Site do Azenha - Atualizado em 18 de agosto de 2008 às 13:56 | Publicado em 18 de agosto de 2008 às 13:50
Máhmude Deruíche: a ira, a saudade, a esperança*
Uri Avnery, 16/08/08
Uma das frases mais sábias que jamais ouvi em minha vida ouvi-a de um general egípcio, poucos dias depois da visita histórica de Anuar Sadat – a visita da vitória –, a Jerusalém.
Fomos os primeiros israelenses a chegar ao Cairo, e, dentre outras curiosidades, queríamos muito saber: como os egípcios haviam conseguido nos surpreender, no início da guerra de outubro de 1973?
O general respondeu: "Em vez de ler relatórios dos serviços de inteligência, vocês deveriam ler nossos poetas."
Pensei nestas palavras na quarta-feira passada, no funeral de Máhmude Deruíche.
DURANTE a cerimônia em Ramállah, vários referiram-se a ele como "o Poeta Nacional da Palestina".
Aquele morto foi muito mais do que isto. Foi a encarnação do destino dos palestinenses. Seu destino pessoal coincidiu com o destino de seu povo da Palestina.
Deruíche nasceu em al-Birwa, vila na estrada Acra-Safad. Há 900 anos, um viajante persa contou que visitou esta vila e ajoelhou-se nos túmulos de "Esaú e Simeão, que descansem em paz." Em 1931, dez anos antes de Máhmude nascer, viviam na mesma vila 996 habitantes, dos quais 92 cristãos; os demais, muçulmanos sunitas.
Dia 11 de junho de 1948, a cidade foi ocupada pelo exército de Israel. Suas 224 casas foram derrubadas logo depois da guerra, exatamente como em outras 650 vilas da Palestina. Só alguns cactos e poucas ruínas ainda testemunham que aquelas vilas um dia existiram. A família Deruíche fugira pouco antes da chegada das tropas; e o pequeno Máhmude, de sete anos, partiu com os parentes.
Não se sabe como, a família conseguiu voltar – para onde então já era território israelense. Receberam documentos de "ausentados presentes [1]" – espantosíssima invenção israelense. Significava que eles seriam residentes legais em Israel, mas que suas terras lhes haviam sido roubadas, nos termos de uma lei que dizia que qualquer árabe perderia a propriedade de suas terras se não estivesse fisicamente presente na vila quando fosse ocupada. Nas terras da família Deruíche foi construído o kibbutz Yasur (do movimento de esquerda israelense) e implantou-se a vila-cooperativa Ahihud.
O pai de Máhmude instalou-se na vida árabe mais próxima, Jadeidi, de onde podia ver de longe as suas terras. Aí Máhmude cresceu e sua família ainda vive, até hoje.
Durante os 15 primeiros anos do Estado de Israel, os cidadãos árabes viveram sob um "regime militar" – sistema de repressão severa que controlava todos os aspectos da vida, inclusive todos os movimentos. Nenhum árabe podia viajar para fora de sua vila sem permissão especial. O jovem Máhmude Deruíche várias vezes violou esta proibição; e sempre que foi apanhado foi encarcerado. Quando começou a escrever poesia, foi acusado de incitar a sublevação e posto sob "detenção administrativa", sem julgamento.
Na prisão, então, escreveu um de seus poemas mais conhecidos, "Carteira de Identidade", poema em que se manifesta a ira de um jovem que cresceu em condições de humilhação. O primeiro verso troveja para o mundo: "Lembrem: sou árabe!"
Neste período encontrei Deruíche pela primeira vez. Procurou-me e trouxe outro jovem árabe, nascido em outra vila árabe, e com forte compromisso político nacional, o poeta Rachid Hussein. Lembro do que Hussein disse-me, naquele dia: "Os alemães mataram seis milhões de judeus, e apenas seis anos depois os judeus fizeram a paz com a Alemanha. Conosco, os judeus não querem a paz."
Deruíche alistou-se no Partido Comunista, o único partido, político, então, em que um nacionalista árabe poderia atuar politicamente. Editou jornais. O partido mandou-o estudar em Moscou, mas o expulsou quando Deruíche decidiu não voltar a Israel. Em vez de voltar, alistou-se na OLP e foi para os quartéis de Iásser Árafate em Beirute.
LÁ O REENCONTREI outra vez, num dos eventos mais emocionantes de minha vida, quando cruzei a fronteira em julho de 1982, no auge do sítio de Beirute, e tive uma reunião com Árafate. O líder palestinense insistiu em que Máhmude Deruíche assistisse àquele encontro simbólico: era a primeira vez que Árafate encontrava-se com um israelense. Mandou chamar Deruíche.
