Hillary Clinton não é a candidata das mulheres. E Barack Obama não é o candidato dos negros. A análise de Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo, 14-02-2008. Segundo o psicanalistas, “a viabilidade da candidatura de Obama prova a boa saúde do ‘experimento americano’ (que é, entre outras coisas, o projeto de uma sociedade de imigração em que os cidadãos valem pelo que fazem, e não pelo que devem a seus antepassados)”.
Eis o artigo.
No fundo, as eleições nos Estados Unidos são o melhor seriado do momento. Volto das férias com um caderno de notas sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Escolho algumas.
1) Provavelmente, em novembro, o republicano John McCain enfrentará um dos democratas - Hillary Clinton ou Barack Obama. Segundo as pesquisas atuais, McCain/Clinton seria quase um empate, e Obama ganharia de McCain. Torço pelos democratas, mas modero meu otimismo. O racismo, o machismo e o medo do que é diferente e novo são forças que trabalham na sombra.
Muitos eleitores declaram que votarão em uma mulher ou em um negro sem problema. Mas outra coisa é o que acontece no segredo da cabine eleitoral. O discurso conservador sabe instilar temor na massa da pequena classe média branca: "Mas você quer mesmo eleger uma mulher ou um negro como presidente? Vamos deixar para outra vez?"
Funciona assim: você não tem quase nada a perder, não tem privilégio algum que valha a pena ser defendido, nada que justifique manter as coisas como estão. Mas, justamente, ao votar contra a mudança, você afirma que seu status merece ser protegido, ou seja, você se convence de que conquistou algo na vida que você não pode se arriscar a perder. O que é isso? Nada, apenas essa falsa convicção.
2) Hillary Clinton não é a candidata das mulheres. E Barack Obama não é o candidato dos negros (como foi Jesse Jackson em 1984 e 1988). Quarenta anos após o movimento pelos direitos civis, uma mulher e um negro são candidatos à presidência sem que cor ou gênero sejam estandartes - ou seja, como cidadãos numa sociedade em que cor e gênero seriam "acidentes" que não implicam uma agenda específica. Se isso é verdade, os anos 60 foram a verdadeira revolução bem-sucedida do século passado.
3) Obama, 46, é o único candidato que pertence a uma geração cuja visão do mundo não é o fruto direto nem da Guerra Fria, nem da Guerra do Vietnã, nem da contracultura. É lógico que ele tenha a simpatia da maioria dos jovens. Talvez seja por isso também que sua popularidade atravesse as fronteiras partidárias: Obama não enxerga o mundo como uma luta entre "eles" e "nós".
4) A viabilidade da candidatura de Obama prova a boa saúde do "experimento americano" (que é, entre outras coisas, o projeto de uma sociedade de imigração em que os cidadãos valem pelo que fazem, e não pelo que devem a seus antepassados). Obama é filho de um imigrante africano muçulmano e foi criado inicialmente na religião islâmica; seu segundo nome é Hussein. Alguns, pelos bares e pelas ondas de rádio do país, acham isso um disparate. Mas, para a metade dos americanos, no meio de uma guerra que é, no mínimo, apresentada como cultural, isso não constitui um empecilho. Você imagina, sei lá, os franceses elegendo como presidente, em 1939, um sujeito chamado Adolf, filho de imigrante alemão?
5) Não adianta zapear: as eleições norte-americanas são como a Copa do Mundo. Salvo que mesmo um jogo das eliminatórias, como o "caucus" de um Estado só, ganha a primeira página. É óbvio que, pelo peso geopolítico dos EUA, as eleições norte-americanas acarretam conseqüências mundiais. Mas não é só isso que desperta o interesse da torcida internacional.
Faz um século que a realidade americana parece ser matéria privilegiada de romance ou de filme (aqui está, aliás, o fundamento da dita hegemonia hollywoodiana). A razão é cultural e simples: o mito fundador do "experimento americano" é também a idéia do indivíduo que, ao tentar "fazer a América", é o único artífice de seu destino - bom ou ruim. E esse mito é uma matriz narrativa básica e inesgotável de nossa cultura.
Há os que podem contar suas vidas e os que não conseguem. Mas, de uma certa forma, o americano ideal, homem político ou mendigo perdido nas vinhas da ira, sempre vive sua vida e a conta para si mesmo como romance ou roteiro de aventuras.
As memórias de guerra de McCain serviram de roteiro para um telefilme, de 2005, que concorreu ao Emmy. Obama ganhou o Grammy de melhor álbum falado por seu livro de memórias, em 2005, e acaba de ganhar outro por seu segundo livro (neste ano, ele competia com os ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter). Hillary, verdadeira heroína do caso Lewinski, é autora de uma autobiografia de sucesso. No fundo, as eleições americanas são o melhor seriado do momento.
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