Governo faz ouvidos moucos aos especialistas”, afirma engenheiro pernambucano
Marcelo Cauás Asfora, engenheiro civil e pesquisador do Instituto Tecnológico de Pernambuco (Itep), em artigo publicado no portal G1, 8-12-2006, afirma que o governo não escuta os especialistas no que diz respeito à transposição do Rio São Francisco.
Marcelo Cauás Asfora, engenheiro civil e pesquisador do Instituto Tecnológico de Pernambuco (Itep), em artigo publicado no portal G1, 8-12-2006, afirma que o governo não escuta os especialistas no que diz respeito à transposição do Rio São Francisco.
Eis o artigo.
"O projeto de transposição das águas do Rio São Francisco para o Nordeste Setentrional (rebatizado pelo Ministério da Integração como “Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”) tem um histórico recente recheado de sofismas e ações polêmicas que alimentaram um debate acalorado, mas pouco esclarecedor.
A suspensão da licitação da obra, desde outubro de 2005, por força de uma liminar que aguarda julgamento do Supremo Tribunal Federal, pôs o tema em banho-maria. A ascensão, nas últimas eleições, do PT aos governos dos estados da Bahia e Sergipe, estados mais resistentes ao projeto, e o anúncio de um novo edital restrito à elaboração do projeto executivo da transposição, contornando a liminar existente, reascendeu o debate.
O governo federal deseja ardorosamente esta obra e a trata com prioridade e urgência absolutas. Em sua empreitada, o governo faz ouvidos moucos às advertências dos especialistas sobre os resultados duvidosos e riscos socioeconômicos e ambientais desta obra, ignora as diretrizes do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco, que ajudou a construir com dinheiro público, e confronta as decisões do Comitê da Bacia.
No Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde tem maioria dos assentos, impôs sua vontade votando o projeto em regime de urgência e ignorando o apelo de vários conselheiros por uma melhor discussão do projeto bem como a sua análise pelas Câmaras Técnicas competentes do próprio Conselho. A pressão política sobre os organismos estatais responsáveis pela avaliação da viabilidade técnica e ambiental do projeto pode ter arranhado a credibilidade destes perante a sociedade, cujos interesses deveriam defender.
A transposição das águas do São Francisco em si não é um fato novo e não se constitui na questão mais polêmica: a cidade de Aracaju, em Sergipe, bem como vários municípios da Bahia, todos situados fora da bacia do São Francisco, são abastecidos pela água do rio São Francisco há quase uma década, ou seja, recebem águas trazidas por transposições; o Plano de recursos hídricos da Bacia do São Francisco, aprovado pelo Comitê da Bacia, também prevê os usos externos à bacia das águas do São Francisco para consumo humano e dessedentação animal, desde que haja a comprovada escassez e estejam esgotadas as disponibilidades locais.
Além disto, existe ainda uma “transposição indireta” de uma grande parcela das águas do São Francisco para todos os estados do Nordeste na forma de energia elétrica. Aproximadamente 80% das águas do São Francisco estão comprometidas com a geração da energia que atende a 95% das demandas de todo o Nordeste e que, portanto, estão indisponíveis para a irrigação e demais usos consuntivos na bacia.
Embora o discurso oficial atribua a discórdia em torno do projeto unicamente ao volume de água transposto, que seria irrelevante face às vazões existentes no rio, o tema é dos mais complexos e envolve questões ambientais, técnicas, socioeconômicas e legais.
Em relação ao volume de água a ser retirado, compará-lo com as vazões existentes no rio (seja esta a vazão média ou regularizada na foz) é puro sofisma. A parcela da água que está em disputa corresponde aos 20% que restam do valor reservado para geração de energia, que segundo o Plano de Recursos Hídricos da Bacia corresponde a uma vazão de 360 m³/s. Vazão esta que, já em 2004, época em que se realizaram os estudos do Plano, encontrava-se praticamente toda outorgada (ou seja, com o seu direito de uso legalmente concedido) pelos estados da bacia e pela União. Portanto a outorga para o projeto de transposição, do ponto de vista legal, se superpõe a outras já concedidas.