A descrição do sítio de Beirute é um dos trabalhos mais impressionantes de Deruíche. Naqueles dias, converteu-se em poeta nacional da Palestina. Acompanhou a luta dos palestinenses; nas sessões do Conselho Nacional Palestinense – instituição que uniu todo o povo da Palestina, eletrizava multidões com seus versos, que ele mesmo declamava.
Naqueles anos, Deruíche viveu muito próximo de Árafate. Árafate foi o líder político do movimento nacional na Palestina; Deruíche foi seu líder espiritual. Deruíche escreveu a Declaração de Independência da Palestina, adotada na sessão de 1988 do Conselho Nacional por iniciativa de Árafate. É muito semelhante à Declaração de Independência de Israel, que Deruíche aprendera na escola primária.
Ele claramente entendeu a significação de seu discurso: ao adotar este documento, o parlamento palestinense no exílio aceitava, na prática, a idéia de estabelecer-se um Estado palestinense lado a lado com o Estado israelense, apenas numa parte da Palestina, como Árafate propusera.
A aliança entre os dois rompeu-se quando foram assinados os acordos de Oslo. Para Árafate, tratava-se de "o melhor acordo possível, na pior situação possível". Deruíche entendeu que Árafate concedera demais. O coração nacional impôs-se à mentalidade nacional. (Este debate histórico ainda não está concluído hoje, embora os dois já estejam mortos.)
Desde aquela época, Deruíche viveu em Paris, Aman e Ramállah – o palestino errante, que substituiu o judeu errante.
NUNCA QUIS ser o poeta nacional. Não queria fazer poesia política; queria ser lírico, poeta do amor. Mas para qualquer lado para o qual se virasse, o longo braço do destino dos palestinenses o alcançava e o arrastava de volta.
Não tenho capacidade para avaliar seus poemas ou a grandeza artística de Deruíche. Reconhecidos especialistas em língua árabe ainda discutem furiosamente entre eles o significado de seus versos, nuances, camadas, imagens e metáforas. Foi mestre em árabe clássico, e também vivia à vontade entre poetas ocidentais e israelenses. Para muitos, Deruíche foi o maior poeta da língua árabe e dos maiores de nosso tempo.
Pela poesia, conseguiu o que não conseguira fazer por outros meios: unificar todas as fraturas e fragmentos que dividem ainda o povo palestinense – na Cisjordânia, na Faixa de Gaza, em Israel, nos campos de refugiados e em toda a Diáspora. Pertenceu a todos os palestinenses. Os refugiados identificavam-se com Deruíche porque era um deles; os cidadãos palestinenses-israelenses também, porque também era um deles; e os que vivem nos territórios palestinenses ocupados, porque foi um guerreiro incansável contra a ocupação.
ESTA SEMANA, alguns cabeças da Autoridade Palestinense tentaram explorá-lo, na luta contra o Hamás. Duvido muito que Deruíche concordasse com isto. Embora fosse palestinense absolutamente secular e muito distante do mundo religioso do Hamás, ele manifestava os sentimentos de todos os palestinenses. Também falava à alma dos membros do Hamás em Gaza.
DERUÍCHE foi o poeta da ira, da saudade, da esperança e da paz. Estas foram as cordas de seu violino.
Ira, pela injustiça cometida contra o povo palestinense e contra cada filho da Palestina, individualmente. Saudade, do "café de minha mãe", das oliveiras de sua aldeia, da terra dos antepassados. Esperança de que a guerra chegue ao fim. Apoio à paz entre israelenses e palestinenses, baseada em justiça e respeito mútuo. No documentário da francesa-israelense Simone Bitton, Deruíche apontou o burrico como símbolo do povo palestinense; o burrico é inteligente, paciente e sempre encontra meios para sobreviver.
Entendia a natureza do conflito mais claramente que a maioria dos israelenses e dos palestinenses. Dizia que aquele conflito era "uma luta entre duas memórias". A memória histórica da Palestina colide contra a memória histórica dos judeus. Só haverá paz quando um lado entender a memória do outro lado – seus mitos, suas saudades secretas, as esperanças, os medos.
Este o significado do que disse o general egípcio: a poesia manifesta os sentimentos mais profundos dos povos. E só onde se compreendam estes sentimentos pode haver verdadeira paz. A paz costurada pelos políticos não vale grande coisa, se não houver alguma paz entre os poetas e a emoção dos muitos que a poesia manifesta. Por isto Oslo foi um fracasso. Por isto também o "acordo de prateleira" que está sendo negociado será também completamente inútil: nada tem a ver com as emoções e os sentimentos de palestinenses e israelenses, os povos.
