"Nossa sociedade está doente". Entrevista com Nancy Cardia
“Nossa sociedade está doente”, diz a professora da Universidade de São Paulo Nancy Cárdia em entrevista ao Estado de S.Paulo, 01-07-2007, ao analisar a reação dos jovens que, tentando justificar a agressão à empregada doméstica Sirley Dias Carvalho Pinto no Rio de Janeiro. Segundo ela, desenvolveu o conceito de que setores carentes da população são considerados excluídos morais, não sujeitos de direitos. Nancy Cárdia é coordenadora-adjunta do Núcleo de Estudos da Violência da USP
Eis a entrevista.
Como jovens, como esses que agrediram a doméstica, pode chegar a tão alto grau de agressividade?
Há padrões de desvio que ocorrem universalmente em certa faixa de idade. Quem fizer uma pesquisa com adolescentes de 12 a 16 anos verá que, em algum momento, eles mentiram, furtaram alguma coisa no supermercado, usaram o transporte público sem pagar, fizeram alguma grafitagem. Mesmo aqueles considerados bem comportados e que vão muito bem na escola terão feito alguma coisa nesse período. Dos 12 aos 16 anos, é considerado universal cometer pequenas transgressões.
Qualquer criança está sujeita a esse tipo de comportamento?
Muitas dessas situações ocorrem com mais freqüência com aquelas crianças que vêm de ambientes com violência dentro de casa, violência entre os pais. E violência que não fica restrita à esfera dos pais, pois extravasa para as crianças. Começa a haver agressão entre os irmãos e se estende à escola e às brincadeiras na rua. As crianças vão aprendendo que essa pode ser uma maneira aceitável de interagirem.
No caso dos agressores de Sirley, não se trata mais de crianças.
Os agressores de Sirley são jovens adultos, todos acima de 19 anos. Pelo menos quatro deles já passaram pelo ritual de entrada na universidade. Não estamos falando de adolescentes, de meninos. Não são mais crianças, ao contrário do que disse o pai de um deles. Presume-se que esses jovens não vêm de casas onde a violência seja uma rotina, onde os pais vivam às turras, onde eles tenham sido vítimas de agressões sucessivas. É uma coisa muito mais perturbadora, porque se imagina que, nessa idade, exista capacidade de julgamento, de discernir o que é certo e o que é errado. O fato é que fizeram isso e já vinham fazendo há algum tempo, como as notícias agora fazem supor. Outros casos devem ter ocorrido, pois agiram com a maior tranqüilidade e sem nenhum receio de serem pegos. A surpresa está no fato de que foram pegos. Não esperavam. Provavelmente , com expectativa de impunidade. E todos conhecem o epílogo.
Como será o epílogo?
Não vai ser muito diferente do que ocorreu com um índio em Brasília (o índio Galdino Pataxó, queimado vivo há dez anos por jovens ricos de Brasília) ou com meninas ou moças violentadas e assassinadas por jovens de ditas boas famílias, com os quais não se passou muita coisa. Alguns desses casos jamais foram esclarecidos. Fica em nossa sociedade a sensação de que tem pessoas e pessoas. Algumas pessoas são merecedoras de justiça, de bons tratos e têm seus direitos respeitados, porque elas são iguais a nós. Terão de ser tratadas como nós. E existem os outros, aqueles que a gente não tem certeza de que sejam humanos. É quando dizem: 'Pensamos que era uma prostituta.' Ou como disseram os meninos em Brasília: 'Pensamos que o índio era um mendigo'. Então prostituta e mendigo não pertencem ao nosso mundo. Por isso, não têm de ter as mesmas proteções, os mesmos direitos que nós temos. Nossa sociedade está doente.
Ao dizer que são crianças, o pai de um agressor de Sirley não estaria pedindo punição menos rigorosa?
Todos aqui esperam uma punição menos rigorosa, diferente. A gente tem foro especial! Por que tem foro especial? É 'normal', entre aspas, que esse pai tenha essa expectativa num lugar em que se criam isenções para diferentes indivíduos. Quem tem diploma universitário não vai para o xadrez comum. Deveria ir. Talvez as condições de nossas penitenciárias fossem menos brutais.
O que vai ocorrer no caso Sirley?
É só pegar os dados mais objetivos. Têm condição de pagar um bom advogado? São réus primários? Vão para tribunal de júri, por tentativa de homicídio? Se forem julgados só por um juiz, com quem o juiz vai ter empatia? Qual é a pena mínima? A julgar pelo passado, a gente sabe que não dá para esperar que sejam condenados.
O exemplo de cima influencia?
A maior parte dos grupos que deveriam estar dando exemplo de comportamento às crianças e aos jovens apresentam sinais no mínimo ambivalentes do que é aceitável ou inaceitável em nossa sociedade. Quando se liga a TV e se assiste um noticiário local e nacional, o que é que a gente vê? A expressão dos responsáveis por serem a voz e o rosto do telejornal é de desânimo. Os relatos são de transgressão em cima de transgressão. Estamos já num estágio em que, quando um dirigente nosso se comporta de maneira digna, a gente fica surpreso. Deveria até virar manchete.
A senhora falou que a sociedade está doente. Só a nossa?