Tampouco os valores outorgados para a transposição podem ser considerados inexpressivos como afirmam os defensores do projeto. Em termos de volume médio anual, a outorga para a transposição é a segunda maior dada na bacia e superada em apenas 20% pela maior outorga, concedida ao projeto Jaíba. A consideração de que os consumos efetivos estimados na bacia é bastante inferior àqueles outorgados, utilizada para justificar a outorga da transposição, é um argumento forte que impõe a necessidade de reavaliação das outorgas já concedidas.
Esta reavaliação, contudo, deveria anteceder concessão de novas outorgas e não apenas servir de pretexto para justificá-las, pois também é fato que os grandes projetos de irrigação na bacia, em sua maioria públicos, estão paralisados ou se desenvolvem lentamente por falta de recursos, contribuindo de forma determinante para a existência dessa defasagem.
A questão ambiental tem sido tratada pelo governo como uma contrapartida à concretização do projeto de transposição. No entanto, os recursos disponibilizados para as ações de revitalização do rio São Francisco são pouco convincentes, mesmo sendo superiores àqueles aplicados em governos anteriores. A retórica da revitalização integrada ao projeto de transposição passa ao largo da questão fundamental: a existência de uma política de longo prazo consistente e com recursos assegurados compatíveis com a dimensão do problema a ser confrontado. Assim como são compatíveis os recursos destinados à execução das diferentes etapas do projeto de transposição.
O custo, objetivos e viabilidade do projeto também são controversos. O valor de 4,5 bilhões de reais, orçados para o projeto, refere-se apenas à construção dos canais de transposição, os quais não produzem benefícios relevantes, pois apenas transferem a água do rio São Francisco para os grandes reservatórios da região receptora, aumentando a concentração dos recursos hídricos nesta região. Para que os benefícios declarados venham a se concretizar se fará necessária a implantação de um grande conjunto de obras, cujos custos superam em muito os da construção dos canais e para as quais não existem recursos financeiros assegurados nem cronograma estabelecido.
Os investimentos na obra, custos de operação e manutenção e a destinação da água transportada contradizem a asseveração do Governo de uma obra para fins humanitários, destinada primordialmente ao abastecimento de 12 milhões de nordestinos (contingente recentemente questionado pelo Tribunal de Contas).
A maior parcela dos custos de destina à construção e manutenção da infraestrutura necessária para assegurar a oferta de aproximadamente 70% de todo o volume de água transposto para fins de irrigação e carcinocultura na região receptora. Por serem estas atividades altamente consumidoras de água, o preço final do produto está diretamente ligado a este insumo.
O preço a ser pago pela importação de água na região de destino, decorrente do custo da energia, da manutenção e operação de toda a infraestruturas necessária à transposição, tornam essas atividades economicamente inviáveis. Para viabilizar o agronegócio nestas condições, 85% do custo da água terá de ser bancado pelo setor urbano, ou seja, os pretensos 12 milhões de beneficiários.
Na prática, estes subsídios serão arcados pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, sendo que os dois primeiros recebem parcelas significativamente menores dos volumes destinados ao agronegócio. No estado de Pernambuco, segundo estudos realizados pela Fundação Getúlio Vargas, tal estrutura de custeio trará um aumento médio de aproximadamente 10% nas contas de água de todo o estado.
A sustentabilidade do projeto é sem dúvida o seu ponto mais crítico e está fundamentada em um único elemento: um “Termo de Compromisso para a Garantia da Operação Sustentável do Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” firmado entre a União e os estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba onde estes se comprometem a arcar com os investimentos em obras complementares bem como com os custos de operação e manutenção da transposição, repassados através da tarifação da água para os usuários urbanos.
Em que pese a importância do documento, carece de comprovação a capacidade dos estados de arcarem com os pesados investimentos em obras complementares e o alto custo da água da transposição. Também seria prudente para os estados, principalmente para Pernambuco e Paraíba, verificarem se recorrer a infraestrutura da transposição, com seu custo elevado, é a melhor solução para o atendimento de suas necessidades hídricas. No caso de Pernambuco, o Plano Estadual de Recursos Hídricos prevê a construção de adutoras, a partir do São Francisco, para suprir o déficit hídrico da região do agreste.