Há oito anos, o então ministro da Educação de Israel, Yossi Sarid tentou incluir dois poemas de Deruíche no currículo das escolas em Israel. Houve escândalo, e o primeiro-ministro, Ehud Barak, decidiu que "o público israelense não está preparado para isto". É o mesmo que Barak ter decidido que o público israelense não está preparado para a paz.
Talvez ainda seja verdade. A verdadeira paz entre dois povos, paz entre as crianças que nasceram na semana corrente; no dia do funeral de Deruíche, em Telavive e em Ramállah, só será viável quando os alunos árabes puderem ler os versos imortais de Chaim Nachman Bialik "O vale da morte", sobre o pogrom de Kishinev, e quando os alunos israelenses puderem ler os versos de Deruíche sobre a Naqba [a Catástrofe]. E, sim, também os poemas da ira, inclusive o verso "Vão! E levem daqui a morte de vocês!"
Sem entender e encarar com coragem a ira flamejante contra a Catástrofe e suas conseqüências, jamais entenderemos as raízes da guerra e não saberemos construir a paz. Como escreveu outro grande intelectual da Palestina, Edward Said: sem entender o impacto do Holocausto na alma dos judeus, os palestinenses nunca entenderão os israelenses.
Poetas são os generais na luta entre duas memórias, entre os mitos, entre os traumas. Precisamos muito de poetas na estrada que levará à paz entre israelenses e palestinenses, entre dois Estados, para construirmos um futuro comum.
Não estive presente às cerimônias funerais organizadas pela Autoridade Palestinense na Mukata, tão organizadas, tão encenadas. Cheguei duas horas depois, quando o corpo de Deruíche foi enterrado numa bela colina, pairando sobre o cenário.
Impressionou-me o povo, reunido sob sol escaldante à volta do túmulo, ouvindo uma gravação da voz de Deruíche declamando seus versos. Gente simples, gente menos simples, unidos com o homem morto, numa comunhão privada. Apesar de serem milhares, abriram alas para nos deixar passar; nós, israelenses, que ali estávamos para reverenciar Máhmude Deruíche.
Nos despedimos silenciosamente de um grande filho da Palestina, um grande poeta, um grande ser humano.
* URI AVNERY, 16/8/2008, "The Anger, the Longing, the Hope", em Gush Shalom [Grupo da Paz], e em:
http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1218922126/.
Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte. Copyleft.
Uri Avnery, 16/08/08
Uma das frases mais sábias que jamais ouvi em minha vida ouvi-a de um general egípcio, poucos dias depois da visita histórica de Anuar Sadat – a visita da vitória –, a Jerusalém.
Fomos os primeiros israelenses a chegar ao Cairo, e, dentre outras curiosidades, queríamos muito saber: como os egípcios haviam conseguido nos surpreender, no início da guerra de outubro de 1973?
O general respondeu: "Em vez de ler relatórios dos serviços de inteligência, vocês deveriam ler nossos poetas."
Pensei nestas palavras na quarta-feira passada, no funeral de Máhmude Deruíche.
DURANTE a cerimônia em Ramállah, vários referiram-se a ele como "o Poeta Nacional da Palestina".
Aquele morto foi muito mais do que isto. Foi a encarnação do destino dos palestinenses. Seu destino pessoal coincidiu com o destino de seu povo da Palestina.
Deruíche nasceu em al-Birwa, vila na estrada Acra-Safad. Há 900 anos, um viajante persa contou que visitou esta vila e ajoelhou-se nos túmulos de "Esaú e Simeão, que descansem em paz." Em 1931, dez anos antes de Máhmude nascer, viviam na mesma vila 996 habitantes, dos quais 92 cristãos; os demais, muçulmanos sunitas.
Dia 11 de junho de 1948, a cidade foi ocupada pelo exército de Israel. Suas 224 casas foram derrubadas logo depois da guerra, exatamente como em outras 650 vilas da Palestina. Só alguns cactos e poucas ruínas ainda testemunham que aquelas vilas um dia existiram. A família Deruíche fugira pouco antes da chegada das tropas; e o pequeno Máhmude, de sete anos, partiu com os parentes.
Não se sabe como, a família conseguiu voltar – para onde então já era território israelense. Receberam documentos de "ausentados presentes [1]" – espantosíssima invenção israelense. Significava que eles seriam residentes legais em Israel, mas que suas terras lhes haviam sido roubadas, nos termos de uma lei que dizia que qualquer árabe perderia a propriedade de suas terras se não estivesse fisicamente presente na vila quando fosse ocupada. Nas terras da família Deruíche foi construído o kibbutz Yasur (do movimento de esquerda israelense) e implantou-se a vila-cooperativa Ahihud.
