O outro assalto das ruas. A apropriação privada do espaço público. Entrevista com José Guilherme Cantor Magnani
“Vivem em lugares protegidos e querem impor, pela prepotência e pela força, uma lógica privada no espaço que é público”. A afirmação é de José Guilherme Cantor Magnani, professor do departamento de Ciências Sociais da USP, procurando explicar a agressão a doméstica Sirlei Dias de Carvalho.
Como antropólogo e há décadas estudando a dinâmica das cidades, evita generalizações ao máximo, mas insiste que a construção do urbano ainda é uma experiência fascinante de ser vivida e compartilhada. Autor de vários títulos, prepara-se para lançar pela editora Terceiro Nome o livro Jovens na Metrópole. Contém dez estudos etnográficos feitos entre rappers, skatistas, adeptos do hip-hop, pichadores e outras denominações juvenis.
A entrevista foi concedida a Laura Greenhalgh no jornal O Estado de S. Paulo, 01-07-3007.
Eis a entrevista.
Diante das manifestações de violência mais comentadas na semana, pergunto: a vida humana vem perdendo valor na metrópole?
Não sou especialista em violência. Mas, vendo uma mulher sozinha num ponto de ônibus, de madrugada, apanhar de cinco rapazes desconhecidos, ou ao ser informado da morte de um casal num farol de São Paulo, ou ainda me deparando com duas dezenas de mortes, fruto da ação policial num morro carioca, é muito tentador cair nas generalizações. No entanto, seria simplificar tratar questões tão diversas utilizando a mesma chave da violência. O que se pode fazer é uma reflexão em torno da “rua” como elemento que estrutura o espaço público.
Como assim?
Meus alunos e eu trabalhamos com a cidade na escala da metrópole. Ou seja, a metrópole é portadora de uma dinâmica tal que não pode ser explicada como totalidade. Nem em São Paulo, nem no Rio, nem em qualquer outra grande cidade brasileira, podemos olhar os jovens apenas como uma faixa etária, porque eles são diferentes, fazem escolhas diferentes, criam pontos de encontros particulares nos quais se reconhecem, compartilhando estilos e valores. Não estão confinados, ao contrário, percorrem a cidade em deslocamentos constantes e percursos próprios. Onde é que a rua entra nisso? Ela representa a possibilidade do encontro entre os diferentes. Nela, o indivíduo não tem informação sobre as origens e a história do “outro”, mas existe uma norma estabelecida para o reconhecimento mútuo.
Essa é a idéia de rua como espaço de negociação?
É isso. Muita gente só vive a experiência da rua física, a rua como espaço de rolagem, de passagem de pedestres e automóveis. Por outro lado, há quem faça do shopping center a sua rua. Na estação Conceição do metrô de São Paulo, meus alunos pesquisaram um fenômeno interessantíssimo: jovens descendentes de japoneses fazem street dance, dividindo espaço com jovens negros de periferia, que dançam break. Ali se encontram, se olham, se estranham e trocam experiências. Na Barra Funda, um bairro paulistano de classe média baixa, verificamos o jeito que as crianças dos cortiços inventaram para ir, em relativa segurança, rumo a um decaído centro desportivo da região, onde fazem atividades: elas vão em bando, com uma educadora, cantando alto e chamando a atenção das pessoas, porque perceberam que assim a travessia é mais segura. Elas negociaram com a metrópole.
Que tipo de experimentação da rua faz um grupo de rapazes de bom nível sócioeconômico, que costuma perseguir prostitutas?
Isso é o que eu chamo de apropriação privada do espaço público. Esses rapazes impõem pela força seus valores. São os donos da rua. Não querem compartilhar o espaço, que é público, com prostitutas ou mendigos. Demonstram um perfil complicado, de quem não admite o diferente, seja pela atividade que este exerça, pela raça, pela orientação sexual, assim por diante. Ferem uma característica essencial da rua como espaço de troca. Porque isso é viver em metrópole. Não se pode admitir que grupo algum impeça, ainda mais pela violência, as pessoas de utilizar o espaço público.
