Ainda que o Brasil recente tenha dado passos significativos em termos econômicos e sociais, “a estrutura fundiária ainda guarda alguma relação com 1850: os novos-ricos da financeirização se integram no neoagrarismo pouco produtivo”. A afirmação é de Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Segue a íntegra do seu artigo publicado no jornal Valor, 10-07-2008.
O movimento republicano do final do Século XIX constituiu-se travestido na vontade de transformar profundamente o Brasil arcaico. Para isso trouxe consigo as sementes reformistas que se orientavam à alteração profunda da estrutura socioeconômica nacional herdada do antigo Império.
Na visão de Rui Barbosa, por exemplo, a superação do agrarismo anacrônico de então deveria ser acompanhada da desfeudalização da propriedade. Assim, a alteração da estrutura fundiária pressuporia a difusão de inúmeros produtores rurais, capaz de conformar uma nova e ampla base social necessária à sustentação da nova política republicana.
Da mesma forma, Joaquim Nabuco defendia ardentemente a realização de reformas coincidentes com a própria abolição da escravatura, o que permitiria a construção de uma nova e moderna ordem social no Brasil. Seu objetivo principal era a reorganização das bases de valorização do trabalho nacional necessário à consolidação da civilização brasileira assentada na ascensão dos miseráveis e ex-escravos à condição de operários no país democrático e industrial.
Por fim, em conformidade com Manuel Bonfim, o Brasil republicano deveria passar pela implementação de uma profunda reforma tributária, compatível com o fim da iniqüidade que fazia com que os pobres e os desfavorecidos concorressem com maior parte das rendas públicas arrecadadas. Uma democracia dificilmente seria plena sem a adoção majoritária do imposto progressivo ao recurso de cada contribuinte, bem como sem o seu emprego no custeio dos serviços públicos de interesse geral.
Neste começo do Século XXI, o Brasil diferencia-se muito daquele do final do Século XIX. Abandonou o primitivismo da estratificação social - que assegurava somente 10% da população alfabetizada e menos de 5% da população adulta participante do processo eleitoral -, bem como se situa entre as 10 maiores economias do mundo, com modernos setores produtivos identificados pelo agronegócio, petróleo, aviação, siderurgia, entre outros.
A despeito disso, a estrutura fundiária ainda guarda alguma relação como o elevado grau de concentração já expresso em 1850, quando da introdução da Lei das Terras. Com o atual avanço da internacionalização das terras, o Brasil parece redescobrir o seu passado, permitindo integrar novos ricos da financeirização em ascensão com o neoagrarismo pouco produtivo.
Também em relação ao processo de integração social percebe-se a distância que continua a separar a população branca, seja pela significativa diferenciação salarial, ocupacional, de bem-estar especialmente, do segmento não-branco. À margem da reforma social perseguida ainda no Século XIX, o Brasil do início do Século XXI não consegue construir plenamente uma ordem social moderna. A estratificação social atual indica o quanto prepondera o peso de uma elite branca a desfrutar dos principais postos de direção e remuneração, após trajetória educacional dificilmente acessível aos não-brancos.
No plano tributário, os avanços se mostraram pouco efetivos, sobretudo quando se considera que no país o imposto continua a ser cobrado proporcionalmente mais dos pobres. Em 1907, por exemplo, quase três quartos do total da arrecadação provinha dos tributos indiretos, que recaem proporcionalmente mais sobre a população de baixa renda. No Brasil do início do século XXI, o pobre continua a pagar quase 50% a mais de impostos que os ricos, uma vez que dois terços da arrecadação continua a derivar da tributação indireta.
Em 2006, por exemplo, os 10% mais pobres do país, com rendimento médio mensal de R$ 73, pagaram na forma de tributos quase 33% do total da renda. Já os 10% mais ricos do país, com renda média de quase R$ 4 mil mensais, contribuíram com menos de 23% do rendimento total com o sistema tributário.
Por conta disso, estima-se que a desigualdade entre o rendimento médio bruto dos 10% mais ricos e o dos 10% mais pobres chegou a 54 vezes em 2006. Já a desigualdade entre o rendimento médio líquido (após o efeito da tributação) dos 10% mais ricos e o dos 10% mais pobres alcançou a 80,5 vezes. No mesmo ano, o aumento da desigualdade entre os rendimentos médios (bruto e líquido) nos extremos da distribuição pessoal da renda no Brasil foi de 49,1%, o que indica o avanço do papel regressivo do sistema tributário nacional. Isso se torna ainda mais evidente quando se compara a evolução do grau de desigualdade entre o rendimento médio bruto e líquido dos 10% mais ricos e o dos 10% mais pobres ao longo dos anos. No ano de 1996, por exemplo, a desigualdade entre os rendimentos médios brutos dos dois decis extremos foi de 40,5 vezes (rendimento médio bruto) e de 42,9 vezes (rendimento médio líquido).
O aumento na desigualdade de renda ocasionada pelo sistema tributário no Brasil tem forte impulso a partir da elevação da carga tributária desde a década de 1990. A prevalência da iniqüidade no interior do sistema tributário pode ser alterada profundamente pelo Congresso Nacional. Essa oportunidade permitiria romper com a inércia secular que move a orientação tributária: cobrar mais de quem menos tem.
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