"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, novembro 13, 2006

National Geographic

A velha-guarda libanesa de Foz do Iguaçu se reúne para o tradicional café de domingo na mercearia de Abbas Assad. A comunidade sempre tem muito o que conversar: negócios, religião, família – e até terrorismo.

Zaki Moussa ainda se lembra da primeira vez em que viu as famosas cataratas do Iguaçu, em 1987. “Fiquei admirado, o maior rio do Líbano não tem 30 metros de largura”, recorda enquanto caminhamos pelas passarelas do renovado Parque Nacional do Iguaçu. Zaki aproveita o feriado para mostrar um dos principais cartões-postais do Brasil a seu irmão Saade, que faz sua primeira viagem ao país. Zaki é hoje um próspero agente de viagens, pai de três filhos nascidos ali e um dos líderes de sua comunidade – realidade muito distante da que vivia em 1987, quando a ida às cataratas foi um breve alívio na dura rotina do recém-chegado a um país sobre o qual pouco sabia. A decisão de deixar sua terra natal, o Líbano, não foi planejada. O país vivia desde 1975 uma guerra civil entre cristãos e uma coalizão muçulmana. Beirute, a “pérola do Oriente”, estava dividida em linhas religiosas. Nascido na pequena Lala, poupada pelo conflito, Zaki partiu em 1985 para a conflagrada capital disposto a estudar biologia e iniciar sua vida adulta. Mas a situação do país se deteriorou, e logo ficou claro para Zaki, então com 20 anos, que o futuro que buscava estava em outro lugar.Com essa diáspora nos anos 1980, hoje existem mais libaneses espalhados pelo mundo (cerca de 11 milhões) do que no próprio Líbano (4 milhões). Em Foz do Iguaçu, eles são maioria entre 12 mil imigrantes de origem árabe, boa parte deles vivendo no bairro de Jardim Central, onde as ruas têm nome peculiar, como Meca e Palestina.A escolha de Foz como destino é curiosa, e começa com a chegada, em 1950, do mascate libanês Ibrahim Barakat ao que então não passava de um batalhão de fronteira do Exército brasileiro. Como poucos eram os mercadores que se aventuravam tão longe do litoral, Barakat viu sua carga de tecidos e utensílios domésticos desaparecer nas mãos dos soldados e suas famílias. “Parecia uma festa, todo mundo queria comprar dele”, diverte-se Mohamad Barakat, filho do mascate. Um ano e outras rentáveis viagens depois, Barakat resolveu trazer o primogênito e abrir uma loja na frente do batalhão. Cinco anos depois, chegou a família toda. A prosperidade atraiu para a região primos e amigos tanto de Baloul, cidade natal dele, como da vizinha Lala, cidade de sua esposa, Amina, formando uma pequena colônia libanesa no povoado, então praticamente isolado do resto do país. Para sorte dos pioneiros, Foz cresceu um bocado nos anos 1960, com a construção da ponte da Amizade até Ciudad del Este (na época Puerto Stroessner), no Paraguai, e o asfaltamento da BR-277 até Curitiba. Depois, com a hidrelétrica de Itaipu, em dez anos a população local pulou de 34 mil para 136 mil – hoje são 280 mil iguaçuenses. A presença árabe se faz notar. De dia, é fácil distinguir mulheres cobertas pelo véu shaddor fazendo compras pelas ruas. À noite, os homens ocupam suas mesas nos restaurantes, tagarelando em árabe depois de passar o dia atrás do balcão de suas lojas perto da ponte de Amizade ou nas galerias de Ciudad del Este.A mais tradicional dessas mesas não se reúne à noite, mas nas manhãs de domingo, no açougue e mercearia de Abbas Assad. Entre intermináveis rodadas de chá, café não coado e manakishi (pão árabe quase torrado, coberto de ervas, gergelim e azeite de oliva), a velha-guarda da comunidade discute os últimos acontecimentos do mundo árabe. A idéia é confraternizar, e até o sectarismo religioso é deixado de lado. Sempre que pergunto a alguém se é xiita ou sunita, a resposta vem precedida de um sincero “Ah, somos todos muçulmanos”. Apesar de aclamarem a boa acolhida do povo brasileiro, a maioria dos árabes que conheci se relaciona predominantemente com outros árabes. Alguns imigrantes de primeira geração nem sequer falam bem o português e ainda acalentam o sonho de retornar à terra natal. “Nos sentimos como refugiados. Não fizemos planos de deixar nosso país e tínhamos uma única saída: imigrar”, explica-me Zaki Moussa, que se lembra de como sofreu para dominar o português. A língua é sem dúvida o maior obstáculo à integração, mas não é o único. Segundo o Islã, um muçulmano não deve consumir álcool nem carne de porco e deve comer apenas carne abatida segundo o preceito hallal (o animal é degolado com um só golpe de uma faca bem afiada e depois pendurado para que todo o sangue escorra). Como fazer, então, para confraternizar com um povo cujas atividades sociais geralmente se revolvem em torno de uma mesa farta de cerveja e cujo prato mais famoso é feijão-preto com metade de um porco boiando dentro?