Esse tipo de comportamento reflete uma visão de classe?
Certamente. Mas o que estou ressaltando é a perspectiva individualista que nega ao outro o direito à cidade. Estes rapazes se valem de uma lógica particular, individualizada, que tem a ver com o meio em que foram criados. Só que a casa é um espaço privado, protegido por lei, enquanto a rua é de todos. Por isso trabalho muito com a noção de “pedaço”, algo intermediário entre a “casa” e a “rua”. Pedaço é a apropriação social do espaço. “Aqui é o meu pedaço”, você diz para justificar este sentir-se em casa sem excluir ninguém. Fizemos um trabalho de campo nas Grandes Galerias, ao lado do Teatro Municipal, no centro de São Paulo. Ali você encontra material para grafiteiro, skatista, profissionais que fazem trancinhas para visual black, há gente que vai só para comprar disco, enfim, cada nicho do edifício é um “pedaço” no qual os jovens provam essa sensação de pertencimento. Na periferia, esse processo existe e está associado à vizinhança.
Seria uma confluência de tribos urbanas?
Não gosto de utilizar o conceito de “tribo” quando analiso as metrópoles, porque trata-se de uma metáfora equivocada. Na etnologia indígena, tribo é a representação de uma grande aliança, ao passo que nos estudos de metrópole, o conceito tem sido usado de modo restritivo. Tribo vira algo menor, sinônimo de grupo fragmentado, com freqüência relacionado à violência. Sempre é melhor falar em circuitos de jovens - e como é interessante analisar os mapas de sua movimentação! Mas, veja o que acontece nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo: jovens bem nutridos, bem educados e com alto padrão de vida também formam grupos autoritários, muitas vezes com repercussões dramáticas. Basta lembrar as chacinas em escolas. De tão fechados, viram fundamentalistas Até o momento não podemos compará-los a um grupo de hip-hop de uma grande cidade do Brasil, que é bem mais flexível. Agora, que existe radicalismo na metrópole, não há como negar. É o preço que se paga de viver em um ambiente de alta diversidade.
Existe uma tendência geral de privatização do espaço público?
Não sei se é tendência. O pichador se apropria do espaço público? Depende. Um aluno meu já estudou esse fenômeno e diz que “pichador nem a mãe gosta”. Claro, quem vai gostar de alguém que se diverte riscando parede? Mas não me parece que o pichador queira apropriar-se do espaço público, mas deixar uma marca nele. Uma inscrição que nem sempre entendemos, significando algo como “estive aqui”.
Não é uma análise complacente demais?
Tenho de levar em conta todos os atores envolvidos. Se quero entender a lógica do grafiteiro, terei de entender a lógica do proprietário do imóvel. Considero tudo, o sentimento do dono do muro, a atuação do poder público, o pichador, as instituições envolvidas etc. O olhar etnográfico procura identificar todos os atores. Sem tomar partido. E acabamos por demonstrar que as coisas são um pouco mais complexas do que as aparências indicam.
Voltando ao caso da Sirlei. O que se pode dizer de uma metrópole onde uns querem deixar sua marca e outros são marcados?
Esta moça é a parte frágil da relação. Sendo elemento mais fraco, deveria contar com maior amparo do poder público. Ela deve ter o direito de esperar pelo transporte público, sozinha, independente de que hora for, num local melhor equipado e policiado. Uma vez que a agressão já aconteceu, deve ter ampla possibilidade de defesa, porque os rapazes, até pelo poder econômico dos pais, terão condições de contratar bons advogados. Quer dizer, Sirlei poderá continuar sozinha nessa história e seus agressores, bem amparados. Esta é a diferença. Então, o que se espera do poder público? Que seja capaz de, em situações assimétricas, criar o equilíbrio. Numa sociedade democrática, o mais fraco tem de ser o mais amparado.
