Conceitualmente, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) pode ser apontado como o fundador da modernidade e, consequentemente, da autonomia do sujeito, ao utilizar seu princípio da dúvida metódica e submeter tudo ao exame impiedoso da razão. “Este princípio, de aplicação universal, propugna a refundação de todo saber por meio do aval da certeza subjetiva. Isso abarca tanto a refundação das ciências quanto a refundação das normas que regem as escolhas do sujeito individual. Deste modo, tanto as ciências quanto a moral entram em um novo paradigma”, menciona o psicanalista e filósofo Mário Fleig na abertura da edição 86 dos Cadernos IHU Idéias, intitulado Autonomia na pós-modernidade: um delírio?
Fleig continua seu raciocínio avaliando que, no campo da refundação da moral, “vemos que a autonomia da vontade se relaciona com a noção de emancipação, ou seja, recusa qualquer lei que venha do outro e que não tenha passado pelo exame da razão. Trata-se, então, da radical recusa de um outro que não seja o próprio eu, ou o próprio homem ou a própria razão. A autonomia da vontade, como se vê, entra em choque como o modelo tradicional de fundamentação das normas morais. Assim, autonomia passa a significar repúdio de qualquer ordenamento heterônomo, como a lei sagrada e transcendente, imposta a partir de um Outro, seja na forma da religião ou da tradição”.
Entretanto, será preciso aguardar até o século XVIII para que, através do sistema do filósofo de Könnigsberg, Immanuel Kant, a autonomia da vontade passe a significar, positivamente, “a obediência à lei que nós mesmos nos prescrevemos, ou seja, a capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno. Kant, na sua busca de uma fundamentação da moral, que não encontra na teoria aristotélica da prudência e das virtudes, transforma a noção de liberdade de seu antecessor em autonomia da vontade, no exercício da qual situa o imperativo categórico, princípio supremo da moralidade”, menciona Fleig. Assim, kantianamente falando, “a autonomia do ser humano significa a capacidade de se autogovernar e o direito de um indivíduo tomar decisões livremente, no âmbito moral e no âmbito intelectual, ou seja, a autonomia da vontade remete ao princípio segundo o qual a vontade expressa livremente por pessoa capaz, e dentro das normas legais, deve ser considerada soberana”.
Ainda que não seja o enfoque da edição 86 dos Cadernos IHU Idéias discutir a pertinência e aplicabilidade do edifício moral kantiano, Fleig questiona “aonde levaria a exacerbação do princípio de não depender de nada e de ninguém, rompendo inclusive com a idéia kantiana de autonomia como submissão a lei comum calcada na solidariedade”. A hipótese que aventa é que encontramos “na pós-modernidade a emergência de novos ideais que propugnam uma sociedade de indivíduos que reúne meros sujeitos de direitos, comandados por imperativos de gozar a qualquer preço, sem depender de ninguém e de nada e sem limites. Denominamos esse fenômeno emergente de delírio de autonomia”.
Não se trata de colocar em questão o conceito de autonomia da vontade, correlato de liberdade e, como apontado por Hegel, uma das maiores conquistas da modernidade. Fleig enfatiza que é preciso prestar atenção ao fato de que os “desdobramentos da exacerbação dos ideais de autonomia têm produzido efeitos sociais e subjetivos inquietantes, em formas que se apresentam em novos ideais configurados em modo de vida em que não haveria limites para nada, gozar a qualquer preço”. Para ele, “a autonomia alcança o limiar do delírio quando o ideal se orienta pela abolição da dimensão do impossível, ou seja, o ideal de vida perseguido pressupõe que tudo seja possível. Outro traço que caracteriza o que passou a ser denominado de pós-modernidade é, além da recusa de qualquer limite, a descrença generalizada em qualquer referência que seja transcendente ao contexto vivido. O delírio de autonomia poderia ser descrito, então, como a dissolução dos fundamentos da moral, à medida que a consistência da alteridade desaparece (o outro já não conta como uma das referências que orientariam a vontade na busca do que seria bom para o próprio sujeito em seu convívio com o semelhante), assim como a dimensão da auto-recriminação”.
