O octogenário sociólogo polonês Zygmunt Bauman vive perguntando aos jornalistas se leram o Livro de Jó. Compreensível. Fica bem melhor ler seu mais recente livro, Medo Líquido, se o candidato conhecer o sofrimento do personagem bíblico: Jó era bom e, no entanto, foi punido severamente por Deus. Por quê? Foi também a pergunta daqueles que sobreviveram ao terremoto de Lisboa, em 1755. De repente, a razão iluminista recusou-se a admitir o “ato de Deus” e tudo mudou. Veio a modernidade e com ela o processo de secularização. Depois, o 11 de setembro e, de novo, o medo e a pergunta que não quer calar. O mal, diz Bauman em entrevista ao jornalista Antonio Gonçalves Filho e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2008,, é que só conseguimos dirigir um olhar retrospectivo para as catástrofes. Para enfrentar o “medo líquido” que assola o mundo globalizado, o sociólogo sugere uma mudança radical em nosso comportamento.
O medo e o mal são irmãos siameses, segundo seu livro. Parece que o senhor concorda com Primo Levi quando ele diz que todos nós podemos ser a encarnação do mal. Não se pode esquecer que Bush justificou a invasão do Iraque como uma “guerra contra o mal” e que o ódio do Islã contra o Ocidente é também uma “guerra santa” contra o que os fundamentalistas consideram o mal absoluto. Em que medida essas visões são diferentes?
Fundamentalistas, sejam nascidos no Ocidente ou no Oriente, são divisionistas por definição. Todo fundamentalista concorda com seu inimigo em um ponto: “É o que acredito - e apenas o que eu acredito - o absolutamente certo; todas as outras crenças estão absolutamente erradas.” Os fundamentalistas pertencem à categoria dos que pensam em soluções locais para problemas globais. Ora, problemas globais só podem ser resolvidos de forma global. As soluções exigem tempo, muito tempo, embora nem tanto como em séculos passados. Não conseguimos nem mesmo assumir a tarefa de construir uma rede de instituições globais. Temos um longo caminho montanha acima. Vamos torcer para chegarmos ao topo, porque a outra opção é aterrorizadora.
Eis a entrevista.
O escritor espanhol Juan Goytisolo e o Livro de Jó são mencionados em seu livro. Eles expressam melhor que outros autores e livros o dilema da sociedade pós-moderna, ou “líquida”, como o senhor prefere?
A conclusão a que cheguei, ao tentar entender a ansiedade dos contemporâneos, é a seguinte: o que faz nossos medos particularmente dolorosos, insuportáveis, é a falta de clareza sobre as suas causas. Em outras palavras, o que nos faz sofrer mais do que qualquer outra coisa, envenenando nossos prazeres cotidianos e provocando pesadelos, é a própria incerteza, tanto sobre a condição humana como sobre nossa ignorância. É uma verdade antiga, contida no Livro de Jó e esquecida: ainda que houvesse razões sensíveis para as catástrofes que se abatem sobre nós, seríamos incapazes de compreendê-las, a despeito de nossa sabedoria e lógica. Goytisolo nota que o nosso conhecimento do mal se dá apenas quando olhamos para trás, retrospectivamente. É uma observação aguda a sua, referendada pela quase imperceptível erosão de nossos direitos e liberdades individuais nos tempos que correm. O processo todo só pode ser entendido em retrospecto, quando é tarde demais para restaurar aquilo que está perdido. Nos países que se consideram democráticos as pessoas já se renderam sem resistência: admite-se que “suspeitos” sejam seguidos pela polícia ou mantidos presos sem julgamento, ou ainda que sejam deportados sem provas legais - apenas como “medida de segurança”. A maioria das pessoas aceita essas arbitrariedades, seguras de que atingem apenas uma minoria. Mas o fato é que, desrespeitados os direitos humanos, não há como impedir a avalanche que vem por aí.
O senhor diz que os orientadores de futuros homens-bomba são intelectuais que se aproveitam da ignorância do próximo, mas encerra o livro com esperança numa possível aliança entre intelectuais e pessoas do povo. Esse otimismo é justificável?
Intelectuais são, por definição, seres engajados em criar e difundir cultura. No século 18, o termo cultura era entendido como um esforço para promover, facilitar e acelerar o progresso, social e espiritual. A cultura, assim, entrou para o vocabulário moderno como uma declaração de intenções - de educar, iluminar, melhorar e enobrecer as pessoas do povo, recém-elevadas à categoria de cidadãos do Estado-nação: era, enfim, o casamento da nação emergente, auto-elevada à condição de Estado soberano, com o Estado emergente, que clamava pelo papel de guardião da nação. O projeto do Iluminismo alocou à cultura (entendida como trabalho de cultivo) o status de principal ferramenta na criação do Estado-nação; simultaneamente, elegeu a classe instruída como agente dessa operação. Nesse trânsito entre ambição política e ruminações filosóficas, os dois objetivos do projeto iluminista (explicitamente proclamados ou tacitamente presumidos) cristalizaram-se como disciplina dos súditos do Estado e a solidariedade dos cidadãos. O Estado-nação emergente sentiu-se, então, encorajado pelo crescimento rápido de potenciais trabalhadores-soldados, vistos como propulsores do crescimento de seu poder diferencial. Contudo, os esforços para a construção do Estado-nação, conjugados com o progresso econômico, resultaram no crescimento de “redundantes” (parte da população que precisava ser urgentemente descartada até segunda ordem). O novo Estado-nação foi logo pressionado a buscar espaços fora de suas fronteiras para acomodar esse excesso de pessoas e produtos, incapazes de serem “absorvidos”. A sociedade de hoje é o resultado disso, uma sociedade de consumidores e, como todo o resto, a cultura virou um produto como outro qualquer. A transformação gradual da idéia de cultura, do conceito original iluminista à sua reencarnação líquida, é operada pelas mesmas forças que promovem a emancipação dos mercados das limitações remanescentes de natureza não-econômica - restrições sociais, políticas e éticas, entre outras. Enfim, a cultura ‘líquida’ moderna não tem pessoas para cultivar, mas clientes para seduzir.
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