Em cidades como São Paulo, Rio ou Brasília, o jovem da classe média ou alta circula numa seqüência de espaços protegidos: a casa, a escola, o clube, o shopping center, o carro com vidros escuros, o saguão com câmeras, e assim por diante. Mas, ao sair pela madrugada e encontrar a cidade “nua”, parece bater uma vontade de assaltar o espaço público. Como se explica isso?
Para impor sua lógica, repito. Não há outra explicação. Só que o freqüentador do oásis de segurança perde de vista que a rua é pública, já tão acostumado que está a interagir com os iguais. A “geração shopping center” circula de espaço protegido em espaço protegido de tal forma que não sabe como se comportar no espaço público. Não tem nem postura corporal para isso. É uma geração sem cultura urbana. Ora, se você é uma estudante universitária, bem informada, mas não aceita a vida de uma prostituta, ao menos a respeite e comporte-se no espaço público. É o mínimo. O que justifica queimar uma pessoa que dorme num banco de praça, como fizeram com um índio em Brasília? A rigor, é mais coerente pensar que nós deveríamos nos sentir mais protegidos no espaço público, que, afinal, é de todos. E não o contrário.
O senhor aplicaria esta afirmação às favelas do Complexo do Alemão, no Rio, onde se trava uma guerra urbana há 50 dias?
Nos morros, os traficantes também constituíram seus “oásis” protegidos, na medida em que circulam por espaços nos quais o poder público não entra ou não se faz presente. São donos absolutos do pedaço.
Ações de vandalismo, violência e apropriação indevida da cidade são muitas vezes praticadas no chamado “tempo livre” de jovens. É impressão ou o lazer, nas metrópoles, virou vizinho da delinqüência?
Creio que não. Tenho estudado há um bom tempo o lazer, seja na periferia, seja no centro, com jovens ou não. Como a gente sabe, o tempo livre tende a continuar aumentando na sociedade contemporânea, deslocado que está da noção de trabalho. Até um tempo atrás, ele era a antítese de trabalho. Não é mais. Tornou-se um fim em si mesmo. Daí tanta gente cultivando a forma física, buscando suportes para a alma, viajando e estabelecendo novos vínculos. Não vivemos mais aquele tempo ditado por uma regra básica da produção industrial, segundo a qual o indivíduo tem direito ao descanso justamente para repor energias físicas e psíquicas, antes de voltar a ser consumido como força de trabalho. Hoje, com a terceirização, a possibilidade de trabalhar à distância e as ocupações temporárias, o tempo livre aumenta. Devemos encará-lo como espaço para o desenvolvimento de novas sociabilidades, e isso, numa cidade como São Paulo, é uma experiência fascinante. Na verdade, o fato de a metrópole funcionar como funciona, com suas possibilidades e deficiências, é maravilhoso. É o grande milagre. O que destoa é a investida autoritária de um e outro grupo.
As pessoas criam seus arranjos, a metrópole funciona, mas a violência faz surtir o efeito de má exemplaridade. Tanto que ela se reproduz no cotidiano, das mais diferentes formas, em qualquer hora do dia, em qualquer ponto da cidade.
Precisamos sair da análise do espaço público para avaliar as instituições do poder público. Onde estão? Como agem? Falo não só das instituições voltadas para a segurança, mas as da educação, saúde, e tantas outras. Episódios de violência seriam exemplares, sim, se houvesse respostas firmes e rápidas contra eles. Isso não existe. Além disso, há outro problema grave. Estamos vendo um sem-número de mazelas das classes dirigentes, que nos passa essa terrível sensação de impunidade permeando a sociedade. Isso tem reflexos na vida da metrópole. Se para “eles” tudo é possível, por que eu tenho de pagar impostos e cumprir minhas obrigações como cidadão? Quando um policial é pego num episódio de corrupção, justo ele que deveria contê-la, causa uma tremenda confusão lógica na cabeça do cidadão: ele não só se sente desamparado, como à mercê de um ator social do qual não conhece a verdadeira face.
Esta é uma pergunta que muitos pais se fazem: mais tempo livre, mais tempo para transgredir?
