Neo-estatismo ou Estado pró-ativo? O capitalismo brasileiro em debate
Qual é a principal característica do capitalismo brasileiro? Especialistas e economistas comentam as opções do país nas últimas décadas. A reportagem é Roberto Machado para o jornal Valor Econômico, 31-08-2007 - Caderno Eu&Fim de semana.
Eis a reportagem.
Abril de 1992. Fernando Collor ainda não havia sido tragado pela tsunami de denúncias e evidências que levariam ao impeachment. Apesar da recessão na economia, mesmo impopular e já cambaleante, o governo teve forças para seguir com o Programa Nacional de Desestatização, que no dia 10 daquele mês cumpriria importante etapa: a privatização da Petroflex, subsidiária da Petrobras. Foi a primeira estatal do setor petroquímico a ser vendida no PND. Comprador: Grupo Suzano.
Agosto de 2007. Luiz Inácio Lula da Silva inicia o oitavo mês do segundo mandato. As críticas às privatizações e à política econômica dos governos anteriores são pouco mais do que lembranças de oposição. Como espasmos, reaparecem aqui e ali no calor dos palanques. Sucumbiram diante dos altos índices: nível de atividade, recuperação da renda, aprovação governamental nas pesquisas. Festejada, a Petrobras alcança a auto-suficiência em petróleo e diversifica negócios. Quinze anos depois, compra de volta não apenas a Petroflex, mas a Suzano Petroquímica inteira, na segunda aquisição bilionária em menos de seis meses (antes, houve a compra da Ipiranga, ao lado de Ultra e Braskem).
Antigas palavras de ordem dos partidos de esquerda que pareciam soterradas - como a nacionalização e a estatização dos meios de produção - renascem na América Latina. Eis a Revolução Bolivariana. Aqui, a trajetória do Partido Socialista chileno pode até ter sido a inspiração, mas foi o pânico financeiro de 2002 que impôs a agenda de Lula. Hoje, a agenda é outra. Tempos de PAC. E duas décadas de baixo desempenho econômico, aliadas à dificuldade crônica de crescer de forma sustentável, podem realimentar crenças antigas. Faltam investimentos em infra-estrutura, a privatização fracassou em áreas cruciais (como a de energia elétrica), a insegurança jurídica afasta o capital privado. O Estado ocupa espaço.
Especialista em temas relacionados à globalização econômica e professor da USP, Gilberto Dupas
identifica uma revisão - em escala mundial, com gradações diversas - de políticas executadas nas últimas duas décadas do século XX. "No início dos anos 1980, estabeleceu-se o pressuposto de que o Estado é mau gestor da produção. Houve a queda do Muro de Berlim e o colapso do chamado socialismo real, o que acelerou a convergência de processos distintos.
Na América Latina, veio o Consenso de Washington:
abertura comercial, estabilização monetária e privatizações. Só a estabilização monetária foi efetivamente bem-sucedida. As privatizações tiveram seus altos e baixos. Em muitos setores, a presença do Estado, como sócio ou financiador, permanece inevitável. Aqui e lá fora, é um período de revisão do que foi feito nas últimas décadas, com ajustes e conformações."
Se, na América Latina, diversos países têm adotado políticas intervencionistas, do congelamento de preços à reestatização de companhias de petróleo, na China, sob a mão forte do Partido Comunista, a bem-sucedida abertura a capitais privados continua em marcha acelerada. Já nos países desenvolvidos, há uma voraz concentração empresarial, com fusões e aquisições bilionárias. Para muitos analistas, ainda não é possível observar nada: nem mais liberalização, nem mais intervencionismo. "A França elegeu o Sarkozy contra uma socialista. O México, um político pró-mercado.
Na China e na Índia, com todas as particularidades desses países, existe redução da participação estatal. Só em alguns países da América do Sul há uma febre de estatizações. Aqui no Brasil, ainda é cedo para avaliações definitivas. Só é possível dizer uma coisa: há mais economistas pró-Estado chegando ao poder. Só isso", diz José Márcio Camargo, professor da PUC carioca e integrante da equipe de consultores Tendências.
Petroquímica
A nomeação do consultor privado e professor da Unicamp Luciano Coutinho para a presidência do BNDES é um exemplo da mudança de perfil de que fala Camargo. Identificado com o que se convencionou chamar de "desenvolvimentismo", Coutinho é entusiasta do modelo coreano, em que o Estado, por meio de políticas industriais, estimulou o surgimento de poderosos grupos nacionais, que viraram multinacionais. Entre nós, estudos do BNDES, anteriores a Coutinho, apontam que só haverá espaço para, no máximo, dois grandes grupos nacionais no setor petroquímico. Com as aquisições recentes, a Petrobras espera ter participação relevante na companhia que integrará os ativos da região Sudeste. O controle ficaria com o sócio privado, ressalte-se. Mesmo assim, há quem veja no horizonte sombras do passado: preços e expansões arbitradas pelo governo.
Telecomunicações
Temor que não se restringe à petroquímica. No sensível mercado de telecomunicações, o governo trabalha para a fusão das operadoras Telemar/Oi e Brasil Telecom. Resultaria na criação de uma poderosa companhia nacional, na qual os fundos de pensão de estatais teriam significativa participação acionária. A decisão implicaria em modificação na legislação que regulamenta o setor. Por isso, a polêmica não se restringe aos gabinetes ministeriais. No Rio, técnicos do BNDES e dirigentes dos fundos de pensão definem suas estratégias: o banco público de investimento tem forte presença na Oi/Telemar, mas está afastado da gestão. Já os fundos travaram batalhas sangrentas para chegar aonde estão hoje: no comando da Brasil Telecom. As operadoras estrangeiras assistem de longe, aguardando definições oficiais.
Setor elétrico
No setor elétrico, a Eletrobrás retomou planos de expansão e foi às compras. Obteve concessões para hidrelétricas de médio e pequeno portes, comprou participação acionária das que estavam com a iniciativa privada e terá papel fundamental na construção das usinas do rio Madeira - principal obra do PAC. Um contrato amarra Furnas, subsidiária da Eletrobrás, ao consórcio liderado pela construtora Odebrecht para a participação nos leilões. Estima-se que cada usina custe R$ 10 bilhões. Na antevéspera do primeiro leilão, o arranjo bateu mal para muita gente. Concorrentes chiaram e a ameaça de uma arrastada disputa judicial falou mais alto. Agora, as subsidiárias da Eletrobrás poderão tomar parte em outros consórcios.
O governo quer transformar a estatal numa espécie de Petrobras. Mas há obstáculos, como o fato de a empresa dever quase R$ 8 bilhões a acionistas minoritários. - e ainda não sabe como pagá-los. No entanto, só com antigas companhias estaduais de distribuição que foram federalizadas em 1998, a Eletrobrás já gastou R$ 8,6 bilhões. Quase dez anos atrás, essas empresas eram um manancial de problemas. Foram encampadas pelo governo federal como primeiro passo de uma futura privatização. Estão aí até hoje.
Velhos hábitos, novos desafios governamentais, diz Dupas. "Não vejo tendência estatizante, mas novos problemas, delicados. O tamanho da Petrobras, sua natureza mista [estatal que tem ações negociadas em bolsas e deve satisfações a acionistas]. No caso da telefonia, consolidou-se o conceito de que é área do mercado. No setor elétrico, o Estado é sempre um parceiro relevante e o apagão de 2001 indicou o potencial de problemas. O que está em jogo é a complexidade da gestão. A Vale foi privatizada, a Petrobras não. E ambas deram certo".
Também para Camargo, ainda não é possível afirmar que há uma tendência estatizante no segundo mandato. "No caso das telecomunicações, seria uma besteira, uma bobagem. Não há razão nem necessidade de se fomentar uma operadora nacional. O mercado está aí, o consumidor ganhou, há concorrência. No caso da Petrobras, é difícil avaliar. Ela sempre foi uma companhia agressiva. Por outro lado, uma parcela importante da petroquímica estava com o setor privado. Não está mais. Reestatização só aumenta a ineficiência e reduz a produtividade da economia".
Finalmente, há quem observe motivos muito prosaicos para preocupação. É o caso de Evaldo Alves, professor de Economia Internacional da FGV paulista: "Identifico o projeto de uma atuação mais ativa do Estado em diversos campos, mas não consigo identificar de onde virão os recursos. Não há orçamento, o governo não gera caixa nem para pagar custeio da máquina e juros. A conta de uma decisão voluntarista pode ser paga lá na frente, pela sociedade toda. No caso da Petrobras, ainda há recursos para financiar expansão. Mas na área de energia o quadro é outro. Estamos no limite da escassez, com ameaças consideráveis para os próximos anos. O país precisa de investimentos. Num cenário, o setor público tem posição monopolista. Em outro, atrai grandes empresas e investidores para projetos como os das usinas do rio Madeira, que têm potencial para atrair capital privado".
No surto estatizante da Venezuela, os dólares que jorram na Petróleos de Venezuela (PDVSA) financiam o discurso ideológico. No Brasil, em outros períodos da história, as incursões do Estado na atividade produtiva foram justificadas por ideologias nacionalistas, à direita e à esquerda. Também nisso, a distância entre Lula e Chávez aumenta. Se há de fato a intenção de estender a participação governamental na esfera da produção, como na petroquímica e nas telecomunicações, a gestão petista ainda não a transformou numa palavra de ordem.
"O discurso de Chávez é antigo, do pobre contra o rico. As políticas são conservadoras. Há inovações, mas são minoritárias. No caso brasileiro, há um reforço de uma visão mais ativista por parte das estatais, mas não chega nem perto do que tivemos nos anos 1970. É que a base de comparação são os anos FHC, estritamente liberais", diz Fernando Cardim, professor e integrante do grupo de estudos conjunturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Cardim observa que, ao longo da história do capitalismo, o discurso ideológico é geralmente conseqüência de mudanças que ocorrem na base econômica da sociedade. Cita como exemplo o caso dos sindicatos de mineiros na Inglaterra. As greves ocorriam no inverno, irritavam a população e levantavam a bola para o discurso liberal de Margareth Thatcher: "Movimentos ideológicos surfam nessas ondas. As doutrinas sempre pegam carona, não tomam a dianteira dos processos. O que vejo hoje é o movimento pendular da economia, corrigindo o excesso liberal das últimas décadas, que por sua vez corrigiu o excesso de intervencionismos dos anos 1970 e 1980.
Nos Estados Unidos, por exemplo, provavelmente os democratas vencerão as eleições do ano que vem. E todos os pré-candidatos são mais intervencionistas, até por pressão dos sindicatos. Aqui, pode estar havendo o retorno de uma visão mais ativista por parte do Estado. Até em função do liberalismo do período FHC. Não há um projeto ideológico, mas um equilíbrio entre os excessos dos anos 1970 e dos anos 1990".
Entre a liberalização e o intervencionismo, o segundo mandato parece fadado ao conforto. Se não houver terremotos financeiros globais, o país já tem crescimento contratado para este ano e para o próximo. Mas as armadilhas para o sucessor de Lula serão muitas: colapso da infra-estrutura de transportes, risco de apagão energético, crescimento dos gastos públicos. É aí que mora o perigo: num cenário como esse, tanto o intervencionismo como a liberalização terão sido insuficientes.
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