"Parece que uma diminuição do nível de emprego no mundo não-asiático e uma convergência geral dos salários globais em direção a um nível inferior, puxado pela Ásia, é uma das alternativas concretas de médio prazo. Isso significaria redução geral de renda, pressão contínua para rebaixamento de proteção social e mais uma forte diluição das classes médias tradicionais; e, como conseqüência, resistências cada vez maiores à imigração nos países mais ricos, ou seja, menos oportunidades para latino-americanos, cidadãos do Leste Europeu, africanos, etc", escreve Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, é autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso (Editora Unesp) em artigo publicado, hoje, 16-12-2006, no jornal O Estado de S. Paulo.
Eis o artigo.
"Uma das certezas que movem a lógica global é a de que a China e a Índia manterão as trajetórias atuais de estabilidade política e altas taxas de crescimento econômico. As projeções de longo prazo supõem uma contínua melhora de renda dos 2,4 bilhões de chineses e indianos - que constituem 25% da população mundial -, mantendo o vigor do capitalismo globalizado.
É curioso como não aprendemos com a História e com nossos inúmeros erros de previsão; a arrogância não nos deixa perceber que é preciso suportar um futuro freqüentemente além da nossa percepção, tantas são as variáveis que nele influem. Lidamos com o tempo que virá de forma pouco responsável. Na verdade, não agüentamos não saber. E, por isso, transformamos meras hipóteses em certezas, deixando na beira da estrada justamente as dúvidas que nos poderiam salvar. Basta verificar que boa parte das projeções de mais de dez anos, feitas durante o século 20, foram equivocadas. Crises imprevistas são inerentes ao capitalismo, que delas se nutre, renovando-se em meio a cinzas e sucatas; Schumpeter incluiu-as na necessária “destruição criativa”.
Se analisarmos com um mínimo de profundidade o complexo quadro atual, não é difícil enxergar graves impasses estruturais que o mundo pode ter de enfrentar ainda na próxima década. Alguns são decorrentes justamente do padrão de inserção da China e da Índia numa lógica global que se aproveita deles para um casamento de interesses, à primeira vista, virtuoso. Suponhamos, em primeiro lugar, que essas duas nações apenas pretendam atingir, em dez anos, um padrão de vida equivalente à média atual do Brasil e do México, que ainda são pobres. Na verdade, a maioria dos analistas internacionais espera muito mais que isso. Vamos tentar indicar - de maneira simplificada - que impactos isso poderia causar. Utilizemos para medir “padrão de vida” a Paridade de Poder de Compra (PPP em inglês), um índice internacional que expressa o padrão de consumo dos cidadãos em diferentes países, já balanceado pelas diferenças nos preços relativos.
A renda anual média de cada brasileiro, medida pelo Banco Mundial (2005) em PPP, é de US$ 8.195 e a do mexicano, de US$ 9.803. Ou seja, a média dos dois é de US$ 8.999. Pelos mesmos critérios, a China tem hoje US$ 5.896 por habitante/ano e a Índia, US$ 3.139, o que dá uma média de US$ 4.518. Para que esse valor atinja o de Brasil e o México em dez anos será necessário adicionar US$ 4.518 a cada cidadão chinês e indiano; se multiplicarmos esse valor pelos seus 2.375 milhões de habitantes, teremos um total de US$ 10.647 bilhões. Este é o montante de produto (ou renda, ou consumo) que a economia global terá de gerar a partir de China e Índia para que eles atinjam apenas o nível médio de vida de Brasil e México. Ora, esse imenso valor, a ser criado em apenas uma década, seria próximo do PIB norte-americano (US$ 11.641 bilhões), que responde hoje por 28% do total mundial.
Imagine-se o impacto brutal que isso significaria em recursos naturais, matérias-primas, poluição ambiental e efeito estufa em nível planetário. E não se trata de um falso dilema malthusiano, pois a tecnologia hoje disponível para esse período não dará conta de um desafio desse tamanho sem profundos impactos negativos ambientais e sociais. O que nos obriga a incluir, entre os cenários possíveis, alguns outros bem mais pessimistas. Um deles poderá eclodir através de tensões sociais e políticas na China, que conduzam a distúrbios e rupturas; cenário, aliás, muito possível para um país gigantesco em tamanho e desafios, dirigido hoje por uma junta de engenheiros com a imensa tarefa de implantar um capitalismo de oportunidades e desigualdades goela abaixo do 1,2 bilhão de chineses. Milhões deles pela primeira vez estão encontrando prosperidade, mas outros milhões mergulham numa miséria que não conheciam nem nos duros tempos de Mao.
Outro eventual impasse estrutural é a tendência declinante de salários mundiais a partir da pressão por competitividade global. Ela é igualmente provocada pela China e pela Índia; mas agora também pelo Vietnã e por outros muito pobres da Ásia que pegam carona nesse modelo. O custo médio salarial de uma faixa padrão de trabalhador qualificado na União Européia é de US$ 25 por hora, nos EUA é de US$ 20, no Leste da Europa e no Brasil é de US$ 4; mas na China é de US$ 0,7. Diante dessa assimetria brutal, o México já perdeu para os chineses quase metade dos empregos de suas maquiadoras que, a duras penas, havia conquistado com os EUA; a Europa tem dificuldades em utilizar os “baixos” salários dos países do Leste; e a América Latina fica fora das oportunidades que a fragmentação da produção global gera, porque não consegue competir com os salários de fome da Ásia.
Pelo visto, parece que uma diminuição do nível de emprego no mundo não-asiático e uma convergência geral dos salários globais em direção a um nível inferior, puxado pela Ásia, é uma das alternativas concretas de médio prazo. Isso significaria redução geral de renda, pressão contínua para rebaixamento de proteção social e mais uma forte diluição das classes médias tradicionais; e, como conseqüência, resistências cada vez maiores à imigração nos países mais ricos, ou seja, menos oportunidades para latino-americanos, cidadãos do Leste Europeu, africanos, etc.
De que forma o capitalismo daria conta desses desafios? Como vemos, para além da euforia com o crescimento do mundo puxado pela China e pela Índia, nuvens carregadas também tingem o céu do futuro. O pretensioso mundo global quer viver de certezas. No entanto, Norberto Bobbio, depois de uma longa e sábia vida, disse só ter aprendido que a História é sempre imprevisível.
É bom estarmos preparados para surpresas."
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