Não penso assim. Se tenho tempo livre, posso ler um livro, não preciso sair por aí barbarizando. A deliquência não é alternativa. Ela é resultado de uma complexa gama de fatores. E, aproveitar o tempo livre não é privilégio de quem tem dinheiro. Na periferia, há propostas de lazer muito interessantes e até baratas. Como o skatismo.
A ação da polícia no Rio, na semana que passou, além do saldo de mortos, mostra como o cidadão está vulnerável. Mata-se primeiro, depois verifica-se se é traficante ou não. Parece que todo mundo é criminoso, todo mundo mente, todo mundo tem droga.
É a lógica de metonímia, tomar a parte pelo todo. Há um grupo protegido, que são os traficantes, e o ônus de suas conexões criminosas é distribuído para a população local, gente que trabalha, que obedece normas.
E qual é a visão que se tem de poder público nas periferias?
É reconhecido como poder de repressão, mais do que como poder de mediação. O Estado se faz presente nesses lugares na figura do policial, que surge lá como a última instância do poder público, quando tudo mais falha. Quando um policial dá carona a uma gestante que está para dar à luz, vira herói, sai no noticiário, é algo fora de série. Porque é a derradeira face do poder público naquele lugar! Na verdade, não se deveria poupar investimento na sua formação. Melhorar nossas forças policiais não significa obrigatoriamente comprar mais armas e viaturas. Significa dar qualificação, informação, salário melhor, condição de trabalho. Como é importante um policial aprender o que é diversidade, saber como deve lidar com a mulher, a criança, o pobre, o negro, o homossexual, o idoso, ter, enfim, uma idéia de polidez.
O senhor propôs aos seus alunos na USP fazer a etnografia da ocupação da reitoria. Quais são as primeiras conclusões?
Cedo para dizer, ainda estamos trabalhando sobre os dados. Propus aos calouros das Ciências Sociais, que mal chegavam à universidade e caíram nessa confusão, que fizessem um trabalho levando em conta o lugar da ocupação, os personagens e a mudança de regras. No começo, foram vistos com certa desconfiança pelo comando da greve. Mas, convenceram. Não sei o que virá. E nem quero influenciar os resultados. Antropologia é isso.
Como antropólogo e há décadas estudando a dinâmica das cidades, evita generalizações ao máximo, mas insiste que a construção do urbano ainda é uma experiência fascinante de ser vivida e compartilhada. Autor de vários títulos, prepara-se para lançar pela editora Terceiro Nome o livro Jovens na Metrópole. Contém dez estudos etnográficos feitos entre rappers, skatistas, adeptos do hip-hop, pichadores e outras denominações juvenis.
A entrevista foi concedida a Laura Greenhalgh no jornal O Estado de S. Paulo, 01-07-3007.
Eis a entrevista.
Diante das manifestações de violência mais comentadas na semana, pergunto: a vida humana vem perdendo valor na metrópole?
Não sou especialista em violência. Mas, vendo uma mulher sozinha num ponto de ônibus, de madrugada, apanhar de cinco rapazes desconhecidos, ou ao ser informado da morte de um casal num farol de São Paulo, ou ainda me deparando com duas dezenas de mortes, fruto da ação policial num morro carioca, é muito tentador cair nas generalizações. No entanto, seria simplificar tratar questões tão diversas utilizando a mesma chave da violência. O que se pode fazer é uma reflexão em torno da “rua” como elemento que estrutura o espaço público.
Como assim?
Meus alunos e eu trabalhamos com a cidade na escala da metrópole. Ou seja, a metrópole é portadora de uma dinâmica tal que não pode ser explicada como totalidade. Nem em São Paulo, nem no Rio, nem em qualquer outra grande cidade brasileira, podemos olhar os jovens apenas como uma faixa etária, porque eles são diferentes, fazem escolhas diferentes, criam pontos de encontros particulares nos quais se reconhecem, compartilhando estilos e valores. Não estão confinados, ao contrário, percorrem a cidade em deslocamentos constantes e percursos próprios. Onde é que a rua entra nisso? Ela representa a possibilidade do encontro entre os diferentes. Nela, o indivíduo não tem informação sobre as origens e a história do “outro”, mas existe uma norma estabelecida para o reconhecimento mútuo.