O pai de Máhmude instalou-se na vida árabe mais próxima, Jadeidi, de onde podia ver de longe as suas terras. Aí Máhmude cresceu e sua família ainda vive, até hoje.
Durante os 15 primeiros anos do Estado de Israel, os cidadãos árabes viveram sob um "regime militar" – sistema de repressão severa que controlava todos os aspectos da vida, inclusive todos os movimentos. Nenhum árabe podia viajar para fora de sua vila sem permissão especial. O jovem Máhmude Deruíche várias vezes violou esta proibição; e sempre que foi apanhado foi encarcerado. Quando começou a escrever poesia, foi acusado de incitar a sublevação e posto sob "detenção administrativa", sem julgamento.
Na prisão, então, escreveu um de seus poemas mais conhecidos, "Carteira de Identidade", poema em que se manifesta a ira de um jovem que cresceu em condições de humilhação. O primeiro verso troveja para o mundo: "Lembrem: sou árabe!"
Neste período encontrei Deruíche pela primeira vez. Procurou-me e trouxe outro jovem árabe, nascido em outra vila árabe, e com forte compromisso político nacional, o poeta Rachid Hussein. Lembro do que Hussein disse-me, naquele dia: "Os alemães mataram seis milhões de judeus, e apenas seis anos depois os judeus fizeram a paz com a Alemanha. Conosco, os judeus não querem a paz."
Deruíche alistou-se no Partido Comunista, o único partido, político, então, em que um nacionalista árabe poderia atuar politicamente. Editou jornais. O partido mandou-o estudar em Moscou, mas o expulsou quando Deruíche decidiu não voltar a Israel. Em vez de voltar, alistou-se na OLP e foi para os quartéis de Iásser Árafate em Beirute.
LÁ O REENCONTREI outra vez, num dos eventos mais emocionantes de minha vida, quando cruzei a fronteira em julho de 1982, no auge do sítio de Beirute, e tive uma reunião com Árafate. O líder palestinense insistiu em que Máhmude Deruíche assistisse àquele encontro simbólico: era a primeira vez que Árafate encontrava-se com um israelense. Mandou chamar Deruíche.
A descrição do sítio de Beirute é um dos trabalhos mais impressionantes de Deruíche. Naqueles dias, converteu-se em poeta nacional da Palestina. Acompanhou a luta dos palestinenses; nas sessões do Conselho Nacional Palestinense – instituição que uniu todo o povo da Palestina, eletrizava multidões com seus versos, que ele mesmo declamava.
Naqueles anos, Deruíche viveu muito próximo de Árafate. Árafate foi o líder político do movimento nacional na Palestina; Deruíche foi seu líder espiritual. Deruíche escreveu a Declaração de Independência da Palestina, adotada na sessão de 1988 do Conselho Nacional por iniciativa de Árafate. É muito semelhante à Declaração de Independência de Israel, que Deruíche aprendera na escola primária.
Ele claramente entendeu a significação de seu discurso: ao adotar este documento, o parlamento palestinense no exílio aceitava, na prática, a idéia de estabelecer-se um Estado palestinense lado a lado com o Estado israelense, apenas numa parte da Palestina, como Árafate propusera.
A aliança entre os dois rompeu-se quando foram assinados os acordos de Oslo. Para Árafate, tratava-se de "o melhor acordo possível, na pior situação possível". Deruíche entendeu que Árafate concedera demais. O coração nacional impôs-se à mentalidade nacional. (Este debate histórico ainda não está concluído hoje, embora os dois já estejam mortos.)
Desde aquela época, Deruíche viveu em Paris, Aman e Ramállah – o palestino errante, que substituiu o judeu errante.
NUNCA QUIS ser o poeta nacional. Não queria fazer poesia política; queria ser lírico, poeta do amor. Mas para qualquer lado para o qual se virasse, o longo braço do destino dos palestinenses o alcançava e o arrastava de volta.
Não tenho capacidade para avaliar seus poemas ou a grandeza artística de Deruíche. Reconhecidos especialistas em língua árabe ainda discutem furiosamente entre eles o significado de seus versos, nuances, camadas, imagens e metáforas. Foi mestre em árabe clássico, e também vivia à vontade entre poetas ocidentais e israelenses. Para muitos, Deruíche foi o maior poeta da língua árabe e dos maiores de nosso tempo.
