“A crise atual tem isso de extraordinário, que resulta de uma tomada de poder pelos fundamentos: ao serem invocados incessantemente, os direitos humanos acabam por paralisar a democracia. Se a democracia pode ser definida como o poder de uma coletividade de se autogovernar, a sacralização das liberdades dos membros desta coletividade tem por efeito esvaziar esse poder de sua substância”, afirma o filósofo francês Marcel Gauchet. Para ele, os anos 90 significaram “a entrada das massas na política, a questão social, a reivindicação de tirar todas as conseqüências do sufrágio universal. Nos anos 2000, ao contrário, o problema é o triunfo dos direitos individuais e o eclipse dos coletivos”.
Segue a entrevista que Marcel Gauchet concedeu a Éric Aeschimann. Libération, 16-2-08. A tradução é do Cepat.
Você parece compartilhar da constatação de Zizek de uma crise da democracia em geral e de seus fundamentos jurídicos em particular: os direitos humanos.
Sim, há uma crise da democracia, uma crise profunda. Mas, contrariamente a Slavoj Zizek, eu não falaria de uma crise dos fundamentos da democracia que são os direitos humanos. Pelo contrário, estes se comportam como se estivessem em vias de colocar em perigo aquilo de que se supõem que sejam o alicerce. É o acesso interrompido e generalizado dos direitos individuais que desestabiliza o edifício. A crise atual tem isso de extraordinário, que resulta de uma tomada de poder pelos fundamentos: ao serem invocados incessantemente, os direitos humanos acabam por paralisar a democracia. Se a democracia pode ser definida como o poder de uma coletividade de se autogovernar, a sacralização das liberdades dos membros desta coletividade tem por efeito esvaziar esse poder de sua substância.
É uma crise sem precedentes?
Podemos compará-la à crise que as democracias parlamentares européias conheceram no começo do século XX e que verdadeiramente só foram reabsorvidas com o fim da Segunda Guerra Mundial. Essas duas crises têm em comum uma forte afirmação dos princípios democráticos. É por isso que falo de “crise de crescimento”. Mas, nos anos 1900, a ordem do dia é a entrada das massas na política, a questão social, a reivindicação de tirar todas as conseqüências do sufrágio universal. Nos anos 2000, ao contrário, o problema é o triunfo dos direitos individuais e o eclipse dos coletivos, quer se trate das massas, das classes ou das nações.
Tem-se a impressão de que, para você, a democracia é o horizonte intransponível da humanidade.
A democracia não é talvez o horizonte intransponível da humanidade – o que seria bem pretensioso de dizer –, mas é certamente a seqüência histórica à qual pertencemos. O trabalho democrático em obra em nossas sociedades vem de muito longe, inscreve-se num processo extremamente poderoso, realizado ao longo pelo menos dos últimos cinco séculos. Prossegue a saída da religião, que constitui o centro desta revolução moderna. Eu não vejo o que estaria em condições de introduzir uma nova direção. Eu diria inclusive que as coisas se clarearam. Há quarenta anos – no Maio de 68 – podíamos razoavelmente se perguntar se o horizonte do mundo era o socialismo (democrático ou não) ou a democracia (social ou não). A marcha dos acontecimentos nos trouxe a resposta: é a democracia. Hoje, o desafio é inscrever o socialismo (eu emprego o termo “socialismo” no seu sentido filosófico) na democracia, não o contrário.
Alguns vêem na reabilitação da violência revolucionária por parte de Zizek ou no sucesso de Alain Badiou que defende “a hipótese comunista” uma ameaça para a democracia. Você concorda com essa análise?
Eu não vivo com medo, porque, não só a era dos totalitarismos me parece que ficou atrás de nós, mas essas proposições me parecem, sobretudo, como tragicamente irreais. Elas testemunham a decomposição da inteligência política da extrema esquerda. Me parece que só tem a esconder posturas simplistas e narcisistas de radicalidade que não são caras, uma vez que estão no vazio. Eu suponho que, psicologicamente, elas fazem bem àqueles que se reúnem em torno dessas propostas, mas, politicamente, não pesam nada, não incomodam ninguém e, sobretudo, o poder que elas são chamadas a desafiar. Poderíamos inclusive dizer que uma parte desse sucesso tende a se inscrever perfeitamente na estratégia de comunicação de Sarkozy: promoção da extrema esquerda, com Besancenot todas as noites na televisão. O objetivo é que se possa dizer: “entre a extrema esquerda e nós, não há nada”.
Entretanto, o debate sobre a democracia está completamente aberto.
Tanto melhor! Podemos facilmente nos entender sobre a constatação inicial: a crise da democracia é uma crise de impotência. Com relação a isso, a análise de Zizek é clássica: é culpa do capitalismo. Minha explicação é diferente. O reino do neoliberalismo não é a causa, mas o efeito de uma transformação mais profunda em que a exploração dos direitos individuais é a manifestação central. O modelo de mercado deve seu peso crescente à fragmentação generalizada dos atores. Assim, invadiu também a política. O problema, nessas condições não é o de abolir o capitalismo (como?), mas de encontrar tomadas sobre a sociedade assim como é em seu conjunto, para além da economia. Tomemos a Educação nacional: não é a mundialização que é responsável por suas dificuldades. Sua solução está ao nosso alcance, no âmbito nacional. Ainda é preciso dar-se o trabalho de analisá-lo.
As democracias nasceram de revoluções. Por que não podemos falar de revolução hoje?
Quem seria o agente político? Entre a burguesia e a nobreza, o enfrentamento era claro. Entre os proletários e os capitalistas também. Hoje, a idéia de revolução é uma petição de princípio que não encontra enraizamento social. Eu li muito Marx e ainda o leio – e o ensino. O que ele me ensinou é que uma “hipótese”, para retomar a palavra de Alain Badiou, só tem interesse se ela tem os meios de sua realização. Brandir a palavra comunismo como uma espécie de superego sem base é fazer barulho com a boca para impressionar tolos.
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