Essa é a idéia de rua como espaço de negociação?
É isso. Muita gente só vive a experiência da rua física, a rua como espaço de rolagem, de passagem de pedestres e automóveis. Por outro lado, há quem faça do shopping center a sua rua. Na estação Conceição do metrô de São Paulo, meus alunos pesquisaram um fenômeno interessantíssimo: jovens descendentes de japoneses fazem street dance, dividindo espaço com jovens negros de periferia, que dançam break. Ali se encontram, se olham, se estranham e trocam experiências. Na Barra Funda, um bairro paulistano de classe média baixa, verificamos o jeito que as crianças dos cortiços inventaram para ir, em relativa segurança, rumo a um decaído centro desportivo da região, onde fazem atividades: elas vão em bando, com uma educadora, cantando alto e chamando a atenção das pessoas, porque perceberam que assim a travessia é mais segura. Elas negociaram com a metrópole.
Que tipo de experimentação da rua faz um grupo de rapazes de bom nível sócioeconômico, que costuma perseguir prostitutas?
Isso é o que eu chamo de apropriação privada do espaço público. Esses rapazes impõem pela força seus valores. São os donos da rua. Não querem compartilhar o espaço, que é público, com prostitutas ou mendigos. Demonstram um perfil complicado, de quem não admite o diferente, seja pela atividade que este exerça, pela raça, pela orientação sexual, assim por diante. Ferem uma característica essencial da rua como espaço de troca. Porque isso é viver em metrópole. Não se pode admitir que grupo algum impeça, ainda mais pela violência, as pessoas de utilizar o espaço público.
Esse tipo de comportamento reflete uma visão de classe?
Certamente. Mas o que estou ressaltando é a perspectiva individualista que nega ao outro o direito à cidade. Estes rapazes se valem de uma lógica particular, individualizada, que tem a ver com o meio em que foram criados. Só que a casa é um espaço privado, protegido por lei, enquanto a rua é de todos. Por isso trabalho muito com a noção de “pedaço”, algo intermediário entre a “casa” e a “rua”. Pedaço é a apropriação social do espaço. “Aqui é o meu pedaço”, você diz para justificar este sentir-se em casa sem excluir ninguém. Fizemos um trabalho de campo nas Grandes Galerias, ao lado do Teatro Municipal, no centro de São Paulo. Ali você encontra material para grafiteiro, skatista, profissionais que fazem trancinhas para visual black, há gente que vai só para comprar disco, enfim, cada nicho do edifício é um “pedaço” no qual os jovens provam essa sensação de pertencimento. Na periferia, esse processo existe e está associado à vizinhança.
Seria uma confluência de tribos urbanas?
Não gosto de utilizar o conceito de “tribo” quando analiso as metrópoles, porque trata-se de uma metáfora equivocada. Na etnologia indígena, tribo é a representação de uma grande aliança, ao passo que nos estudos de metrópole, o conceito tem sido usado de modo restritivo. Tribo vira algo menor, sinônimo de grupo fragmentado, com freqüência relacionado à violência. Sempre é melhor falar em circuitos de jovens - e como é interessante analisar os mapas de sua movimentação! Mas, veja o que acontece nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo: jovens bem nutridos, bem educados e com alto padrão de vida também formam grupos autoritários, muitas vezes com repercussões dramáticas. Basta lembrar as chacinas em escolas. De tão fechados, viram fundamentalistas Até o momento não podemos compará-los a um grupo de hip-hop de uma grande cidade do Brasil, que é bem mais flexível. Agora, que existe radicalismo na metrópole, não há como negar. É o preço que se paga de viver em um ambiente de alta diversidade.
Existe uma tendência geral de privatização do espaço público?
