desta forma o fazendeiro pode pleitear financiamento público.
A fazenda Cabaceiras mantinha cemitério clandestino. A denuncia veio à tona em setembro de 1999, através de reportagem assinada por Ismael Machado, publicada na revista Caros Amigos, São Paulo, edição de número 30. A presença de cemitério clandestino na fazendeira Cabaceiras foi realizada por uma testemunha de 64 anos, que foi mantida no anonimato. O depoimento ocorreu no dia 21 de julho na Procuradoria da República do Pará. A fazenda foi desapropriada pelo INCRA recentemente.
Foi com Benedito Mutran Filho que o senhor Dantas negociou a compra de inúmeras fazendas, entre elas a Maria Bonita, ocupada por cerca de 600 famílias ligadas ao MST no dia 25 de julho, quando se celebrou o Dia do Trabalhador Rural. A ação do movimento foi um ato contra a corrupção no país, no sentido de se obter mais agilidade na política de reforma agrária. Boa parte das terras sob o domínio da família é uma cessão de uso do estado para fins do extrativismo da castanha, e não podem ser repassadas para terceiros. As fazendas São Roque e Cedro também seguiram a mesma linha.
Aforamentos
Trata-se de um mecanismo de cessão de uso da terra concedido pelo Estado a terceiros. No caso do sueste do Pará os registros históricos indicam que a prática remonta aos anos de 1920 do século passado. No Pará o aforamento abrange um período de concessão de 1955 a 1966 (a partir daí eles só serão adquiridos por transferências de direitos dos foreiros originais). O Estado nesse período concedeu 252 aforamentos. Destes 168, ou seja, 66.66% foram em Marabá, informa pesquisa da professora Marília Emmi. A obra da professora da Universidade federal do Pará (UFPA) esclarece que a Lei de nº 913 previa a concessão de um único aforamento com área de 3.600 hectares para cada requerente, o que se observou desde o início foi uma tendência e concentração do domínio das áreas de castanhais por grupos familiares.
O bom negócio residia na coleta e comércio da castanha. Através da força, arrendamento e aforamento, as terras públicas foram transferidas para o poder privado. Desta forma a família Mutran, a partir de 1950, vai se configurar como senhora da vida e da morte de muitos camponeses e coletadores de castanha. Na pesquisa de Emmi há indicadores de que em 1960 a família chegou a ser detentora de 80% dos castanhais.
A partir do presente cenário, em certa medida anuviado, dos reais interesses do senhor Dantas no Pará - em parceria com fazendeiros da mais fina estampa - é que se dirige a ação de ocupação da área tratada como Maria Bonita em Eldorado do Carajás, um rincão distante dos palácios, bolsas de valores, redações e catedrais.
Rogério Almeida é colaborador do www.forumcarajas.org.br, articulista do IBASE e Ecodebate.
[1] A bacia do Araguaia-Tocantins banha três regiões do território nacional: Norte, parte do Nordeste e Centro Oeste. Mede 813.674 Km2 e corta os estados do Maranhão, Tocantins, Pará, Goiás, Mato Grosso e parte do Distrito Federal. Dois biomas integram a bacia do Araguaia –Tocantins, cerrado e a Floresta Amazônica, com predomínio do primeiro. Para melhor compreender a disputa pela terra na região sugiro a leitura da obra A Oligarquia do Tocantins e o Domínio dos Castanhais, da pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Marília Emmi,1999.
[2] Aviamento consistia no forma de poder dos comerciantes com os coletadores de castanha. Os comerciantes adiantavam suprimentos necessários aos dias de trabalho floresta, cabendo ao coletador a venda obrigatória da castanha ao comerciante.
[3] Castanha do Pará (Bertholletia Excelsa), é uma frondosa árvore. Em remotos tempos, abundou em vários estados do Norte. É do ouriço, o fruto, que se extrai a castanha.
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