Temos aqui incapacidade de aplicar as leis. Por todos os cantos, há pessoas reclamando da falta de aplicação das leis e da incerteza, do mal-estar que isso gera. É avassalador. Vêem-se pessoas que ocupam espaço e destroem o ambiente e não acontece nada. Vê-se o indivíduo retirando recursos do Estado para benefício próprio e fica tudo por isso mesmo. Surgem explicações sem pé nem cabeça e não dá em nada. É patético.
Eis a entrevista.
Como jovens, como esses que agrediram a doméstica, pode chegar a tão alto grau de agressividade?
Há padrões de desvio que ocorrem universalmente em certa faixa de idade. Quem fizer uma pesquisa com adolescentes de 12 a 16 anos verá que, em algum momento, eles mentiram, furtaram alguma coisa no supermercado, usaram o transporte público sem pagar, fizeram alguma grafitagem. Mesmo aqueles considerados bem comportados e que vão muito bem na escola terão feito alguma coisa nesse período. Dos 12 aos 16 anos, é considerado universal cometer pequenas transgressões.
Qualquer criança está sujeita a esse tipo de comportamento?
Muitas dessas situações ocorrem com mais freqüência com aquelas crianças que vêm de ambientes com violência dentro de casa, violência entre os pais. E violência que não fica restrita à esfera dos pais, pois extravasa para as crianças. Começa a haver agressão entre os irmãos e se estende à escola e às brincadeiras na rua. As crianças vão aprendendo que essa pode ser uma maneira aceitável de interagirem.
No caso dos agressores de Sirley, não se trata mais de crianças.
Os agressores de Sirley são jovens adultos, todos acima de 19 anos. Pelo menos quatro deles já passaram pelo ritual de entrada na universidade. Não estamos falando de adolescentes, de meninos. Não são mais crianças, ao contrário do que disse o pai de um deles. Presume-se que esses jovens não vêm de casas onde a violência seja uma rotina, onde os pais vivam às turras, onde eles tenham sido vítimas de agressões sucessivas. É uma coisa muito mais perturbadora, porque se imagina que, nessa idade, exista capacidade de julgamento, de discernir o que é certo e o que é errado. O fato é que fizeram isso e já vinham fazendo há algum tempo, como as notícias agora fazem supor. Outros casos devem ter ocorrido, pois agiram com a maior tranqüilidade e sem nenhum receio de serem pegos. A surpresa está no fato de que foram pegos. Não esperavam. Provavelmente , com expectativa de impunidade. E todos conhecem o epílogo.
Como será o epílogo?
Não vai ser muito diferente do que ocorreu com um índio em Brasília (o índio Galdino Pataxó, queimado vivo há dez anos por jovens ricos de Brasília) ou com meninas ou moças violentadas e assassinadas por jovens de ditas boas famílias, com os quais não se passou muita coisa. Alguns desses casos jamais foram esclarecidos. Fica em nossa sociedade a sensação de que tem pessoas e pessoas. Algumas pessoas são merecedoras de justiça, de bons tratos e têm seus direitos respeitados, porque elas são iguais a nós. Terão de ser tratadas como nós. E existem os outros, aqueles que a gente não tem certeza de que sejam humanos. É quando dizem: 'Pensamos que era uma prostituta.' Ou como disseram os meninos em Brasília: 'Pensamos que o índio era um mendigo'. Então prostituta e mendigo não pertencem ao nosso mundo. Por isso, não têm de ter as mesmas proteções, os mesmos direitos que nós temos. Nossa sociedade está doente.
Ao dizer que são crianças, o pai de um agressor de Sirley não estaria pedindo punição menos rigorosa?
Todos aqui esperam uma punição menos rigorosa, diferente. A gente tem foro especial! Por que tem foro especial? É 'normal', entre aspas, que esse pai tenha essa expectativa num lugar em que se criam isenções para diferentes indivíduos. Quem tem diploma universitário não vai para o xadrez comum. Deveria ir. Talvez as condições de nossas penitenciárias fossem menos brutais.
O que vai ocorrer no caso Sirley?
É só pegar os dados mais objetivos. Têm condição de pagar um bom advogado? São réus primários? Vão para tribunal de júri, por tentativa de homicídio? Se forem julgados só por um juiz, com quem o juiz vai ter empatia? Qual é a pena mínima? A julgar pelo passado, a gente sabe que não dá para esperar que sejam condenados.
O exemplo de cima influencia?
A maior parte dos grupos que deveriam estar dando exemplo de comportamento às crianças e aos jovens apresentam sinais no mínimo ambivalentes do que é aceitável ou inaceitável em nossa sociedade. Quando se liga a TV e se assiste um noticiário local e nacional, o que é que a gente vê? A expressão dos responsáveis por serem a voz e o rosto do telejornal é de desânimo. Os relatos são de transgressão em cima de transgressão. Estamos já num estágio em que, quando um dirigente nosso se comporta de maneira digna, a gente fica surpreso. Deveria até virar manchete.
A senhora falou que a sociedade está doente. Só a nossa?
Temos aqui incapacidade de aplicar as leis. Por todos os cantos, há pessoas reclamando da falta de aplicação das leis e da incerteza, do mal-estar que isso gera. É avassalador. Vêem-se pessoas que ocupam espaço e destroem o ambiente e não acontece nada. Vê-se o indivíduo retirando recursos do Estado para benefício próprio e fica tudo por isso mesmo. Surgem explicações sem pé nem cabeça e não dá em nada. É patético.
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