Não sei se é tendência. O pichador se apropria do espaço público? Depende. Um aluno meu já estudou esse fenômeno e diz que “pichador nem a mãe gosta”. Claro, quem vai gostar de alguém que se diverte riscando parede? Mas não me parece que o pichador queira apropriar-se do espaço público, mas deixar uma marca nele. Uma inscrição que nem sempre entendemos, significando algo como “estive aqui”.
Não é uma análise complacente demais?
Tenho de levar em conta todos os atores envolvidos. Se quero entender a lógica do grafiteiro, terei de entender a lógica do proprietário do imóvel. Considero tudo, o sentimento do dono do muro, a atuação do poder público, o pichador, as instituições envolvidas etc. O olhar etnográfico procura identificar todos os atores. Sem tomar partido. E acabamos por demonstrar que as coisas são um pouco mais complexas do que as aparências indicam.
Voltando ao caso da Sirlei. O que se pode dizer de uma metrópole onde uns querem deixar sua marca e outros são marcados?
Esta moça é a parte frágil da relação. Sendo elemento mais fraco, deveria contar com maior amparo do poder público. Ela deve ter o direito de esperar pelo transporte público, sozinha, independente de que hora for, num local melhor equipado e policiado. Uma vez que a agressão já aconteceu, deve ter ampla possibilidade de defesa, porque os rapazes, até pelo poder econômico dos pais, terão condições de contratar bons advogados. Quer dizer, Sirlei poderá continuar sozinha nessa história e seus agressores, bem amparados. Esta é a diferença. Então, o que se espera do poder público? Que seja capaz de, em situações assimétricas, criar o equilíbrio. Numa sociedade democrática, o mais fraco tem de ser o mais amparado.
Em cidades como São Paulo, Rio ou Brasília, o jovem da classe média ou alta circula numa seqüência de espaços protegidos: a casa, a escola, o clube, o shopping center, o carro com vidros escuros, o saguão com câmeras, e assim por diante. Mas, ao sair pela madrugada e encontrar a cidade “nua”, parece bater uma vontade de assaltar o espaço público. Como se explica isso?
Para impor sua lógica, repito. Não há outra explicação. Só que o freqüentador do oásis de segurança perde de vista que a rua é pública, já tão acostumado que está a interagir com os iguais. A “geração shopping center” circula de espaço protegido em espaço protegido de tal forma que não sabe como se comportar no espaço público. Não tem nem postura corporal para isso. É uma geração sem cultura urbana. Ora, se você é uma estudante universitária, bem informada, mas não aceita a vida de uma prostituta, ao menos a respeite e comporte-se no espaço público. É o mínimo. O que justifica queimar uma pessoa que dorme num banco de praça, como fizeram com um índio em Brasília? A rigor, é mais coerente pensar que nós deveríamos nos sentir mais protegidos no espaço público, que, afinal, é de todos. E não o contrário.
O senhor aplicaria esta afirmação às favelas do Complexo do Alemão, no Rio, onde se trava uma guerra urbana há 50 dias?
Nos morros, os traficantes também constituíram seus “oásis” protegidos, na medida em que circulam por espaços nos quais o poder público não entra ou não se faz presente. São donos absolutos do pedaço.
Ações de vandalismo, violência e apropriação indevida da cidade são muitas vezes praticadas no chamado “tempo livre” de jovens. É impressão ou o lazer, nas metrópoles, virou vizinho da delinqüência?
Creio que não. Tenho estudado há um bom tempo o lazer, seja na periferia, seja no centro, com jovens ou não. Como a gente sabe, o tempo livre tende a continuar aumentando na sociedade contemporânea, deslocado que está da noção de trabalho. Até um tempo atrás, ele era a antítese de trabalho. Não é mais. Tornou-se um fim em si mesmo. Daí tanta gente cultivando a forma física, buscando suportes para a alma, viajando e estabelecendo novos vínculos. Não vivemos mais aquele tempo ditado por uma regra básica da produção industrial, segundo a qual o indivíduo tem direito ao descanso justamente para repor energias físicas e psíquicas, antes de voltar a ser consumido como força de trabalho. Hoje, com a terceirização, a possibilidade de trabalhar à distância e as ocupações temporárias, o tempo livre aumenta. Devemos encará-lo como espaço para o desenvolvimento de novas sociabilidades, e isso, numa cidade como São Paulo, é uma experiência fascinante. Na verdade, o fato de a metrópole funcionar como funciona, com suas possibilidades e deficiências, é maravilhoso. É o grande milagre. O que destoa é a investida autoritária de um e outro grupo.