Nova economia psíquica
Fleig admite a hipótese de que vivemos o advento de uma nova economia psíquica, retomando uma idéia tributária a Charles Melman. E no que consiste essa nova economia psíquica? O próprio Fleig argumenta: “Ela pode ser caracterizada como o efeito da economia neoliberal globalizada somado ao impacto subjetivo das tecnologias digitais e das transformações no campo da biológica (novas formas de sexualidade e de reprodução etc.), correlato a um progressivo declínio da dimensão do grande Outro (conforme a denominação de Lacan (1966)) e da lógica trinitária (própria da linguagem cotidiana, organizada pelas operações metafóricas de substituições e criação), e da supremacia crescente da lógica binária (sistema de informação), que determinam o deslocamento da responsabilidade centrada no sujeito para a responsabilidade atribuída aos procedimentos e enunciados sem sujeito”. Até aqui podemos captar inúmeras sutilezas perceptíveis em nossa sociedade e vivências diárias, quando o uso do computador nos outorga a capacidade de justificar ausências ou práticas que, em outras circunstâncias, não teríamos, ou a cortina burocrática que abafa o bom funcionamento do Estado e seus serviços, por exemplo.
Fleig continua: “Esta sucinta caracterização de uma nova economia psíquica, que teria como um de seus produtos a emergência de sujeitos organizados na lógica da autonomia delirante, requereria o exame dos efeitos sociais e subjetivos das grandes revoluções que marcaram a Modernidade e cuja continuidade e desdobramentos vivemos na atualidade: a revolução da ciência moderna, as revoluções sociais (revolução inglesa, revolução americana, revolução francesa, revolução russa, revolução chinesa, revolução de maio de 1968 etc.), as revoluções biológicas, as revoluções industriais, as revoluções na informação, a revolução digital etc. Poderemos apenas tomar alguns detalhes”.
Um ser humano que tudo pode?
Assustador, mas plausível em face dos rumos que nossa sociedade vem tomando, paira o espectro do ser humano como dotado de poderes ilimitados, senhor da Terra e de seu destino. Mas por que razões o sujeito se acredita capaz dessa façanha? “Uma das razões poderia ser encontrada no conjunto de fatores que determinaram o advento de uma nova economia psíquica. Hoje, a felicidade e a vida boa já não resultam mais da harmonia com o ideal de cada um partilhado socialmente, mas do objeto que possa trazer satisfação, equivalente do objeto de consumo ofertado sem limites”, esclarece Fleig.
De acordo com o filósofo e psicanalista, “A nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e determina novos deveres, dificuldades e sofrimentos. Os novos sujeitos tendem a operar no puro registro da demanda, ou seja, se há um desejo ou carência, a satisfação do mesmo se torna legítima. A demanda é então de encontrar sua satisfação, tomada como um direito, exigível a qualquer preço. A posição da autonomia tradicional, orientada por princípios que marcavam os limites, está em falta, e em seu lugar se encontra o excesso como norma”.
As conseqüências dessa postura, mais do que aterradoras, põem em xeque as noções de normalidade e limites que estabelecemos para a vida em sociedade: “A ponta nevrálgica desta cadeia emerge, em seus efeitos socialmente visíveis, nas formações paranóicas, nas alucinações tóxicas e nos surtos de violência incontida. O que ocorre é que o Outro, como referente da lei simbólica, entra em declínio e se inicia um crepúsculo do mundo, correlato da suspensão de toda imunidade psíquica, ficando o sujeito tomado em uma relação dual, com incidências mortíferas. Tais efeitos psíquicos e sociais se evidenciam no declínio das condições de enunciação, no incremento da impessoalidade (formações de massa) e em funcionamentos que pervertem as funções estruturantes da condição humana. As estes efeitos denominamos de patologias da responsabilidade, que aparecem de modo generalizado ao lado da progressiva impessoalização das relações de trocas (laços de parentesco, troca de bens e trocas lingüísticas)”.
Fleig é professor do curso de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia pela UFRGS, com a dissertação Os esquemas horizontais em Ser e Tempo, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese O tempo é a força do ser – Lógica e temporalidade em Martin Heidegger, e pós-doutor pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França, em Ética e Psicanálise. A edição 150 da IHU On-Line, de 08-08-2005, entrevistou Fleig sob o título As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Na edição 179, de 08-05-2006, Fleig concedeu a entrevista Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Na edição 185 da IHU On-Line, concedeu a entrevista O declínio da responsabilidade, antecipando assuntos que apresentou no IHU Idéias sob o título “Ah! Não vai dar nada” Patologias da responsabilidade e delírio de autonomia na pós-modernidade, apresentado em 29-06-2007 no lançamento do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Na edição 220 da IHU On-Line, de 21-05-2007, concedeu a entrevista O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral.
Os Cadernos IHU Idéias podem ser adquiridos na Livraria Cultural, no Campus da Unisinos, ou pelo endereço livrariaculturalsle@terra.com.br. A publicação pode ser acessada através do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, editoria Publicações¸ um mês após seu lançamento.
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