Finalmente é importante observar que, embora acirrado e muitas vezes conflituoso, o embate em torno do projeto de transposição das águas do rio São Francisco reflete os avanços ocorridos na gestão dos recursos hídricos no país, a partir da aprovação da Lei 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.
A suspensão da licitação da obra, desde outubro de 2005, por força de uma liminar que aguarda julgamento do Supremo Tribunal Federal, pôs o tema em banho-maria. A ascensão, nas últimas eleições, do PT aos governos dos estados da Bahia e Sergipe, estados mais resistentes ao projeto, e o anúncio de um novo edital restrito à elaboração do projeto executivo da transposição, contornando a liminar existente, reascendeu o debate.
O governo federal deseja ardorosamente esta obra e a trata com prioridade e urgência absolutas. Em sua empreitada, o governo faz ouvidos moucos às advertências dos especialistas sobre os resultados duvidosos e riscos socioeconômicos e ambientais desta obra, ignora as diretrizes do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco, que ajudou a construir com dinheiro público, e confronta as decisões do Comitê da Bacia.
No Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde tem maioria dos assentos, impôs sua vontade votando o projeto em regime de urgência e ignorando o apelo de vários conselheiros por uma melhor discussão do projeto bem como a sua análise pelas Câmaras Técnicas competentes do próprio Conselho. A pressão política sobre os organismos estatais responsáveis pela avaliação da viabilidade técnica e ambiental do projeto pode ter arranhado a credibilidade destes perante a sociedade, cujos interesses deveriam defender.
A transposição das águas do São Francisco em si não é um fato novo e não se constitui na questão mais polêmica: a cidade de Aracaju, em Sergipe, bem como vários municípios da Bahia, todos situados fora da bacia do São Francisco, são abastecidos pela água do rio São Francisco há quase uma década, ou seja, recebem águas trazidas por transposições; o Plano de recursos hídricos da Bacia do São Francisco, aprovado pelo Comitê da Bacia, também prevê os usos externos à bacia das águas do São Francisco para consumo humano e dessedentação animal, desde que haja a comprovada escassez e estejam esgotadas as disponibilidades locais.
Além disto, existe ainda uma “transposição indireta” de uma grande parcela das águas do São Francisco para todos os estados do Nordeste na forma de energia elétrica. Aproximadamente 80% das águas do São Francisco estão comprometidas com a geração da energia que atende a 95% das demandas de todo o Nordeste e que, portanto, estão indisponíveis para a irrigação e demais usos consuntivos na bacia.
Embora o discurso oficial atribua a discórdia em torno do projeto unicamente ao volume de água transposto, que seria irrelevante face às vazões existentes no rio, o tema é dos mais complexos e envolve questões ambientais, técnicas, socioeconômicas e legais.
Em relação ao volume de água a ser retirado, compará-lo com as vazões existentes no rio (seja esta a vazão média ou regularizada na foz) é puro sofisma. A parcela da água que está em disputa corresponde aos 20% que restam do valor reservado para geração de energia, que segundo o Plano de Recursos Hídricos da Bacia corresponde a uma vazão de 360 m³/s. Vazão esta que, já em 2004, época em que se realizaram os estudos do Plano, encontrava-se praticamente toda outorgada (ou seja, com o seu direito de uso legalmente concedido) pelos estados da bacia e pela União. Portanto a outorga para o projeto de transposição, do ponto de vista legal, se superpõe a outras já concedidas.
Tampouco os valores outorgados para a transposição podem ser considerados inexpressivos como afirmam os defensores do projeto. Em termos de volume médio anual, a outorga para a transposição é a segunda maior dada na bacia e superada em apenas 20% pela maior outorga, concedida ao projeto Jaíba. A consideração de que os consumos efetivos estimados na bacia é bastante inferior àqueles outorgados, utilizada para justificar a outorga da transposição, é um argumento forte que impõe a necessidade de reavaliação das outorgas já concedidas.
