por Luiz Carlos Azenha
Recentemente o Viomundo republicou um artigo de Otávio Frias Filho sobre a política externa brasileira. O estilo é elegante, como sempre, embora eu discorde do conteúdo. O publisher da Folha argumenta que a política externa é algo muito sério para ficar nas mãos de diplomatas ou ideólogos. Talvez devesse acrescentar os jornalistas nessa lista. Especialmente aqueles cuja curiosidade intelectual parece anestesiada ou subordinada a projetos eleitorais.
Há algumas semanas fui ao Rio de Janeiro entrevistar o historiador Alberto da Costa e Silva. Ele fez observações sobre a inserção da África no comércio internacional antes das grandes viagens de “descobrimento” dos europeus. Usei as aspas pelo fato de que, na verdade, foram os asiáticos que primeiro navegaram o oceano Índico em direção à África para fazer comércio, dominado então pelos mercadores árabes. Isso explica porque objetos chineses foram encontrados por arqueólogos em escavações feitas na costa africana do Índico, por exemplo.
Só muito mais tarde, a partir dos primórdios da revolução industrial, os europeus gradativamente assumiram o controle do comércio e colonizaram as Américas, a Ásia e a África, para levar os três C’s: Comércio, Civilização e Cristianismo.
Podemos dizer, sem medo de errar, que o processo de descolonização ainda está em andamento e que será acelerado pela decadência relativa da Europa e dos Estados Unidos em relação a países ou grupos de países emergentes: China, Índia e Brasil, mas também Coréia do Sul, Indonésia e Irã. E as relações que estes países desenvolverão entre si, sem pedir licença a Washington, Londres ou Paris.
A política externa num mundo multipolar é muito mais complexa do que era no período da guerra fria, quando nossas escolhas ficavam limitadas a integrar o espaço geopolítico dos Estados Unidos ou da União Soviética. Diz-se que era a armadilha da “competição” entre Coca-Cola e Pepsi, quando muitos talvez tivessem feito outra escolha, se pudessem fazê-lo. Houve um ensaio, no movimento dos países não-alinhados, sem efeitos práticos consideráveis.
Mas o fim da guerra fria e a ascensão econômica da China promoveram a revolução mundial em andamento: os eixos de poder estão em deslocamento acelerado. Nos Estados Unidos se fala do século 21 como mais um século americano (estadunidense), mas não há como negar que este será o século da Ásia, pelo poder combinado de grandes populações consumidoras, educadas e dotadas de alta tecnologia.
É só juntar a China, a Índia, o Japão, a Indonésia, a Coréia do Sul, a Malásia, as Filipinas, o Vietnã , boa parte da Rússia e o Irã para vocês terem uma ideia do que estou falando.
O que me leva de volta àquela conversa com o historiador Alberto da Costa e Silva, que observou que a África estava voltando lentamente a ser o que foi antes dos grandes descobrimentos dos europeus: um espaço periférico do comércio asiático.
Tenho visto isso em minhas viagens à África. É um fenômeno que em breve abordaremos na revista Nova África: a penetração chinesa. Os três Cs da China na África são: Chineses, Comércio e Construção. Beijing incentiva a imigração de chineses para o continente, em busca de oportunidades de negócio. Eles já dominam o comércio em vários países, inclusive onde me encontro, Cabo Verde.
Trazem consigo mercadorias baratas. Existe algum ressentimento contra a presença dos chineses, mas muito menos do que quer fazer crer a mídia ocidental. A população local, pelo menos nesse primeiro momento, reconhece que entrou no mundo do consumo pelas mãos dos chineses. Outro dia chequei o preço de um DVD em uma loja chinesa: o equivalente a 100 reais. Famílias inteiras que antes não podiam calçar os filhos ou comprar material escolar para mandá-los à escola agora podem fazê-lo.
Além disso, em países onde os europeus só deixaram a infraestrutura básica necessária à exploração dos recursos locais, os chineses fazem obras fundamentais para o desenvolvimento. Aqui em Cabo Verde, um país árido, fizeram a primeira grande represa para capturar a água de chuva que corria para o oceano, o que poderá ter consequências notáveis para a produtividade agrícola. Tudo feito em tempo recorde, com mão-de-obra chinesa, por construtoras chinesas e financiamento chinês.
Neocolonialismo? É um debate interessante, com os chineses argumentando em sua defesa que não interferem na política local, não promovem ocupação territorial, nem cultural.
Também noto, em minhas viagens, o surgimento de fontes de informação que já não refletem mimeticamente as ideias de Washington, Londres ou Paris. A rede árabe Al Jazeera tem uma audiência notável, especialmente no norte da África. O jornal Asia Times Online, do qual frequentemente reproduzo artigos traduzidos pela Caia Fittipaldi, tem iluminado de forma notável o intrincado jogo diplomático e econômico nas relações entre China, Índia, Irã e Rússia. É parte do que eu definiria como “descolonização mental”.
Em seu artigo sobre a política externa brasileira, o publisher da Folha argumenta que o Brasil não deve “caçar” confrontos gratuitos com os Estados Unidos. Que eles virão naturalmente. Ele pode ter razão, não sei. Mas acho que a questão é muito mais complexa e que não deve ser tratada a partir da perspectiva de nossas relações com Washington. Trata-se de discutir qual é a inserção do Brasil em um mundo multipolar, no qual o eixo do poder se desloca para Ásia.
É nesse contexto que cabe avaliar as relações bilaterais do Brasil com países como a Rússia, a China, a Índia e o Irã.
Em minha modesta opinião, devemos buscar uma política multifacetada, que explore os consensos e mesmo as dissensões entre os diferentes protagonistas, mirando sempre no interesse econômico nacional e tirando proveito do papel sui generis do Brasil como uma potência diplomática, não militar. Não acho prudente subordinar a política externa brasileira, aqui ou ali, aos interesses de Washington ou Beijing, mesmo que no curto prazo isso represente ganhos econômicos.
Não sou especialista, apenas um curioso, mas me parece que chegou a hora de descolonizar nossas relações externas. O que começa pela descolonização mental.
Apenas como complemento a esse excelente artigo do Azenha. A China durante os séculos XIII e XV dominou a navegação internacional, e se hoje a América fala línguas europeias ao invés de chinês, é simplesmente pelo fato de que a Dinastia Qing que assumiu o governo se voltou para o espaço interno (que estava com diversos problemas) e mandou queimar toda a esquadra oficial chinesa.
Veja as rotas e detalhes histórico sobre a esquadra do eunuco Zhou Di (1421) um dos grandes navegadores chinês. Acesse o link:
http://oglobo.globo.com/servicos/pop_infografico.asp?p=/mundo/info/china/default.swf&l=730&a=564
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