“Quando eu recebia brasileiros, comprava cerveja, mesmo sendo contra minha religião. Agora, na casa de brasileiros, eles não servem bebidas para não nos constranger”, conta Assem Dabaja, desde 1987 no Brasil e dono de uma das duas escolas árabes da cidade. Em sua escola, Dabaja é um espectador privilegiado das pressões e expectativas depositadas sobre os ombros da segunda geração, que logo estará tomando as rédeas da colônia.Os mais novos terão de lidar ainda com uma recente e incômoda fama. Depois dos ataques de setembro de 2001 em Nova York, a imprensa americana começou a rotular “a região da tríplice fronteira” – mais conhecida hoje pelo contrabando de mercadorias e pelas fortunas provenientes dessa economia paralela – como um paraíso de terroristas. Num artigo de 2002 para a revista Vanity Fair, o repórter Sebastian Junger descreve seu encontro com o ex-agente argentino Mario Aguilar Rizi, que passou anos investigando dois atentados contra alvos israelenses em Buenos Aires, em 1992 e 1994. Rizi conta que se deparou com campos de treinamento de militantes em fazendas próximas à fronteira com células do grupo libanês Hezbollah e da rede Al Qaeda, além de membros do grupo basco ETA e de outras facções terroristas. Junger reconhece que Rizi é uma figura polêmica, com uma série de entreveros com a lei, mas outras reportagens, com fontes distintas, chegaram a afirmar que Osama bin Laden e seu braço direito, Muhamad Khalid Sheik, estiveram na região em 1995.O assunto é espinhoso. A embaixada americana em Brasília limita-se a me dizer, de forma diplomática, que a região preocupa o governo de seu país porque “há uma enorme quantidade de dinheiro oriundo de atividades ilegais sendo enviada para o Oriente Médio”. Especula-se ainda que 400 marines venham realizando no Paraguai exercícios militares em conjunto com tropas locais. A imprensa guarani acusa o episódio como o início da implantação de uma base americana fixa na região – o que a embaixada dos EUA em Assunção nega de forma categórica. No Brasil, a assessoria de imprensa do setor de inteligência e combate ao terrorismo apenas informa que, oficialmente, não há indício da presença de células terroristas na área. Meu anfitrião Zaki Moussa me diz que a questão já causou incômodo suficiente, “sem que nunca tenham provado nada”. Ele e outros pais esperam que o problema não interfira em uma meta da comunidade: que seus filhos aprendam a viver no Brasil, mas sem perder a identidade árabe. “Não gosto quando meu filho fala que é brasileiro”, confessa Assem Dabaja. Na escola que dirige, nem todas as alunas usam o véu. O currículo normal é reforçado com aulas diárias de língua e cultura árabes. As meninas jogam futebol de salão e até disputam campeonatos com escolas não-árabes. A única disciplina deixada de fora é educação sexual. O sexo e a relação com as mulheres talvez sejam os maiores obstáculos no caminho da integração.“No Líbano não existe esse negócio de menina sair com amigos”, diz Dabaja. Mas para Mehedin Sleiman, um solteiro de 24 anos, esse é um dos grandes prazeres de ser brasileiro. Quase todas as noites ele e seus amigos, todos descendentes, saem para paquerar na noite de Foz – mesmo que, no final, terminem jogando baralho na casa de um deles. As baladas são sempre regadas, com raras abstenções, a uísque com guaraná. Numa sexta-feira aventuro-me com o grupo até a boate Disco, a mais badalada da cidade. A multidão balança ao som de música eletrônica, e quase todos parecem conhecer Mehedin. A cada cinco minutos uma garota vem cumprimentá-lo, e seus muitos amigos nunca deixam seu copo de Black Label ficar vazio. “Minha mãe até hoje fica acordada me esperando voltar”, diverte-se ele.Mehedin sempre namorou brasileiras, mas nenhuma delas até hoje pôs os pés em sua casa, “por respeito à minha irmã”. Ele não se importa com a nacionalidade da mulher com quem vier a casar, mas sabe que uma brasileira não seria a primeira escolha de sua mãe. Apesar das pressões familiares, muitos de seus amigos estão se casando com brasileiras, mas não são poucos os relacionamentos que fracassam diante da diferença de culturas. A prima de Mehedin, Najla, nunca pôde usufruir das mesmas liberdades – não porque fosse proibida, mas por não julgar apropriado. A caçula de cinco irmãos homens sempre teve liberdade para fazer o que quisesse, mas sabia também que tudo estaria sendo monitorado pela comunidade. Ela manteve essa postura até o dia em que o descendente de italianos Rodolfo Chiesa conquistou seu coração nas salas do curso de odontologia. Até ele procurar os pais dela para pedir sua mão, o namoro resumiu-se a telefonemas. Com o casamento marcado, os dois puderam enfim fazer programas juntos pela cidade. Antes de casar, no entanto, Rodolfo ainda deu um último passo em direção ao coração dos Sleiman: se converteu ao islamismo. Casados desde março, o casal parece feliz. “Estamos estudando o Alcorão”, diz ela. Diante das peculiaridades de sua história de amor, eles só não sabem ainda qual será a cultura de seus filhos – se eles gostarão de agir como brasileiros ou preservarão os arraigados costumes árabes –, num dilema que certamente marcará as futuras gerações de Foz do Iguaçu.

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