Um padre e um médico favorável ao debate sobre a despenalização da eutanásia são os autores do texto sobre o qual se fundamentará a futura lei andaluza sobre a morte digna. “Não tivemos nenhuma divergência”, garantem. Francisco Alarcos e Pablo Simón são membros do Comitê de Ética da Andaluzia.
Segue a íntegra da entrevista que ambos concederam ao El País, 29-06-2008. A tradução é do Cepat.
A Andaluzia começou esta semana a debater os conteúdos de sua futura Lei de Dignidade diante do Processo da Morte, uma norma que fixará os direitos dos pacientes e que dará respaldo ao trabalho dos médicos nas sedações terminais, na retirada de máquinas que mantém o enfermo com vida, como a máquina de respiração artificial, e a recusa de tratamento por parte de pacientes sem possibilidades de cura.
O rascunho da lei estará pronto depois do verão, mas as bases das quais sairá serão recolhidos do texto Ética e Morte Digna, documento encomendado pela Conselheria andaluza de Saúde a dois membros de seu Comitê de Ética e Pesquisa: Francisco Alarcos, padre numa paróquia de Guadix, doutor em Teologia e especialista em Bioética; e Pablo Simón, doutor em Medicina, membro do Comitê Nacional de Ética e defensor de que se vá dando passos rumo à despenalização da eutanásia. Mas ainda não chegou “o momento” de abrir esse debate na Espanha, reconhece.
O padre Alarcos (“sem ordem, padre de paróquia”) sustenta que a Igreja é a mais firme defensora do “bem morrer”, por isso não encontrou “nenhuma diferença” com Simón para redigir o texto. Vaticinam que a hierarquia da Igreja católica também não encontrará pontos de discordância com a lei em que eles estão trabalhando.
Como se concilia a postura de um padre com a de um defensor do avanço para a despenalização da eutanásia?
Alarcos – Não tivemos nenhuma discordância. O texto que redigimos trata de estabelecer consenso majoritários desde diferentes posições. A cultura católica, neste tema em concreto, tem um consenso bastante amplo.
Simón – Se esta lei fosse colocada em termos de eutanásia, não haveria consenso. A sorte desta lei é que propicia o consenso entre uma ética civil ou laica, que é minha posição, e uma moral cristão-católica, que é a de Paco [Francisco Alarcos].
É necessário legislar sobre a morte digna?
Simón – É uma lei necessária porque ajuda os profissionais e os cidadãos a esclarecer cenários em que poderia haver confusão. Há certa predisposição a identificar isto com eutanásia e nos parece um erro e, muitas vezes, uma manipulação. Esta não é uma lei de eutanásia. Aquele que a chamar com esse termo não sabe do que está falando.
Alarcos – Também é uma virtude pôr de manifesto que há um amplo consenso nestes temas, que, quando são clareados, a maioria dos cidadãos tem um marco claro do que entende que é viver e morrer como seres humanos, como pessoas que têm dignidade.
Portanto, hoje o direito de morrer dignamente não está garantido?
Alarcos – Não há uma lei que regule essa matéria, ainda que haja boa práxis sanitária. A maioria das pessoas morre dignamente: rodeada de um entorno afetivo e com seu sofrimento físico e espiritual aliviado. O que acontece é que formular a dignidade e baixá-lo aos direitos concretos é inovador, mas não é que até hoje não se tenha morrido dignamente.
Simón – Sim, há garantia de morte digna, mas as práticas estão muito dispersas e esta lei as coloca numa linguagem de direitos para os pacientes e deveres para os profissionais e autoridades sanitárias.
Você teria preferido que se abordasse a eutanásia?
Simón – É um debate que a sociedade espanhola em algum momento tem que fazer. Esta lei facilita que posteriormente, se a sociedade o quiser, a tenhamos. A lei é adequada e necessária para este momento.
Quando os dirigentes da Igreja a proposta de vocês, terão argumentos para se oporem?
Alarcos – Os dirigentes da Igreja católica, e em concreto algumas declarações do cardeal Amigo, não contradizem a posição da Igreja. E Amigo em nenhum momento questionou os termos do texto. Disse que não considera esta lei prioritária porque há outros temas que são de maior urgência. E nisto estaria de acordo. Por exemplo, a assistência de qualidade é uma urgência social de primeira linha. Creio que o cardeal quer dizer que é preciso redobrar os esforços para oferecer um serviço de qualidade que permita viver a doença e, em caso de morte, num marco de excelência.
Amigo disse que a lei é “um entretenimento indigno”.
Alarcos – Tem perfeito direito de dizer que deveria ser necessário entreter-se tanto com isso e mais em que não haja três pacientes por quarto em alguns hospitais, mas apenas um. A reflexão que Amigo faz é pertinente. Sua sensibilidade franciscana o faz cuidar especialmente da vida.
Você qualificaria a lei em que está trabalhando como um entretenimento indigno?
Alarcos – Não. Mas o tema é que sua apreciação ao chamar este assunto de entretenimento é chamar a atenção para outros temas importantes.
Simón – Eu não tenho a menor dúvida de que quando Amigo e outros membros da hierarquia lerem o texto vão se dar conta de que não contradiz nenhum postulado da doutrina oficial.
Essa lei passaria pelo filtro do Vaticano?
Alarcos – Claro que sim. A norma tem um marco de argumentação e reflexão que não tem dificuldade em ser assumido.
O caso de Immaculada Echevarría [a mulher que pediu em público que lhe retirassem o respirador artificial e demorou seis meses para consegui-lo] corresponde a um suposto que a lei regulará, e a Igreja se opôs à sua solicitação.
Alarcos – Isso tem seus matizes. Esse caso foi resolvido e não houve um posicionamento oficial contrário da Conferência Episcopal.
Simón – É muito importante. Não houve pronunciamento oficial, apenas opiniões de alguns bispos.
Estava internada num hospital religioso e teve que ser transferida para um hospital público para morrer.
Alarcos – O que os cristãos fizeram durante 2000 anos é acompanhar para bem morrer. O que acontece é que vivemos um salto qualitativo. Acompanhar para bem morrer há 80 anos, no caso de Echevarría, não teria tido nenhuma dificuldade. Mas incorporamos uma alta tecnologia de suporte vital que nos coloca outros problemas. Aqui é onde surge a necessidade de repensar a forma de acompanhamento para bem morrer. O mais humano do humano e o mais cristão do cristão é evitar que alguém morra como um cachorro.
A lei simplificará casos como o de Echevarría para evitar que se convertam num drama público?
Alarcos – Creio que levar ao âmbito midiático questões tão íntimas como a morte de Echevarría é profundamente imoral.
Naquele caso quem procurou a mídia foi ela, convencida de que, caso contrário, nunca resolveria seu problema.
Alarcos – Começou pedindo eutanásia e logo descobrimos que não era isso. É verdade que foi ela que procurou a mídia, mas sabendo que há uma resposta imediata ao termo eutanásia porque gera doença.
Simón – Aquele caso foi resolvido com a lei de autonomia do paciente e não necessitou de um marco novo. Para isso será útil a lei, que contextualiza práticas numa formulação jurídica que já existe. Esse caso foi importantíssimo e é preciso agradecer a Immaculada por sua valentia em levá-lo ao foro público. Sacrificando sua privacidade nos permitiu debater o tema.
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