Atualizado em 14 de julho de 2008 às 10:54 | Publicado em 14 de julho de 2008 às 10:48
-- Alô!
-- Consultório...
-- É do consultório do doutor Terra?
-- Sim.
-- Ele está?
-- Deu uma saidinha; volta mais tarde.
-- Os doutores Nery e Bagatin também são daí?
-- Sim.
-- Me deram esse telefone como sendo da junta médica da Eternit... É isso mesmo?
-- Sim.
-- Seria possível marcar consulta com um deles?
-- Marcar consulta é em outro telefone. Fala lá com a Marina...
-- Mas, se a pessoa for até aí, será que eles atenderiam?
-- Não, não. Aqui, é de outro jeito.
-- É só com encaminhamento da Eternit?
-- Sim.
-- Por favor, qual o seu nome?
-- Paula.
-- Eu digo à Marina que você, Paula, foi que indicou?
-- Sim.
-- Qual o endereço daí?
-- Por que você quer saber?
O consultório é dos médicos Mario Terra Filho, Ericson Bagatin e Luiz Eduardo Nery. A secretária eletrônica informa: CDDR -- Centro de Diagnóstico de Doenças Respiratórias. Fica a uns 200 metros do complexo do Hospital São Paulo/Universidade Federal de São Paulo (HSP/Unifesp). É à rua Borges Lagoa, Vila Clementino, zona Sul de São Paulo. O visitante só sobe depois de apresentar aos funcionários da recepção do edifício documento de identidade e passar por identificador biométrico, onde deixa suas impressões digitais. Os recepcionistas têm na ponta da língua: a junta médica da Eternit fica no 81 e 82; os doutores Terra, Bagatin e Nery são de lá, sim; o doutor. Terra só aparece às sextas-feiras.
Os três têm outro ponto em comum. “Pesquisa feita por professores da Unicamp, USP e Unifesp comprovou que não existe no Brasil nenhum registro de qualquer tipo de doença relacionada ao amianto, ou asbesto, entre trabalhadores admitidos após 1980”, afirma Marina Júlia de Aquino, presidente do Instituto Brasileiro do Crisotila. O objetivo principal do IBC é fazer lobby a favor dos interesses da indústria do amianto branco, ou crisotila.
Élio Martins, presidente do Grupo Eternit, o maior do País na área de amianto, apoiado na mesma pesquisa, reafirma: “Desde 1980, quando começamos a trabalhar só com a crisotila e adotamos várias medidas de segurança, não temos nenhum trabalhador doente em nossas fábricas nem em nossa mineradora”.
Ericson Bagatin, professor de saúde ocupacional da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o coordenador da pesquisa mencionada. Ele argumenta: “Nós avaliamos 4.200 ex-empregados e trabalhadores que, de 1940 a 1996, trabalharam na mineração e foram expostos ao amianto. No grupo que começou após 1980, quando as indústrias implementaram medidas coletivas de proteção, todos foram examinados e não observamos nenhum tipo de doença relacionada ao asbesto”. Mário Terra Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e chefe do Ambulatório de Pneumologia Ocupacional do Instituto do Coração, o Incor –SP, e Luiz Eduardo Nery, professor de Pneumologia da Unifesp, também participam da pesquisa.
“Essa é a propaganda utilizada pelo lobby do amianto, mas sabemos que é falaciosa”, rebate Eliezer João de Souza, presidente da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). “Nós temos conhecimento de trabalhadores que iniciaram suas atividades depois de 1980 e adoeceram por causa do amianto; há óbitos, inclusive.”
MANOEL: MÉDICOS DA PESQUISA DISSERAM QUE NÃO TINHA NADA
Manoel de Souza e Silva Júnior, 64 anos, é casado com dona Maria Lúcia, tem seis filhos (cinco mulheres e um homem), 16 netos e 1 bisneta. Reside atualmente em Goiânia. De agosto de 1982 a novembro de 1996, trabalhou na SAMA, a mineradora do Grupo Eternit, que fica em Minaçu, norte do estado de Goiás.
