‘O mercado é uma coisa, o capitalismo é outra’. Entrevista com Michel Rocard
Michel Rocard (Courbevoie, 1930), um dos pensadores mais lúcidos da esquerda européia, analisa a crise da social-democracia profundamente preocupado. Europeísta convencido, pede – desde o seu escritório de eurodeputado em Estrasburgo - à esquerda uma profunda reflexão sobre o projeto da União Européia (UE).
O ex-secretário geral do Partido Socialista Francês, duas vezes candidato à presidência e ex-primeiro ministro do governo de François Mitterrand, afirma hoje que, depois de 58 anos de militância, se sente mais social-democrata que nunca, ainda que insista que desde 1989, a data da queda do muro de Berlim, a esquerda está doente porque não soube analisar e nem perceber as conseqüências do que realmente aconteceu. Em sua entrevista ao jornal El País, 16-03-2008, Michel Rocard afirma que perdemos o costume de refletir sobre longos períodos. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em quase toda a Europa ocidental, uma corrente populista e conservadora tem ‘ganhado’ muitas camadas sociais habitualmente próximas à esquerda. Deve-se isso à crise profunda da social-democracia ou à falta de alternativas ao modelo atual?
Não gosto da palavra crise, que sai do vocabulário médico, e que na evolução de uma doença a descreve como o ponto culminante, depois do qual, ou se morre, ou se volta ao estado normal. A palavra crise supõe um desequilíbrio temporário e implica no regresso de uma etapa conhecida. Mas não é o que está acontecendo. Vivemos uma grande mutação social, e o enfraquecimento temporal da social-democracia traduz uma insuficiência de respostas a esta evolução; mas não se trata de uma crise e sim de uma dificuldade. O grande problema em nossas sociedades contemporâneas é que perdemos o costume de refletir sobre longos períodos. Depois da II Guerra Mundial, muitas pessoas afirmavam que o capitalismo era, em grande parte, a causa dessa guerra, e não apenas a loucura de Hitler. A guerra permitiu a vitória sobre as ditaduras nazi-fascitas, e presumiu-se a reconstrução do capitalismo. Entre 1945 e 1975 houve 30 anos de pleno emprego na América do Norte, na Europa Ocidental e no Japão. Desde 1975, e lentamente, temos mudado de sistema ou de tipo de capitalismo e nós falamos hoje em sociedades, com crescimento lento, com forte nível de incertezas e com crises financeiras reincidentes a cada quatro ou cinco anos. Encontramo-nos evidentemente diante do início de outra grande crise financeira.
Diante desta ameaça, quem será a primeira vítima?
Desde 1945, até 1980, o mundo não conhecia mais do que ‘quebras’ nacionais, não crises mundiais. Era o grande êxito do capitalismo regulado. Mas hoje, frente ao pleno emprego do passado, pensando em três categorias – os desempregados, os trabalhadores precários e os pobres – estes se converteram nas primeiras vítimas. Existem em contingentes variáveis de país a país, mas chegam a 25% da população ativa em todo o mundo. É esta gente que inquieta ou desesperada, provoca o crescimento da extrema direita e favorece a apatia democrática e o aumento da abstenção.
Como reconstruir uma alternativa que faça frente a este capitalismo desordenado, como você chama?
O que eu descrevi é o resultado não da mundialização, mas da globalização não regulada. A globalização é a mescla da abertura de fronteiras físicas, da aceleração no mundo inteiro, da aceleração absoluta da velocidade de todo transporte e, em primeiro lugar, do conhecimento que percorre com a velocidade da luz todo o planeta. Mas também dos produtos, os serviços, as pessoas, e a ausência de regulação de tudo isso. A globalização está marcada pelas hipóteses absurdas e perigosas do senhor Milton Friedman, que disse que o equilíbrio dos mercados é ótimo, e que, se você quer por razões sociais melhorar os mercados com a intervenção pública com subsídios, regras ou taxas, conseguirá mais perdedores do que ganhadores. E isso não funciona. Em nome desse dogma vemo-nos regulados pelos Estados que não querem intervir contra a fraude. A metade da liquidez internacional de hoje está sendo administrada em paraísos fiscais.
E qual seria a resposta?
Antes de chegar ao que podemos fazer e encontrarmos uma resposta, devemos explicar porque a social-democracia está perdida e foi pega no contra-pé. A social-democracia mundial foi por longo tempo fiel à liberdade, assim escolheu em 1920: “Não faremos como os comunistas”. Mas fiel também a uma visão, a uma análise da economia em torno das propostas de Marx - um drama por causa da propriedade dos meios de produção e de troca, e é preciso mudar esses postulados pela propriedade coletiva dos meios de produção e de troca, e por uma administração da economia de fato. Isto não funciona. É no período do capitalismo eficaz de 1975 que a social-democracia se vê obrigada a renunciar a sua base da doutrina econômica de antes da guerra. O fizeram os suecos em 1932, quando o partido socialista foi o primeiro a inclinar-se para a economia de mercado. Os alemães o fazem em 1959, e os espanhóis, de forma muito visível – com uma forte crise interna em 1979 – com a admissão de Felipe Gonzáles, dizendo: “Eu não sou marxista”.
Mas nem todos os partidos socialistas europeus fizeram essa mudança.
