Jovens ‘qualificados’ enchem de violência a noite carioca em grotões onde impera a barbárie dos abastados. Mac Margolis é correspondente da revista Newsweek no Brasil. O artigo está em O Estado de S.Paulo, 06-07-2008..
A noitada no Baronneti Club, na zona sul do Rio, não é para qualquer um. Tem camarote VIP, serviço Valet para deixar o carrão, DJs requisitados e bebida de estampa fina, da vodca Grey Goose a Veuve Clicquot. A conta também é diferenciada. Afinal, os clientes são dos "mais qualificados do Rio", como anuncia o próprio clube.
A frase é de um press release da boate e não foi alterada após a morte de Daniel Duque, o rapaz de 18 anos atingido por uma bala durante confusão iniciada no Baronneti na madrugada de sábado, 29 de junho. Mas merece reflexão. Além do poder aquisitivo mais alto, creio que a palavra "qualificado" se refere a toda uma cultura. São as pessoas de boas famílias, cultas e, sobretudo, instruídas. Famílias como as dos freqüentadores da boate Baronetti.
Talvez demore a se esclarecer o que de fato aconteceu naquela noite em Ipanema, mas o perfil dos envolvidos é conhecido. Daniel cursava o último ano do ensino médio num colégio de elite no Jardim Botânico. Preparava-se para o vestibular. Era remador e vascaíno roxo. O tiro que o matou foi de um policial, guarda-costas particular de Pedro Velasco, filho de uma promotora famosa que, por ter atuado no caso de Fernandinho Beira-Mar, o ex-traficante-mor do Rio, gozava de proteção do Estado. Rolava vodca, uísque e Red Bull, uma receita de virar qualquer cabeça. Acrescentam-se paquera, soberba e ócio e a tragédia carioca se completa.
Quando soube do trabalho recente do estudioso e autor Alberto Carlos Almeida, A Cabeça do Brasileiro, fiquei animado. Embora calcada em pesquisa e análise minuciosas, a tese pode parecer singela e até óbvia, mas é revolucionária. Se no Brasil ainda reina uma cultura arcaica em que vale o jeitinho e a regra do quem pode mais, há também outra, a do Brasil "moderno", uma sociedade esclarecida que se baliza pela justiça e a ética e zela pelo espaço cívico. A diferença entre os dois Brasis? Qualificação.
Munida de escolaridade, "a classe alta mantém-se alinhada a muitos dos princípios dominantes nos países já desenvolvidos", escreve Almeida. "Quem passou pelos bancos escolares de uma universidade e obteve diploma tende a ser uma pessoa moderna: impessoal, contra o jeitinho brasileiro..." Citando o mestre Roberto DaMatta, conclui, otimista, que "o País está em transformação e ela depende da sala das aulas". Por esse argumento, o estudo formal - a qualificação - não é só desejável, é um santo remédio.
Mas tenho minhas dúvidas. Há tempos que a noite carioca sangra não apenas por conta das balas perdidas. Sangra também por mazelas mais qualificadas. Gastamos tinta e filme para esmiuçar o drama da violência nas favelas, de Cidade de Deus a Tropa de Elite. Falta o enredo dos outros grotões, a barbárie dos abastados. A iconografia já existe. Uma mancha de sangue no calçadão famoso, os destroços do carro importado, uma camisa de grife furada de bala, os melhores sobrenomes em folhas corridas. Tudo ao batidão de funk e tecno, estilizados em boates de luxo. Um South Side Story, digamos, espetáculo que no Rio está em cartaz de segunda a segunda.
O problema não é só do Rio, nem exclusivo das boates. No Brasil, andar de carro já é do reino de um público privilegiado. Mas basta passar algumas horas em algumas das metrópoles ou estradas do País - onde acostamento vira pista de velocidade e sinal fechado é só para otário - para que a fé nos diplomados seja abalada. É o promotor da Justiça de Sorocaba que, com pé na tábua e bebida na veia, no ano passado, perdeu o controle do veículo quando ia na contramão, bateu de frente numa motocicleta, matando três pessoas, e saiu, cambaleante e com cerveja na mão, perguntando o que acontecera. Recusou-se a fazer o teste do bafômetro e não foi preso porque pertencia ao Ministério Público, um foro diferenciado. Ou são os cinco adolescentes que, em 2006, ao deixar outra boate carioca, a bordo de um Honda Civic emprestado, espatifaram-se contra uma árvore na Lagoa Rodrigo de Freitas, morrendo todos.
No Rio, os endereços grã-finos têm sua parcela de culpa. Segundo Raphael Marzano, um dos coordenadores da Noite Legal, uma campanha para civilizar a noite carioca, a superlotação e filas no caixa de madrugada não ajudam. (Algumas boates nem saída de emergência tinham quando a campanha começou.) Mas o combustível maior parece ser bem mais banal - e inebriante: a mesada farta e o resgate garantido com uma chamada de celular ("É muita carteirada de filhinhos de papai", diz Marzano). E o ócio.
Quando garoto, e lá se vai tempo, eu tinha duas metas primordiais. Como qualquer americano, queria comprar um carro usado, o que era o equivalente a criar asa. A segunda meta era arranjar emprego. Trabalhei limpando laboratórios e lavando louça. Nada demais, normalíssimo. Pelo menos eu pagava a gasolina e minhas noitadas. Todo mundo fazia igual. A gente aprontava, e feio às vezes, mas sabia que no dia seguinte tinha de madrugar para estar no batente.
Não tenho dados para dizer o que faz a clientela da Baronneti à luz do dia. Mas quem torra madrugadas adentro na boate - "as melhores festas acontecem no meio da semana", segundo Marzano - e entrega as chaves do BMW ao manobrista dificilmente precisa se preocupar com a conta ou o despertador no dia seguinte.
Em Rebelde sem Causa, James Dean era um forasteiro perseguido pelos valentões de plantão numa cidade mediana onde se resolviam as diferenças no braço (ou, no caso, ao volante). O embate no Brasil é entre os afortunados, os rebeldes sem parâmetros. Se os EUA têm os serial killers, o Brasil produz os camicases do ócio. É um problema qualificado.
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