Uma economia que combina a produção em larga escala de bens primários (a fazenda - 'Fa') com manufaturados montados a partir do uso difundido de insumos importados (a maquiladora - 'Ma') é o risco que corre a economia brasileira. A opinião é do economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em artigo no Valor, 20-03-2008.
Eis o artigo.
A virada do século 20 para a 21 tenderá a ser identificada cada vez mais como um ponto de ruptura de uma longa trajetória econômica mundial consolidada pela grande Depressão de 1929. O formato original dos três mundos - constituído pela nata do desenvolvimento do capitalismo mundial (primeiro), pelo bloco de países com experiências de socialismo real (segundo) e pelo restante das nações submetido ao subdesenvolvimento - passa por uma profunda transformação sem ainda um desfecho final.
Sabe-se, contudo, que simultaneamente ao desarranjo do império soviético, o centro da nata do capitalismo mundial convive com sinais de perda de influência no novo cenário econômico internacional. O deslocamento do centro dinâmico norte-americano para a Ásia parece inequívoco, com a China passando atualmente por uma experiência de desenvolvimento das forças produtivas somente comparável à experiência dos próprios Estados Unidos vivida durante o final do século 19.
Nos dias de hoje, a China já responde por um quarto da produção mundial de máquinas de lavar, um terço da de televisores, dois quintos da de microondas, metade da de câmeras, dois terços da de foto copiadoras e 90% da de brinquedos eletrônicos. De posse de duas a cada três gruas do mundo, o país do meio na Ásia constrói a base material mais moderna da atualidade, reinventando o sistema econômico com inovação e padrão tripartite de gestão da produção (empresa, sindicato e Estado). Se conjugado com a Índia, percebe-se uma concentração perto de dois quintos do emprego mundial e quase um terço das atividades de serviços terceirizados.
Nesse sentido, o novo formato da economia globalizada tende a tornar a China e seus satélites na grande oficina de manufatura planetária, enquanto a Índia se fortalece como o escritório do mundo. Se a Ásia define o seu futuro, a Europa, em torno de sua união, trata de conformar um grande espaço supranacional.
Mas o continente americano permanece sem rumo. O desarranjo imposto pelas administrações recentes nos Estados Unidos somente consegue ser superado pelo largo fracasso do modelo neoliberal defendido pelos organismos multilaterais e aceito passivamente por diversos governos latino-americanos e caribenhos.
Diferentemente dos países asiáticos, especialmente a China - que criou estatais a partir de clones de grandes corporações transnacionais -, capaz de fazer com que o acesso às condições mais favoráveis de produção resultasse em compartilhamento tecnológico interno, a América Latina aceitou as falsas lições neoliberais. O resultado hoje é reconhecido: abertura comercial, privatização e internacionalização da produção não permitiram expansão sustentada do crescimento, tampouco transferência tecnológica e expansão social.
Os países da região tornaram-se mais vulneráveis economicamente e superdependentes tecnologicamente. O apequenamento latino-americano e caribenho trouxe, por conseqüência, o agravamento da questão social que implicou um conjunto de mudanças políticas de grande proporção. Embora não aponte ainda o sentido claro para a construção de um novo modelo econômico e social, as alternativas experimentalistas atualmente em curso na região indicam a vitalidade de acertar o passo com a justa modernidade.
O Brasil possivelmente se configure no caso emblemático dos equívocos neoliberais aplicados da região. Após ter sido o melhor exemplo de dinamismo econômico do século 20, que permitiu sair da posição de 56ª economia do mundo para oitava, ingressou em uma fase de enorme retrocesso que levou o país a 14º PIB do planeta.
Com a abertura comercial, econômica e financeira "de graça" que gerou a desintegração do sistema nacional de inovação e da estrutura produtiva, o país ficou a deriva, com enorme vulnerabilidade externa e contaminação à lógica do curto prazo. O projeto de país circunscreveu ao primitivismo do combate à inflação, acreditando que, por conseqüência, o crescimento econômico se sustentaria por si próprio.
Somente mais recentemente, a perspectiva do desenvolvimento começa a renascer. Mesmo assim, encontra-se ainda turvada, sobretudo pelas benesses atuais do primarismo exportador. Ao mesmo tempo em que contribui positivamente para afastar os riscos das vulnerabilidades externas e estimular a economia e a ocupação, termina por acorrentar o país na produção de produtos de baixo valor agregado, reduzido conteúdo tecnológico e emprego de padrão asiático.
Os riscos de o Brasil ficar com a "FaMa" são enormes. Mas o que seria "FaMa"? Junção das sílabas iniciais de "Fazenda" e "Maquiladora", uma economia que combina a produção em larga escala de bens primários (a fazenda) com manufaturados montados a partir do uso difundido de insumos importados (a maquiladora).
Esse movimento parece não apontar para a conformação de um país de ampla classe média, mas sim desgastado por uma crescente polarização entre as camadas de baixo e as de cima da pirâmide social.
Um indicativo (preocupante) disso pode ser encontrado na evolução da participação do país na ocupação mundial. A partir das informações disponibilizadas pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Brasil aumentou em 11,1% a sua participação relativa na ocupação no setor primário nos últimos 26 anos (de 1,8% para 2%), após três décadas de perda de importância relativa. Simultaneamente, o peso do emprego industrial brasileiro no mundo caiu mais de 23% (de 3% para 2,3%) no mesmo período, depois de forte expansão entre 1950 e 1980. Afastar-se dos riscos da "FaMa" não implica condenar o setor primário, mas sim apoiá-lo com políticas públicas que permitam tanto elevar o valor agregado como recolocar o Brasil na economia mundial.
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