Manoel, em dezembro de 2007, com dona Maria Lúcia, a filha Lucinha, a neta Bruna e a bisneta Iara
Manoel, no início de junho de 2008
O “Português”, seu apelido entre os amigos, era mecânico de manutenção de máquina perfuratriz. Periodicamente, como recomenda Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para ex-empregados do setor de amianto, fazia avaliação específica de saúde. Ela inclui exame clínico e exames complementares, como radiografia de tórax, tomografia de pulmão e espirometria, ou prova de função pulmonar, que avalia a capacidade respiratória e possíveis limitações associadas.
“Esses exames são feitos em clínicas indicadas pela própria SAMA, em Goiânia, e enviados à junta médica, para fazer o laudo”, conta a filha Lúcia de Souza e Silva Marques, 41 anos, a Lucinha, pedagoga e professora de arte. “Depois, o laudo é mandado para o médico da SAMA que, aí, nos entrega. Todas as imagens dos exames ficam com a empresa. A gente nunca tem acesso a elas nem ao prontuário médico.”
Em maio de 2005, Manoel fez a sua avaliação periódica de saúde. O laudo, datado de 24 de junho de 2005, concluiu que Manoel não tinha alteração pleuro-pulmonar relacionada à exposição ao asbesto. É assinado por cinco médicos de São Paulo: Mário Terra Filho, Luiz Eduardo Nery, Ericson Bagatin, Reynaldo Tavares Rodrigues e Jorge Issamu Kawakama (já falecido). Os três primeiros formam a junta médica do Grupo Eternit, do qual a SAMA faz parte. São também os professores que assinam a pesquisa pela Unicamp, USP e Unifesp, citada pela presidente do IBC e pelo presidente do conglomerado Eternit S/A.
OUTRO MÉDICO DETECTA NÓDULOS EM PULMÃO E RIM; ERAM MALIGNOS
No início de 2006, seis, sete meses após a avaliação acima, Manoel consultou-se com um cardiologista de sua confiança. Ele já era hipertenso e cardiopata. “Como meu pai fumou a vida inteira e havia trabalhado com amianto, o médico solicitou vários testes, entre os quais radiografia de tórax”, prossegue Lucinha. “A radiografia detectou um nódulo no pulmão. Tomografia de abdômen descobriu também nódulos nos rins. Meu pai estava com câncer em pulmão e rim direitos e no mediastino [espaço que fica entre coração, pulmões, coluna vertebral e grandes vasos sangüíneos existentes no tórax]”.
O caso chegou à SAMA. Mais precisamente a Eduardo Andrade Ribeiro, ginecologista e médico do trabalho da empresa, e a Milton do Nascimento, gerente de Saúde Ocupacional do Grupo Eternit. Rapidamente a empresa, num ato de “liberalidade” (é um termo que gostam muito de usar), prontificou-se a custear todo o tratamento. Manoel veio para São Paulo com a esposa e Lucinha. Em julho de 2006, fez a cirurgia do pulmão; tirou parte dele. Após aproximadamente 20 dias, operou também o rim. Todas as despesas das duas cirurgias e da hospedagem da família em São Paulo foram custeadas pela SAMA.
Material do tumor do pulmão foi enviado aos Estados Unidos para exames. No início de 2007, a família recebeu o resultado. “O médico da SAMA nos disse que não havia nada relacionado ao amianto”, relembra a filha. “Inicialmente, ficamos aliviados. Se não era o amianto, o nosso maior temor, e a cirurgia havia retirado os tumores, por que nos preocupar? Mal sabíamos que estávamos enganados e sendo enganados.”
Assina o exame o patologista Victor L. Roggli, do Duke University Medical Center, Durham, Carolina do Norte. O laudo, datado de 5 de outubro de 2006, é endereçado à médica Vera Luiza Capelozzi, professora da Faculdade de Medicina da USP. A tradução para o português foi realizada em 14 de novembro de 2006 pelo tradutor público João Carlos Aguiar Gay.