Dois partidos, o português e o francês, não souberam optar por esta escolha e caíram numa ambigüidade que lhes têm custado muito. É preciso saber que a Internacional Socialista e sua sucursal dos partidos europeus se alinham sobre a economia de mercado desde 1950. Ainda que a social-democracia se tenha mostrado capacitada para enfrentar a crise e desempenhar um papel importante na consolidação do capitalismo regulado, sobretudo desenvolvendo a proteção social, perdeu, entretanto uma boa parte da sua identidade. O desaparecimento nesta constituição das nacionalizações e da economia administrada enfraqueceu a sua imagem. Era necessário porque esta imagem era falsa e ruim, mas perdeu em visibilidade e clareza.
Segunda observação: em todo assunto, a social-democracia, e no mundo inteiro, não conseguiu diferenciar suficientemente entre a economia de mercado e o capitalismo. A economia de mercado é bilimenária, enquanto que o capitalismo é apenas bicentenário. Isto nasce de um matrimônio entre duas invenções: a máquina a vapor, que permite fazer trabalhar a muitos homens ao redor de apenas uma fonte de energia, e as sociedades anônimas, que é uma invenção financeira, o primeiro meio em associar muitos capitalistas juntos em um mesmo projeto. Então, o capitalismo, toma um desenvolvimento arrasador porque é formidavelmente eficaz. Soube, como o mercado, a virtude de colocar todo mundo no tacho do desenvolvimento econômico, em vez de esperar as decisões do Estado.
Mas o capitalismo precisa do mercado, ainda que exista aí um antagonismo fundamental. Pode-se imaginar um mercado sem propriedade privada dos meios de produção e troca. Esse era o sonho de Tito, no qual caberia apenas empresas municipais. Pode-se imaginar um mercado feito apenas de cooperativas. É o que pensava Marx. A autodeterminação dos trabalhadores se dá porque acontecem acordos entre eles, e entre as unidades de produção. Assim é como a economia nazi estava estreitamente regulada pelas negociações permanente entre o Estado e as grandes empresas ou trusts que tomavam todas as decisões. Estes deixavam pouco espaço para o mercado, que apenas regulava detalhes.
Abre-se o caminho para o monopólio.
O mercado apenas existe se há verdadeira competitividade, e o capitalismo têm uma tendência constante, em todas as partes, ao monopólio. Esta tendência constrangeu a economia contemporânea. O capitalismo e suas regras funcionavam com três reguladores: a previdência social, o seguro-desemprego e as políticas keynesianas, de luta contra as variações internacionais. Foi Henri Ford que para sair da crise de 1920 cunhou a frase: “Pago aos meus assalariados para que comprem os meus carros”. Ele entendeu isso. O capitalismo de 1945, depois da guerra, generaliza esses três princípios e ao redor deles, as coisas caminham bem.
Sim, mas ao que parece, a época da bonança terminou e muitos cidadãos consideram esta globalização uma ameaça.
Neste novo desequilíbrio da última década há outra vítima, que é o acionista que se considera mal remunerado porque a retribuição dos assalariados é forte. Desde então vivemos a revanche dos acionistas, que tomaram o poder em todas as partes e gritam: “Quero mais dividendos!”. E, o novo sistema, é tudo para os acionistas e o menos possível para os assalariados - uma triste realidade. Agora, e em todos os nossos países, depois desses longos períodos, a parte dos salários sobre o produto nacional está em franca diminuição. Representava 70% na média na Europa faz trinta anos, agora está em 58% do PIB. Isso explica o trabalho temporário e precário, o desemprego e praticamente a impossibilidade de interromper tudo isso. Mas o mais revelador é o trabalho temporário. Os países que mais o aceitam tem menos desemprego que os outros, como a Espanha.
Qual pode ser o papel da Europa frente a essa crise?
Atualmente, a Europa está sendo dirigida por cúmplices do sistema. E não é uma questão de que a Europa procure corrigir os excessos. A Europa está sendo dirigida por gente que acredita nas virtudes dos equilíbrios do mercado, e que não se dão conta que estamos indo de encontro ao muro. Mas, a Europa tem a vantagem de ser enorme, é a primeira economia mundial, é o primeiro exportador e importador do mundo. E, se a Europa muda as orientações das regulações pode mudar as regras do jogo mundial. Nenhum dos nossos países pode fazer isso sozinho, nem mesmo a Alemanha. Por isso, depois de 58 anos de militância, sou mais social-democrata do que nunca e por isso estou convencido de que devemos nos entender.
Uma parte da esquerda francesa deu as costas à Europa durante muitos anos...
É necessário que a esquerda compreenda que quem diz economia de mercado, diz apenas garantia de liberdade na organização econômica e nada mais e que, portanto, não descreve a forma de retroceder do capitalismo. Quando Marx fez uma critica do capitalismo e fundou o socialismo, seu pensamento era para determinado século. Não tinha pressa. Estamos de novo nessa situação, com a grande diferença de que superamos a apropriação coletiva dos meios de produção, porque isso não funciona. Desde o princípio, sempre houve uma minoria no Partido Socialista francês que se opôs a essa idéia de Europa. Essa corrente foi mais forte nos anos cinqüenta, mas continuou existindo nos tempos de Mitterrand com a crise de desconfiança frente à Europa, com dirigentes como Pierre Joxe. E hoje, uma parte significativa do partido utiliza a Europa como responsável por nossos males; vota a favor do não no referendum sobre a Constituição européia, que provocou o drama que sabemos ou se segue opondo à economia de mercado. Outros preferem não se definir e é o mais fácil. Entretanto, teremos a ocasião de aprovar uma definição muito mais sensata e clara por ocasião do nosso próximo congresso.
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