"Onde está a "mão invisível" que regula o mercado? Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui (na Etiópia) parecia conhecê-la", escreve David Oliveira de Souza, médico, 32 anos, responsável pela Unidade Médica de Médicos Sem Fronteiras no Brasil, especialista em medicina de família e comunidade pela Uerj e em clínica médica pela UFRJ, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, professor de saúde coletiva da Universidade Federal de Sergipe, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 18-08-2008.
Eis o artigo.
É consenso para organizações internacionais como Unicef e FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que a produção mundial de alimentos é mais que suficiente para cobrir as necessidades terrestres. Porém, durante a leitura deste artigo, 60 crianças no planeta morrerão de desnutrição e, ao fim do dia, serão quase 20 mil. Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la.
Em Kambata, no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome. Dedicadas à produção de gengibre para o mercado externo, muitas famílias de pequenos produtores deixaram de produzir comida para consumo próprio, imaginando que, com a venda da colheita, poderiam comprar os insumos necessários a seu sustento. O preço do gengibre, contudo, ficou abaixo do esperado, o custo dos alimentos subiu, agravado pela crise mundial e pelo clima local e, como resultado, a fome chegou.
Crise semelhante se deu no Níger, em 2005, onde à insuficiente produção de subsistência uniram-se a seca e os ataques de gafanhotos à lavoura. Nesse país, onde MSF já cuidou de mais de 500 mil crianças desnutridas, ao mesmo porto de onde partiam navios abarrotados de cereais para exportação chegavam carregamentos de ajuda alimentar para a faminta população local. Embora o aumento do custo dos alimentos seja um importante fator de crise, é preciso lembrar que ele apenas agrava uma situação crônica.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a desnutrição representa 10% de todas as doenças e já vem sendo há muito tempo negligenciada pela comunidade internacional. De acordo com a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, iniciativa de MSF, apenas 3% dos 20 milhões de crianças com desnutrição severa recebem o tratamento recomendado pela ONU. Quando a escassez de comida é intensa, as famílias reduzem o número de refeições e precisam abrir mão de bens essenciais, como gado e até a própria casa. Se a situação piora, as estruturas da comunidade entram em colapso, aumenta a violência, iniciam-se grandes ondas migratórias e os indivíduos menos valorizados na cadeia produtiva, como meninas e órfãos, tendem à marginalização. O momento final e mais grave ocorre quando há falta absoluta de alimentos, afetando uma grande população por um longo período. Nesse caso, o cenário é desolador, e a mortalidade, altíssima.
Em um acelerado processo de degradação humana, parte de um povo vai sendo consumido e sua descendência poderá ter a capacidade cognitiva prejudicada pela falta de acesso aos nutrientes adequados. Aqui em Kambata, diariamente mais de 3.000 pessoas procuram nossos centros de nutrição. Há dias que precisamos interromper as atividades, com medo de perder o controle da multidão desesperada. Alguns pacientes estão tão fracos que nem conseguem engolir. É difícil descrever a aparência da fome. A criança desnutrida é triste, parada, tem cara de velhinho e, algumas, por causa da carência protéica, ficam com as pernas e o rosto inchados.
Mesmo assim, é possível salvar muitas vidas e, especialmente no caso das crianças, após duas semanas de tratamento, o rosto muda tanto que quase não dá para reconhecer.
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