As pessoas criam seus arranjos, a metrópole funciona, mas a violência faz surtir o efeito de má exemplaridade. Tanto que ela se reproduz no cotidiano, das mais diferentes formas, em qualquer hora do dia, em qualquer ponto da cidade.
Precisamos sair da análise do espaço público para avaliar as instituições do poder público. Onde estão? Como agem? Falo não só das instituições voltadas para a segurança, mas as da educação, saúde, e tantas outras. Episódios de violência seriam exemplares, sim, se houvesse respostas firmes e rápidas contra eles. Isso não existe. Além disso, há outro problema grave. Estamos vendo um sem-número de mazelas das classes dirigentes, que nos passa essa terrível sensação de impunidade permeando a sociedade. Isso tem reflexos na vida da metrópole. Se para “eles” tudo é possível, por que eu tenho de pagar impostos e cumprir minhas obrigações como cidadão? Quando um policial é pego num episódio de corrupção, justo ele que deveria contê-la, causa uma tremenda confusão lógica na cabeça do cidadão: ele não só se sente desamparado, como à mercê de um ator social do qual não conhece a verdadeira face.
Esta é uma pergunta que muitos pais se fazem: mais tempo livre, mais tempo para transgredir?
Não penso assim. Se tenho tempo livre, posso ler um livro, não preciso sair por aí barbarizando. A deliquência não é alternativa. Ela é resultado de uma complexa gama de fatores. E, aproveitar o tempo livre não é privilégio de quem tem dinheiro. Na periferia, há propostas de lazer muito interessantes e até baratas. Como o skatismo.
A ação da polícia no Rio, na semana que passou, além do saldo de mortos, mostra como o cidadão está vulnerável. Mata-se primeiro, depois verifica-se se é traficante ou não. Parece que todo mundo é criminoso, todo mundo mente, todo mundo tem droga.
É a lógica de metonímia, tomar a parte pelo todo. Há um grupo protegido, que são os traficantes, e o ônus de suas conexões criminosas é distribuído para a população local, gente que trabalha, que obedece normas.
E qual é a visão que se tem de poder público nas periferias?
É reconhecido como poder de repressão, mais do que como poder de mediação. O Estado se faz presente nesses lugares na figura do policial, que surge lá como a última instância do poder público, quando tudo mais falha. Quando um policial dá carona a uma gestante que está para dar à luz, vira herói, sai no noticiário, é algo fora de série. Porque é a derradeira face do poder público naquele lugar! Na verdade, não se deveria poupar investimento na sua formação. Melhorar nossas forças policiais não significa obrigatoriamente comprar mais armas e viaturas. Significa dar qualificação, informação, salário melhor, condição de trabalho. Como é importante um policial aprender o que é diversidade, saber como deve lidar com a mulher, a criança, o pobre, o negro, o homossexual, o idoso, ter, enfim, uma idéia de polidez.
O senhor propôs aos seus alunos na USP fazer a etnografia da ocupação da reitoria. Quais são as primeiras conclusões?
Cedo para dizer, ainda estamos trabalhando sobre os dados. Propus aos calouros das Ciências Sociais, que mal chegavam à universidade e caíram nessa confusão, que fizessem um trabalho levando em conta o lugar da ocupação, os personagens e a mudança de regras. No começo, foram vistos com certa desconfiança pelo comando da greve. Mas, convenceram. Não sei o que virá. E nem quero influenciar os resultados. Antropologia é isso.
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