USP: AMIANTO ASSOCIADO AO FUMO CAUSOU TUMOR EM MANOEL
É mais do que sabido que, no longo prazo, o amianto promove alterações nas células, causando câncer de pulmão. A pessoa exposta ao amianto e, ao mesmo tempo, fumante tem 57 vezes mais probabilidade de ter esse tumor maligno do que quem não está nessas duas situações. É que o amianto e o tabaco têm efeito sinérgico: um potencializa o malefício do outro. O senhor Manoel manteve contato com esses dois fatores de risco importantes para o câncer de pulmão.
Ele só piorava. Mesmo assim, a SAMA parou de custear o tratamento. Foi quando amigos alertaram sobre a possibilidade de o exame feito nos Estados Unidos não ser totalmente confiável. A família resolveu então refazer os testes. A reavaliação foi no próprio Incor de São Paulo no início de 2008. O senhor Manoel e Cláudia, outra filha, vieram para a capital paulista com despesas, agora, totalmente custeadas pela família.
A conclusão pôs abaixo a versão oficial de que após 1980 nenhum trabalhador havia adoecido. O relatório tem cinco páginas. É assinado pelo médico Ubiratan de Paula Santos, também da disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da USP, como Mario Terra Filho.
“Meu pai grita de dor, está à base de morfina; tem metástases em ossos, cabeça, fígado; os dois rins estão tomados pelo câncer, somente um funciona”, afirma Lucinha. Dona Maria Lúcia revolta-se: “Esses médicos são uns assassinos! Que junta médica é essa que vê o problema e finge que não vê? É criminoso!”
Fernanda Giannasi, engenheira de segurança do trabalho e auditora fiscal do MTE denuncia: “Não existem casos de doenças entre trabalhadores que começaram depois de 1980, porque as indústrias, com o beneplácito de alguns médicos, escondem a verdade”.
Maior referência no Brasil na área de amianto, Fernanda põe o dedo em outra ferida: “Como confiar em estudos em que os pesquisadores são pagos pela indústria para integrar a sua junta médica, que arbitra não só a doença associada ao amianto como a categoria que determina o valor da indenização em acordos extrajudiciais? E como confiar numa junta médica que, ao mesmo tempo, recebe da indústria para fazer pesquisa para mostrar que o amianto não faz mal à saúde e que as condições das nossas fábricas são as melhores do mundo, quando eu, como auditora fiscal do Ministério do Trabalho, posso provar que isso é mistificação?”
MESOTELIOMA = SENTENÇA DE MORTE= R$ 36.976,65
“Numa atitude pró-ativa, a companhia disponibiliza aos ex-colaboradores um acordo extrajudicial”, expõe Élio Martins. Para isso, o ex-empregado tem que passar por uma junta médica pré-determinada e se submeter a exame clínico, radiografia de tórax, tomografia de pulmão e prova de função pulmonar.
Suponhamos que se detecte placa pleural, situação que pode não dar sintomas, mas pode também acarretar falta de ar, cansaço, dores nas costas e tosse. “É um marcador de exposição ao amianto e não uma doença”, nos diz em e-mail o Grupo Eternit. “Mas, por liberalidade, o ex-colaborador recebe um plano de saúde vitalício.”
Uma asbestose leve corresponde a uma indenização de R$12.326,40 mais plano de saúde vitalício. A asbestose, popularmente conhecida como “pulmão de pedra”, endurece pouco a pouco esse órgão, fibrosando-o; leva lentamente à morte. Já um mesotelioma (tumor maligno de pulmão, pleura, pericárdio e peritônio) vale R$ 36.976,65! Seu diagnóstico é sentença de morte rápida. A quase totalidade vai a óbito em um ano. No dia 3 de julho, matou Aldo Vicentin, 66 anos, ex-secretário geral da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). Aldo morreu aproximadamente três meses após o diagnóstico.
“Indenização pífia. No Brasil, ainda custa muito pouco causar a morte e a incapacidade temporária ou permanente de um trabalhador”, reage Fernanda. “Condena-se a dez anos de prisão um homem por roubar uma pizza, mas não se pune exemplarmente uma companhia que explora e comercializa material cancerígeno, que é uma questão de saúde pública. É a certeza da impunidade de quem tem no bolso gente poderosa de todas as esferas da sociedade.”
“Se essa compensação financeira é justa? Bem, foi aquilo que a empresa entendeu que ela poderia fazer”, justifica Élio Martins. “Agora, se as pessoas acham que o valor é baixo ou alto é outra questão. Depende da avaliação de cada pessoa.”
ACORDO EXTRAJUDICIAL: CREDENCIAIS ACADÊMICAS “ILUDEM”
Em geral, os ex-empregados são pessoas humildes, têm baixo nível socioeconômico e pouca escolaridade. Algumas vezes é a empresa que os procura para propor o acordo extrajudicial; outras, são eles próprios que vão até ela. Em Osasco, Grande São Paulo, a Eternit mantém um escritório para atender especificamente esses casos. Sumara Ramalho é a chefe.
“Preferi fazer o acordo; ganhei uns trocados e um plano de saúde”, diz um ex-funcionário que pediu para não ser identificado. “Não quero ficar mal com a Eternit nem com o pessoal da Abrea. Acendo duas velas: uma para o diabo, outra para Deus. Eu procurei a Sumara, que me orientou tudo, inclusive onde fazer os exames. Fiz no Hospital São Paulo [da Unifesp]. Depois, conversei com o doutor Mário Terra sobre o relatório. O laudo ficou com a Eternit.”
A junta médica pré-determinada pela Eternit para o acordo extrajudicial é – atenção! – exatamente a mesma que assinou o laudo do senhor Manoel, em junho 2005, dizendo que ele não tinha nada em relação ao amianto. Pelo menos desde 1998, ela atua para o Grupo Eternit.
“Tenho uma firma com dois sócios [Bagatin e Nery] que presta consultorias em pneumologia ocupacional, sílica, amianto, poeiras orgânicas, etc. A Sama e a Eternit são duas das empresas clientes”, respondeu Mário Terra Filho por e-mail a esta repórter. “É uma atividade privada no meu consultório que não tem qualquer ligação com a Pneumologia da USP. O que meus clientes fazem com meus pareceres não cabe a mim decidir.”
No parecer, constam o nome e o número dos médicos no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Porém, no acordo extrajudicial de quase 30 páginas, assinado pelo ex-empregado, o número no Cremesp não consta. Em vez dele, em destaque na cláusula 4, aparecem as credenciais acadêmicas dos três médicos.
“O fato de os professores da junta médica serem professores da USP, Unicamp e Unifesp ilude as pessoas; faz a gente acreditar que é coisa séria, boa, oficial”, afirma Lucinha. “Como conseguem fazer laudos para os acordos extrajudiciais e, ao mesmo tempo, pesquisas para beneficiar essa mesma indústria?”
Perguntamos à Eternit quantos acordos extrajudiciais já foram assinados. Ela não nos respondeu. Mas estimam-se que mais de 2.500 acordos já foram celebrados. Importante: o acordo é assinado antes de a pessoa passar pela junta médica. “É no escuro, aí é que o bicho pega. A gente fica nas mãos deles. Fazer o quê?” resigna-se o ex-funcionário que pediu para não ser identificado. “Pelo menos tenho um plano de saúde para vida inteira.”
“É uma camisa-de-força nessas pobres vítimas”, condena Fernanda Giannasi. Quem assina o acordo extrajudicial abre mão de pleitear na Justiça qualquer outro tipo de reparação por causa do amianto, pois, em tese, concordou que a indenização recebida “compensou suas perdas”. E o que muitos ainda não se deram conta é de que os benefícios cessarão em caso de falência da empresa ou quando for decretado o banimento do amianto. Está na última cláusula, a 29ª. “Foi a forma que a indústria encontrou para impedir que ex-funcionários, que assinam o acordo extrajudicial, engrossem os movimentos contra o amianto e pelo seu banimento”, acrescenta Fernanda. “Afinal, uma vez banido, eles perdem os benefícios previstos.”
NOVA PESQUISA: ENVOLVIDOS INFORMAM VALORES DIFERENTES
Todo tipo de amianto, ou asbesto, é cancerígeno, inclusive a crisotila. Está banido em 49 países, entre os quais Argentina, Chile, Uruguai e União Européia. No Brasil, seu uso já é proibido em quatro estados: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo. Cresce a campanha pró-banimento da fibra assassina no país inteiro.
A indústria, claro, contra-ataca. Uma nova pesquisa, ainda em execução, é alardeada como sua tábua de salvação, seu salvo-conduto. “Nós, da cadeia produtiva, provocamos a USP, que, por sua vez, chamou outras universidades brasileiras e estrangeiras”, afirma Élio Martins. “Teremos os primeiros resultados em 2009.”
A pesquisa tem duas partes. Uma é a exposição ocupacional. “Vamos continuar avaliando os 4.200 estudados na pesquisa anterior”, diz Ericson Bagatin. “Outra parte é a exposição ambiental. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Salvador e Recife, selecionamos 500 pessoas – 100 em cada capital -- que residem há mais de 20 anos em casas com telhado de amianto. O objetivo é saber se elas estão doentes por causa do asbesto e quantificar as fibras nos locais. A tendência é não haver fibras nesses ambientes.”
Na linha de frente, estão os mesmos professores que fizeram o estudo anterior e integram a junta médica do Grupo Eternit: Mário Terra Filho, coordenador principal; Ericson Bagatin, coordenador-executivo; e Luiz Eduardo Nery. O orçamento previsto para esse projeto é 4 milhões de reais.
“Quem sabe o valor correto da pesquisa é a Marina [Júlia de Aquino]; fala com ela”, sugere Élio Martins. Inicialmente, Marina diz: “O valor total é 3,6 milhões de reais. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] deu um terço, 1 milhão de reais”.
Em e-mail de 23 de junho, Mario Terra Filho informa valor inferior:
Voltamos à Marina. Curiosamente, entre um contato e outro, o discurso sobre o volume total uniformiza-se. Em e-mail de 23 de junho, sua assessoria de imprensa informa:
Parêntese. IBC, relembramos, é o Instituto Brasileiro do Crisotila. É o porta-voz principal da indústria do amianto. A participação do governo de Goiás, através da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, se deve a interesses econômicos, já que 40% da arrecadação bruta de impostos do Estado provêm da única mina de amianto em exploração comercial no país. Tanto o governo de Goiás como sindicalistas representantes dos trabalhadores do setor de mineração amianto e da construção civil, através da Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto (CNTA), participam do IBC. Recentemente, a Abrea acusou esses sindicalistas de serem financiados pelo patronato e denunciou o fato à Organização Internacional do Trabalho (OIT). A conduta deles configura prática anti-sindical. Fere os princípios de liberdade e autonomia sindical. Fechado o parêntese.
A repórter insiste nos 3,6 milhões de reais. “A Marina não estava com os papéis em mãos e se enganou”, diz sua assessoria de imprensa. “Nesses R$ 2.562.275,00, estão englobadas as duas partes da pesquisa.”
Supondo que o total seja mesmo R$ 2.562.275,00, quanto a indústria está pagando? R$1.062.275,00, segundo a presidente do IBC? Ou aproximadamente os 500 mil reais que Terra diz ter recebido?
PESQUISADOR OMITE À USP FINANCIAMENTO DO SETOR INDUSTRIAL
Basta uma rápida pesquisa no Google para achar a apresentação dessa pesquisa, toda colorida, em power point. Na capa, em destaque, as logomarcas de três grifes universitárias brasileiras: USP, Unifesp e Unicamp. Mas o que mais chamou a atenção desta repórter foi a página abaixo, com a logomarca do Hospital das Clínicas de São Paulo: HC.
Euclides Castilho, presidente da CAPPesq na época, é professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. É epidemiologista, pesquisador de primeira linha, reconhecido nacional e internacionalmente. Também um cidadão honrado e ético. A repórter procurou-o:
-- Professor, o senhor se lembra de um projeto aprovado em 2006 sobre exposição ambiental e ocupacional ao amianto?
-- Por ano, passam na CAPPesq quase 1.500 projetos, que são avaliados por uma comissão. Desse eu me lembro, por se tratar de um estudo multicêntrico. Além do Incor, tinha a participação da Unifesp e da Unicamp.
-- Poderia mostrá-lo para mim?
-- A CAPPesq foi criada pela Conep [Comissão Nacional de Ética em Pesquisa], que, por sua vez, é uma comissão do Conselho Nacional de Saúde. Seu princípio maior é o controle social, a defesa da sociedade. Portanto, é meu dever esclarecer a sociedade.
-- O senhor lembra se havia conflito de interesse?
-- Não me recordo, vou apurar.
Um dia depois voltamos a conversar:
-- Essa pesquisa tem financiamento?
-- Do CNPq.
-- Além do CNPq, essa pesquisa tem financiamento de empresas, indústrias?
-- No formulário do projeto, é preciso detalhar todas as fontes de recursos, e isso é perguntado explicitamente. Os autores não nomearam nenhuma empresa.
-- Tem conflito de interesse?
-- Pela documentação apresentada, não. O pesquisador assinou o termo de responsabilidade. Logo, em tese, está implícito que não há. Assinar o termo de responsabilidade implica obedecer a resolução196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Nela está explícito que não pode ter conflito de interesse. Além disso, insisto, o pesquisador não nomeou nenhuma fonte que pudesse sugerir conflito de interesse.
-- Mas acontece que essa pesquisa tem financiamento da indústria via entidade que faz o lobby a favor da indústria do amianto.
-- Bem... tal informação deveria constar do projeto; não consta. Se for verdade, é uma omissão grave.
-- HC e USP não estariam sendo usados pela indústria do amianto?
-- Já fui vice-diretor do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde. Também integrei o Comitê de Vacinas do Programa Global de Aids da Organização Mundial de Saúde (OMS). Eu recebia muitas cartas de pesquisadores. A sonegação de informações era gritante. Às vezes tinha a impressão de que eles só assinavam o projeto. Havia pesquisadores patrocinados pela indústria farmacêutica, participando de protocolo de pesquisa de vacinas, como se eles fossem os autores. Na verdade, eram meros executores de tarefas desenhadas pela indústria. Curiosamente, sempre queriam ter pelo menos dois, três pacientes do HC para usar a logomarca da USP.
É IGUAL A FAZER PESQUISA DE TABAGISMO PAGA PELA SOUZA CRUZ
O financiamento da indústria também não consta do currículo Lattes. Aliás, não é a primeira vez que isso acontece. Na pesquisa, iniciada em 1996 e citada no início desta reportagem, divulgou-se apenas que era financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo). “Só que mais de 50% dos recursos foram bancados pela indústria do amianto, o maior interessado em seus resultados”, denunciou Fernanda Giannasi em 2000. “O conflito de interesses era flagrante. Essa nova pesquisa, mesmo antes de ser divulgada, já está sob suspeita, pois os mesmos erros persistem.”
José Fernando Perez, diretor-científico da Fapesp à época, respondeu: ...a assessoria da Fapesp entende que esse apoio financeiro da empresa SAMA não invalida, em princípio, os resultados do projeto. No entanto, entende também que ele cria uma situação de potencial conflito de interesse, que requer aplicação rigorosa do “princípio de plena informação”.
“Eu estava em Boston, o Perez me ligou, perguntando se eu sabia que essa pesquisa era financiada pela indústria. Eu não sabia”, relembra o médico patologista Paulo Saldiva, que iria fazer os exames anátomo-patológicos. “Imediatamente me desliguei do estudo. Disse ao Ericson Bagatin que discordava da conduta e que havia conflito de interesse.”
Paulo Saldiva é professor titular de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador da Harvard Medical School, nos Estados Unidos. “Mesmo que a lisura da pesquisa não seja comprometida, não fica bem ter financiamento da indústria num assunto tão polêmico, com interesses gigantescos, como o do amianto. É a mesma coisa que fazer pesquisa de tabagismo financiada pela Souza Cruz. É eticamente incompatível, eu me recuso a participar disso”, frisa Saldiva. “O amianto é cancerígeno, e eu defendo o banimento total dele no Brasil”.
Pelas mesmas razões de Saldiva, Eduardo Algranti, outro renomado pesquisador brasileiro, se retirou da pesquisa, informando isso à Fapesp; em carta a Bagatin, pediu que seu nome fosse retirado do relatório final. Algranti é doutor em Saúde Pública, pesquisador e pneumologista da Fundacentro, órgão ligado ao MTE.
ERRO CRASSO; NO MÍNIMO, ESTRANHO. NÃO HÁ JANTAR DE GRAÇA
“Potenciais conflitos de interesse são resolvidos pelo princípio do pleno conhecimento, isto é: desde que se declare que você prestou assessoria a empresas nos artigos científicos publicados com assunto referentes a estas. O leitor julga se houve o conflito ou não”, disse por e-mail Mário Terra Filho.
Sem identificar os pesquisadores e o objeto do estudo, discutimos a questão com o médico Dirceu Greco, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep):
-- A abertura da existência de conflito para o leitor de uma revista científica ou platéia de congresso basta para garantir a lisura da pesquisa?
-- É um passo 100% obrigatório, mas pode não ser suficiente. O pesquisador pode até dizer que não tem conflito de interesse. Só que às vezes ele tem tanto envolvimento que não consegue separar o seu interesse pessoal do que está fazendo como pesquisador.
-- É correto omitir do comitê de ética as fontes financiadoras?
-- É um erro crasso; no mínimo, estranho, levanta suspeitas. Se o pesquisador é pago por um segmento cujo interesse é manter seu produto no mercado, ele corre um risco enorme. Há uma tendência imensa de a relação financiador-financiado não ser completamente independente e influenciar o resultado da pesquisa. Logo, a transparência plena é condição indispensável para se avaliar se há ou não conflito de interesse. Se o pesquisador omite, aí talvez tenha algum problema. Qual? É difícil dizer.
-- Tem jantar de graça?
-- Não. Na cabeça de muitos pesquisadores passa o seguinte raciocínio. Poxa, o patrocinador me trata tão bem, me financia, como é que vou colocá-lo numa situação que pode ser prejudicial para o negócio que está me financiando? E aí, o que fazer? O correto é que enfrentemos a situação, mesmo com o risco de perder futuros patrocínios.
-- Omitir informações é ético?
-- Omitir não é ético. Nunca! A transparência é parte do processo da nossa relação com os nossos pesquisados. Logo, toda informação pertinente ao projeto tem que ser disponibilizada. Talvez o pesquisador diga: “isso não tem importância, por isso não foi acrescentado”. Ao omitir dados, você tira de qualquer pessoa a possibilidade de avaliar aquela informação. Você impede o contraditório. A informação só pode se tornar clara se o pesquisador for claro.
A propósito. Por que o financiamento do setor do amianto deixou de ser explicitado à comissão de ética da Faculdade de Medicina da USP? Foi esquecimento? Se os resultados da pesquisa forem contrários aos interesses da indústria, eles serão publicados? Existe um contrato particular entre as partes de não se publicar resultados negativos? Haverá nesta pesquisa, tal qual na primeira, um seguro pago pela SAMA em favor dos médicos pesquisadores por possíveis erros médicos? Que mecanismos de controle foram colocados neste estudo para que ele não traga respostas falsas? Que providências as comissões de ética adotarão de agora em diante?
E o ex-empregado ou trabalhador, submetido à junta médica, como fica, já que ele não lê trabalhos científicos? Que garantia tem de que a sua avaliação de saúde está sendo adequada se os membros da junta médica têm pesquisa financiada pela indústria do amianto, que, por sua, quer que os resultados dêem aval à continuidade do produto? O ex-empregado ou trabalhador sabe dessa dupla-função? Qual a repercussão disso sobre a saúde do trabalhador?
“O pessoal da Eternit, o doutor Mílton [do Nascimento] e os professores que são médicos da junta são uns assassinos, mesmo!”, responde, na lata, dona Maria Lúcia. “São gente que não tem mãe”. A filha Lucinha assina embaixo: “O único jeito de mais gente não sofrer o que estamos vivenciando é o banimento completo --- e já! -- do amianto no Brasil e no restante do mundo”.
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