Pela poesia, conseguiu o que não conseguira fazer por outros meios: unificar todas as fraturas e fragmentos que dividem ainda o povo palestinense – na Cisjordânia, na Faixa de Gaza, em Israel, nos campos de refugiados e em toda a Diáspora. Pertenceu a todos os palestinenses. Os refugiados identificavam-se com Deruíche porque era um deles; os cidadãos palestinenses-israelenses também, porque também era um deles; e os que vivem nos territórios palestinenses ocupados, porque foi um guerreiro incansável contra a ocupação.
ESTA SEMANA, alguns cabeças da Autoridade Palestinense tentaram explorá-lo, na luta contra o Hamás. Duvido muito que Deruíche concordasse com isto. Embora fosse palestinense absolutamente secular e muito distante do mundo religioso do Hamás, ele manifestava os sentimentos de todos os palestinenses. Também falava à alma dos membros do Hamás em Gaza.
DERUÍCHE foi o poeta da ira, da saudade, da esperança e da paz. Estas foram as cordas de seu violino.
Ira, pela injustiça cometida contra o povo palestinense e contra cada filho da Palestina, individualmente. Saudade, do "café de minha mãe", das oliveiras de sua aldeia, da terra dos antepassados. Esperança de que a guerra chegue ao fim. Apoio à paz entre israelenses e palestinenses, baseada em justiça e respeito mútuo. No documentário da francesa-israelense Simone Bitton, Deruíche apontou o burrico como símbolo do povo palestinense; o burrico é inteligente, paciente e sempre encontra meios para sobreviver.
Entendia a natureza do conflito mais claramente que a maioria dos israelenses e dos palestinenses. Dizia que aquele conflito era "uma luta entre duas memórias". A memória histórica da Palestina colide contra a memória histórica dos judeus. Só haverá paz quando um lado entender a memória do outro lado – seus mitos, suas saudades secretas, as esperanças, os medos.
Este o significado do que disse o general egípcio: a poesia manifesta os sentimentos mais profundos dos povos. E só onde se compreendam estes sentimentos pode haver verdadeira paz. A paz costurada pelos políticos não vale grande coisa, se não houver alguma paz entre os poetas e a emoção dos muitos que a poesia manifesta. Por isto Oslo foi um fracasso. Por isto também o "acordo de prateleira" que está sendo negociado será também completamente inútil: nada tem a ver com as emoções e os sentimentos de palestinenses e israelenses, os povos.
Há oito anos, o então ministro da Educação de Israel, Yossi Sarid tentou incluir dois poemas de Deruíche no currículo das escolas em Israel. Houve escândalo, e o primeiro-ministro, Ehud Barak, decidiu que "o público israelense não está preparado para isto". É o mesmo que Barak ter decidido que o público israelense não está preparado para a paz.
Talvez ainda seja verdade. A verdadeira paz entre dois povos, paz entre as crianças que nasceram na semana corrente; no dia do funeral de Deruíche, em Telavive e em Ramállah, só será viável quando os alunos árabes puderem ler os versos imortais de Chaim Nachman Bialik "O vale da morte", sobre o pogrom de Kishinev, e quando os alunos israelenses puderem ler os versos de Deruíche sobre a Naqba [a Catástrofe]. E, sim, também os poemas da ira, inclusive o verso "Vão! E levem daqui a morte de vocês!"
Sem entender e encarar com coragem a ira flamejante contra a Catástrofe e suas conseqüências, jamais entenderemos as raízes da guerra e não saberemos construir a paz. Como escreveu outro grande intelectual da Palestina, Edward Said: sem entender o impacto do Holocausto na alma dos judeus, os palestinenses nunca entenderão os israelenses.
Poetas são os generais na luta entre duas memórias, entre os mitos, entre os traumas. Precisamos muito de poetas na estrada que levará à paz entre israelenses e palestinenses, entre dois Estados, para construirmos um futuro comum.
Não estive presente às cerimônias funerais organizadas pela Autoridade Palestinense na Mukata, tão organizadas, tão encenadas. Cheguei duas horas depois, quando o corpo de Deruíche foi enterrado numa bela colina, pairando sobre o cenário.
Impressionou-me o povo, reunido sob sol escaldante à volta do túmulo, ouvindo uma gravação da voz de Deruíche declamando seus versos. Gente simples, gente menos simples, unidos com o homem morto, numa comunhão privada. Apesar de serem milhares, abriram alas para nos deixar passar; nós, israelenses, que ali estávamos para reverenciar Máhmude Deruíche.
Nos despedimos silenciosamente de um grande filho da Palestina, um grande poeta, um grande ser humano.
* URI AVNERY, 16/8/2008, "The Anger, the Longing, the Hope", em Gush Shalom [Grupo da Paz], e em:
http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1218922126/.
Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte. Copyleft.
[1] No original "present absentee" (ing.).
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