Esta reavaliação, contudo, deveria anteceder concessão de novas outorgas e não apenas servir de pretexto para justificá-las, pois também é fato que os grandes projetos de irrigação na bacia, em sua maioria públicos, estão paralisados ou se desenvolvem lentamente por falta de recursos, contribuindo de forma determinante para a existência dessa defasagem.
A questão ambiental tem sido tratada pelo governo como uma contrapartida à concretização do projeto de transposição. No entanto, os recursos disponibilizados para as ações de revitalização do rio São Francisco são pouco convincentes, mesmo sendo superiores àqueles aplicados em governos anteriores. A retórica da revitalização integrada ao projeto de transposição passa ao largo da questão fundamental: a existência de uma política de longo prazo consistente e com recursos assegurados compatíveis com a dimensão do problema a ser confrontado. Assim como são compatíveis os recursos destinados à execução das diferentes etapas do projeto de transposição.
O custo, objetivos e viabilidade do projeto também são controversos. O valor de 4,5 bilhões de reais, orçados para o projeto, refere-se apenas à construção dos canais de transposição, os quais não produzem benefícios relevantes, pois apenas transferem a água do rio São Francisco para os grandes reservatórios da região receptora, aumentando a concentração dos recursos hídricos nesta região. Para que os benefícios declarados venham a se concretizar se fará necessária a implantação de um grande conjunto de obras, cujos custos superam em muito os da construção dos canais e para as quais não existem recursos financeiros assegurados nem cronograma estabelecido.
Os investimentos na obra, custos de operação e manutenção e a destinação da água transportada contradizem a asseveração do Governo de uma obra para fins humanitários, destinada primordialmente ao abastecimento de 12 milhões de nordestinos (contingente recentemente questionado pelo Tribunal de Contas).
A maior parcela dos custos de destina à construção e manutenção da infraestrutura necessária para assegurar a oferta de aproximadamente 70% de todo o volume de água transposto para fins de irrigação e carcinocultura na região receptora. Por serem estas atividades altamente consumidoras de água, o preço final do produto está diretamente ligado a este insumo.
O preço a ser pago pela importação de água na região de destino, decorrente do custo da energia, da manutenção e operação de toda a infraestruturas necessária à transposição, tornam essas atividades economicamente inviáveis. Para viabilizar o agronegócio nestas condições, 85% do custo da água terá de ser bancado pelo setor urbano, ou seja, os pretensos 12 milhões de beneficiários.
Na prática, estes subsídios serão arcados pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, sendo que os dois primeiros recebem parcelas significativamente menores dos volumes destinados ao agronegócio. No estado de Pernambuco, segundo estudos realizados pela Fundação Getúlio Vargas, tal estrutura de custeio trará um aumento médio de aproximadamente 10% nas contas de água de todo o estado.
A sustentabilidade do projeto é sem dúvida o seu ponto mais crítico e está fundamentada em um único elemento: um “Termo de Compromisso para a Garantia da Operação Sustentável do Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” firmado entre a União e os estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba onde estes se comprometem a arcar com os investimentos em obras complementares bem como com os custos de operação e manutenção da transposição, repassados através da tarifação da água para os usuários urbanos.
Em que pese a importância do documento, carece de comprovação a capacidade dos estados de arcarem com os pesados investimentos em obras complementares e o alto custo da água da transposição. Também seria prudente para os estados, principalmente para Pernambuco e Paraíba, verificarem se recorrer a infraestrutura da transposição, com seu custo elevado, é a melhor solução para o atendimento de suas necessidades hídricas. No caso de Pernambuco, o Plano Estadual de Recursos Hídricos prevê a construção de adutoras, a partir do São Francisco, para suprir o déficit hídrico da região do agreste.
Finalmente é importante observar que, embora acirrado e muitas vezes conflituoso, o embate em torno do projeto de transposição das águas do rio São Francisco reflete os avanços ocorridos na gestão dos recursos hídricos no país, a partir da aprovação da Lei 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário