“A biopolítica é um modo interessante de pensar, não só os extremos do fascismo, mas também, no contexto atual, as políticas de avaliação, de regulação e sanitárias”, que segundo Mario Goldenberg, são também “políticas sobre o corpo”.
“A segurança, preocupação dominante nos tempos da globalização, tem de algum modo essas características: por preservar a segurança se pode fazer uso da violência sobre os corpos, como aconteceu no recente massacre num colégio de Beslán (Rússia), onde as forças de segurança terminam matando não só os seqüestradores, mas as trinta crianças que estavam reféns”, continua o psicanalista da Escola de Orientação Lacaniana e professor da Universidade de Buenos Aires. Nesta linha, o que deveria a princípio ser uma política de proteção, acaba sendo o seu oposto.
Segue a íntegra do artigo de Mario Goldenberg publicado no Página/12, 28-07-2007. A tradução é do Cepat.
Michel Foucault, em seu primeiro seminário de 17 de abril de 1976, introduziu o termo “biopoder”, entendido como o modo como “o poder político é exercido sobre o homem como ser vivo”. Até então, a filosofia política havia apontado antes para os direitos do sujeito frente ao Estado e a Lei. O termo “biopolítica”, desenvolvido entre outros pelo filósofo napolitano Roberto Esposito (autor, entre outros livros, de Inmunitas e Communitas, publicados por Amorrortu), inclui no discurso político um elemento diverso que é o bios, o corpo. A biopolítica é a política que se exerce sobre os corpos.
Isto permite a Esposito uma abordagem inédita do nazismo, que já Foucault havia denominado de racismo de Estado. A política do Terceiro Reich foi uma tanatopolítica: uma política de pureza racial sobre a vida, que, utilizando o discurso biológico, procurou limpar a raça ariana da infecção judaica. E não se tratava de um uso metafórico: é conhecida a participação dos médicos na seleção e outros dispositivos dos campos de extermínio. O próprio Hitler foi chamado de “o grande médico alemão” que, seguindo a tradição de Pasteur e Koch, havia descoberto o vírus que infectava a nação ariana. Na Argentina tivemos uma variante desta tanatopolítica, já não com um discurso racial, mas o de “curar a pátria da infecção subversiva”, que incluía práticas de extermínio e, também, a apropriação de corpos de bebês como despojos de guerra.
A biopolítica é um modo interessante de pensar, não só os extremos do fascismo, mas também, no contexto atual, as políticas de avaliação, de regulação e sanitárias: também são políticas sobre o corpo.
Esposito pensa a comunidade a partir de um não há nada em comum: uma ruptura da idéia fechada e orgânica do corpo político, a favor da multiplicidade da existência variada e plural; uma política entendida como produção contínua da diferença a respeito de toda prática identitária; uma conjugação inédita entre a linguagem da vida e a forma política. Quer dizer: uma biopolítica afirmativa, não sobre a vida mas da vida.
Mas também coloca a noção de immunitas, na qual, a partir da biologia, se apresenta o “inmunitário” como uma infecção atenuada para prevenir uma maior. O imunitário permite manter uma comunidade: mas nesta época se põe em jogo através de guerras preventivas, de sistemas de segurança onde o aparato repressor atenta contra a integridade dos corpos. Esposito menciona o caso do Afeganistão, onde os mesmos aviões que jogavam víveres atiravam bombas. O filme A queda mostra como o aparato imunitário do nazismo em seus últimos dias pôs em jogo contra eles mesmos o gozo exterminador: os próprios alemães, caso não fossem suficientemente fortes, deviam ser destruídos.
A segurança, preocupação dominante nos tempos da globalização, tem de algum modo essas características: por preservar a segurança se pode fazer uso da violência sobre os corpos, como aconteceu no recente massacre num colégio de Beslán (Rússia), onde as forças de segurança terminam matando não só os seqüestradores, mas as trinta crianças que estavam reféns. Nesta linha, a proteção imunitária, que se apresenta como o mecanismo que protege a vida combatendo aquele que a nega, é expressa de forma mais acabada – coloca Esposito – pela figura do phármakon, com seu duplo sentido intrínseco de remédio e veneno. Este mecanismo, cujo objetivo é conservar a vida, termina por negá-la.
Para Jacques Lacan, não há continuidade de gozo: no que se poderia chamar de bios lacaniano, a maneira de gozar é singular. A lógica imunitária tende a apagar o bios no sentido de forma de vida, onde podemos situar o pulsional. A lógica identitária, por sua vez, tenta nomear os sintomas a partir do discurso da ciência e do mercado, para riscá-lo em seu sentido e singularidade: temos assim um mundo de anorexias, drogados, terroristas, bulimias, depressivos, panic attacks, novos nomes onde o imunitário exclui a diferença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário