"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, setembro 05, 2007

O verdadeiro sonho de Martin Luther King. O discurso de Washington há quarenta e quatro anos


Aos 28 de agosto de 1963 o líder dos afro-americanos pronunciou o seu célebre discurso “I have a dream” [Eu tenho um sonho]. Martin Luther King citou Lincoln, a Bíblia, Shakespeare. Mas também se referiu a Malcolm e às Panteras negras. “Não haverá repouso nem tranqüilidade na América enquanto não forem garantidos aos negros os seus direitos de cidadania”. O reverendo pacifista compartilhou também o “sonho” de John Brown, condenado à morte sob a acusação de haver tentado uma insurreição armada. A reportagem é de Gordon Poole e publicada pelo jornal italiano Il Manifesto, 28-08-2007.

Eis o artigo.

Aos 28 de agosto de 1963, Martin Luther King, durante um comício em Washington, de fronte do Lincoln Memorial, proclamou o próprio sonho de libertação para os afro-americanos: “Há cem anos um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, firmou a Proclamação da Emancipação”. Lugar e data tinham sido escolhidos cuidadosamente pelos organizadores, não só para dar o máximo realce ao discurso, mas também para sacralizar a luta de libertação dos negros, ligando-a à obra de emancipação de Lincoln. Em todo o discurso político há também uma questão de retórica: para indicar os “cem anos” passados desde a Emancipação, King usou uma expressão antes incomum: “five score” (cinco vintenas), que recordava aos ouvintes o breve, mas famoso discurso comemorativo de Lincoln, pronunciado em Gettisburgo aos 19 de novembro de 1863 e aprendido de cor por gerações de escolares, que inicia com: “Four score and seven years ago” [Há quatro vintenas e sete anos] “os nossos pais fundaram uma nova nação, dedicada ao princípio de que todos os homens foram criados iguais...”. O apelo de Lincoln recorria, por sua vez, a documentos fundamentais da República, como a Declaração da Independência, a Constituição, o Bill of Rights, inspirados no Iluminismo. Assim, a retórica de King enraizava a luta dos negros na melhor tradição libertária de seu país.

As referências à Bíblia

O seu discurso, além dos conteúdos, se enriquecia com embelezamentos retóricos, repetições, anáforas. King relacionava frases e conceitos à Bíblia, bem como ao cotidiano dos seus ouvintes. Assim, referências ao Antigo e ao Novo Testamento ou a Shakespeare se alternavam com referências ao presidente Abraham Lincoln e ao mundo das finanças. Expressões barrocas, como “queimado nas chamas de devastantes injustiças” e “a costumeira roca da fraternidade” são mescladas com outras mais coloquiais, como “blow off steam” (desabafar-se), “cooling off” (acalmar-se) ou”o fármaco tranqüilizante do gradualismo”. É de notar-se, no entanto, que, embora Lincoln fosse recordado por King como o grande Libertador dos escravos negros rebeldes, como Presidente ele jamais tivera sonhos de libertação como aquele de King, quando este auspiciava que “um dia precisamente ali, no Alabama, meninos e meninas negras poderão estar de mãos dadas com meninos e meninas brancas, como irmãs e irmãos”, podendo freqüentar as mesmas escolas.

Emancipar os escravos era uma coisa, integrá-los na sociedade americana era outra. Na verdade, Lincoln visara a Proclamação da Emancipação, promulgada no dia 1º de janeiro de 1863, em plena guerra, principalmente como uma arma para dar aos escravos um motivo, se não para rebelar-se, ao menos para confiar numa vitória do Norte e para agir de vários modos a fim de favorecê-la, bem como para encorajar negros livres do Norte e aqueles das zonas do Sul conquistadas pelo Norte a se alistarem no exército da União, que desesperadamente deles necessitava. A Proclamação servia também para suscitar preocupações entre os sulistas brancos, os quais, lembrados das sangrentas revoltas de escravos, como aquela do grupo comandado por Nat Turner em 1831, podiam temer que algo análogo sucedesse, enquanto todos os homens brancos válidos estavam empenhados no front. Todavia, Lincoln não podia não intuir que aquela Proclamação teria dado força a uma luta pela liberdade com conseqüências conturbadoras para a sociedade dos Estados Unidos, uma vez encerrada a guerra.

Os ideais do Iluminismo

Nem mesmo os Pais fundadores da República, que King cita junto a Lincoln em apoio ao seu programa de libertação, conceberam jamais uma sociedade na qual os negros estariam em condições de paridade com os brancos: para fazê-lo, deveriam ter aceitado até o fundo os idéias do Iluminismo aos quais se referiam. No entanto, a implicação que as palavras “All men are created equal” [Todos os homens foram criados iguais] não pudessem ser limitadas somente aos homens brancos, mas, potencialmente, devessem estender-se no sentido de abranger todos e todas era, a longo termo, inevitável. Esta possibilidade manifesta-se com força nas palavras de King, quando diz que “Todos os filhos de Deus” devem ser livres. A reinterpretação forçada dos documentos históricos da República, que King fez naquele dia, sob o sol de agosto, na capital e que tinha e teria perseguido resolutamente durante sua vida, não teria podido impor-se a não ser graças às lutas de massa dos negros, com a solidariedade militante de muitíssimos brancos.

King era, por religião e ideologia, rigorosamente avesso à violência, mas bem sabia que era requerida uma guerra civil para obter a emancipação dos escravos e as emendas XIII e XV da Constituição. Ele também sabia que as lutas corajosas e talvez violentas contra o racismo e a opressão policialesca, conduzida por grupos de libertação negros, como os islamitas de Malcolm X, os ativistas do Poder negro de Stokely Carmichael e as Panteras Negras, eram parte importante do movimento.

Um brusco despertar

A um certo ponto de seu discurso, Martin Luther King fá-lo entender, correndo o risco de contradizer-se: “Aqueles que esperavam que os negros tivessem apenas necessidade de desafogar-se um pouco, e que agora se teriam acalmado, terão um brusco despertar, se a nação devesse voltar à costumeira andança. Não haverá repouso nem tranqüilidade na América, enquanto não sejam garantidos aos negros os seus direitos de cidadania. As tempestades da revolta continuarão a sacudir os fundamentos da nossa nação, enquanto não surgir o luminoso dia da justiça”. No entanto, imediatamente após, ele se dirige aos seus: “Devemos sempre conduzir a nossa luta no plano da dignidade e da disciplina. Não devemos permitir que os nossos protestos criativos degenerem em violência física. De tempos em tempos devemos elevar-nos às majestosas alturas onde, à força física, se opõe a força de ânimo”. E, com São Paulo os convidava: “Continuai a trabalhar na crença de que o sofrimento presente é fonte de redenção” (2 Cor 12,10).

Na verdade, se jamais tivesse existido, na época de Lincoln, uma pessoa que compartilhasse do sonho do reverendo King, esta era John Brown (1800-1859). Antes de escutar a sentença de morte da corte de Virgínia, por haver tentado uma insurreição armada, Brown fez um breve discurso num estilo tipicamente puritano, o assim chamado ‘plain style’ (sermo humilis), distante da oratória altissonante e carismática de King. Em palavras simples, Brown afirmou, no entanto, substancialmente o mesmo ideal, extraído daquela mesma Bíblia que era tão importante para o idealismo político de King. Em sua breve peroração, Brown afirmou por duas vezes que seu objetivo fora somente o de libertar escravos e não o de incitá-los a uma rebelião geral.

A convicção de Brown de que os escravos tivessem o direito, que era claramente, para ele, um direito natural conferido por Deus, de libertar-se por qualquer meio, era coerente com os seus pressupostos ideológicos. As suas idéias antecipam aquelas de Malcolm X, expressas também elas num contexto religioso: “By any means necessary” (necessário por qualquer meio).

O sacrifício de John Brown

No discurso de Brown à Corte faltam as metáforas, há poucos adjetivos e jamais são usados para embelezar o discurso ou intensificar-lhe o efeito retórico. Também quando ele qualifica as leis escravagistas como “wicked, cruel, and injust” (malvadas, cruéis e injustas), não se trata de hipérboles: ele quer dizer precisamente que tais leis são contra a lei divina, o direito natural e – corretamente entendida – a lei humana. Em seu coração deve ter entendido que a escravidão estava destinada a desaparecer em breve. Entendia também que a própria morte teria podido acelerar aquele processo, embora talvez não previsse a terrível guerra civil que dali a pouco, entre 1861-1865, seria desencadeada em parte por causa da questão da escravidão, invocando o seu nome: “John Brown’s body lies a-mouldering in the greve, but his soul goes marching on. Glory, glory hallelujah!” (O corpo de John Brown se decompõe sob a terra, mas sua alma continua marchando. Glória, aleluia!). Depois daquele discurso ele não fez outras declarações e um mês mais tarde foi ao patíbulo.

O mesmo sonho

No discurso de Martin Luther King, morto aos 8 de abril de 1968 na idade de trinta e nove anos, não se faz naturalmente nenhuma referência a John Brown, embora King compartilhasse do sonho de libertação do sisudo pregador oitocentesco, e isto porque King não aceitava e não podia, por isso, apoiar os métodos com os quais Brown havia procurado realizar aquele objetivo. Porém o sonho de King, mais do que o de Lincoln ou dos Pais Fundadores, era o mesmo de Brown: “Quando fizermos ressoar a Liberdade – quando a fizermos reboar em toda aldeia e todo vilarejo, em cada Estado e em cada cidade, poderemos acelerar a vinda daquele dia, no qual todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e não judeus, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras do velho spiritual: ‘Finalmente livres, finalmente livres! Graças ao Deus onipotente, somos finalmente livres’ ”.

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