Alguma coisa, numa mostra de preciosos mapas geográficos dos séculos XVII-XVIII, contrariou as autoridades de Pequim a ponto de impeli-las a solicitar que não fossem expostas algumas pranchas. O fato é que os cartógrafos do passado contradizem a hodierna historiografia oficial: suas configurações demonstram que o Tibet foi por longo tempo um reino independente.
Segue a íntegra do artigo de Federico Rampini publicado no jornal italiano La Repubblica, 15-06-2008.
Em 1584, o jesuíta-cientista Matteo Ricci, que já vivia na China fazia dois anos, produziu ali um planisfério desenhado segundo a tradição cartográfica européia: com o nosso continente no centro e o Império Celeste relegado à borda oriental do mapa. A obra foi acolhida com frieza. Para os chineses já era um trauma dever aceitar o redimensionamento de seu império, num modo improvisamente repleto de outras terras vastas e longínquas. Ver-se, além disso, confinados à periferia era uma falta de respeito, uma configuração ofensiva. Ricci entendeu ter cometido um erro. Ductilidade cultural e tato diplomático não lhe faltavam.
Nos dezesseis anos sucessivos se esforçou por redesenhar um planisfério, igualmente acurado, mas baseado numa perspectiva completamente diversa: com o Império Celeste colocado no meridiano central, a Europa comprimida à esquerda e a América à direita. Intitulada Carta geográfica completa dos montes e dos mares, o mapa-múndi de 1600 teve um sucesso extraordinário, foi replicado em múltiplas edições e foi adotado por poderosos notáveis locais, como o governador de Guizhou e o literato Guo Qingluo.
Passaram-se quatrocentos anos, mas os chineses do século 21 não são menos suscetíveis, mas até mais. Deu-se conta disso o sinólogo Riccardo Scartezzini, que dirige o Centro de Estudos Marino Martini de Trento. O estudioso italiano levou à China uma valiosa exposição de cartas antigas, intitulada Visões do Império Celeste. Conseguiu fazê-la expor, primeiro em Pequim e mais recentemente em Hangzhou, oferecendo ao público chinês uma oportunidade extraordinária: redescobrir a imagem da China na cartografia ocidental, uma imagem que do século XVII em diante contribuiu também para a consciência que os chineses têm do próprio país.
Mas esta mostra correu o risco de não mais abrir. Os relâmpagos da censura de Estado estavam para abater-se sobre os valiosos documentos históricos. A razão? Naquelas magníficas cartas antigas está a prova inconfundível de que o Tibet e outras regiões da República Popular, como o Xinjiang islâmico, foram por longo tempo independentes. “No clima tenso após a revolta do Tibet e as contestações à chama olímpica”, conta Scartezzini, “tivemos a solicitação de não expor algumas pranchas”.
Embora antigas de séculos, lhe explicaram os seus interlocutores locais, aquelas representações podiam “dar lugar a mal-entendidos”. Ou seja, podiam revelar ao ignaro visitante de Pequim e Hangzhou a mistificação da história oficial: nos manuais contemporâneos, de fato, a pertença do Tibet à China é feita remontar muito mais atrás, nada menos do que a Gengis Khan (no século XIII). Para salvar a exposição, Scartezzini teve que recorrer à mesma flexibilidade de Matteo Ricci. Alguns mapas “obscenos” foram removidos. O incidente político foi esconjurado. Os curadores locais da mostra foram submetidos à imposição das sanções do regime.
Scartezzini teve razão em se dobrar. É importante que os chineses possam ver esta exposição, mesmo sem os mapas tabus. Mesmo após este sacrifício de algumas peças, Visões do Império Celeste continua sendo uma exposição de extraordinário valor. Pela fascinante beleza das antigas cartas e pela história que está por trás. É a recordação de uma época feliz – e demasiado breve – na qual o confronto entre “nós” e “eles” ocorreu num clima de extraordinária abertura e tolerância: um parêntesis de contaminação recíproca, quando a Europa se libertou dos seus preconceitos e a China do seu orgulhoso senso de superioridade.
Estes achados revelam o papel excepcional desenvolvido pelos jesuítas – antes de serem, por sua vez, censurados pela Igreja romana – como mediadores culturais entre o Ocidente e a Terra do Meio. Foram aqueles missionários que nos deram a conhecer por primeira vez uma China real, depurada das lendas da antiguidade greco-romana ou dos contos um pouco fabulosos demais de Marco Pólo. E foram sempre eles, os jesuítas, que deram a conhecer aos chineses uma representação objetiva do resto do mundo. Sua maestria consistia em fundir as metodologias científicas mais avançadas da Europa, junto com a extraordinária bagagem de conhecimentos que a China desenvolvera por sua conta.
Massimo Quaini, geógrafo italiano da Universidade de Gênova, na introdução ao catálogo da mostra recorda qual foi a vantagem competitiva dos jesuítas, baseada sobre sua capacidade de diálogo com a cultura confuciana que lhes havia aberto as portas do Império celeste. “Os jesuítas”, escreve Quaini, “podiam beneficiar-se de circunstâncias excepcionais e do favor do imperador Kangxi, que abriu aos missionários os arquivos de todas as províncias e fez colaborarem localmente os mandarins e os letrados”. Os religiosos aplicaram de um recanto ao outro do império as técnicas de triangulação e de cálculo das longitudes por meio da observação dos satélites de Júpiter, postos a ponto pelo observatório astronômico de Paris e pelo cientista italiano Giani Domenico Gassini.
O seu trabalho lhes valei a admiração de um filósofo não particularmente tenro para com a Igreja: Voltaire. No verbete Geografia de seu dicionário filosófico, Voltaire escreveu: “A China é o único país da Ásia do qual se tem uma medida geográfica, porque o imperador Kangxi empregou os jesuítas astrônomos para construir cartas exatas; e é isso que os jesuítas souberam fazer de melhor. Se se tivessem limitado a mensurar a Terra, não teriam sido proscritos sobre a terra”. (A aventura dos jesuítas no Extremo Oriente se concluiu com uma pungente derrota quando o Vaticano condenou sua tolerância com os “ritos chineses”, uma liturgia muito livremente adaptada aos costumes do lugar).
Aquelas cartas tiveram um papel crucial na Europa. Elas se tornaram instrumentos de trabalho indispensáveis nas grandes expedições marítimas do século dezoito. Ajudaram os mercadores ingleses, holandeses e franceses a orientar-se nas terras que ofereciam novas oportunidades de enriquecimento. Contribuíram para a difusão de uma verdadeira e própria “cinomania”, da qual permaneceram traços bem visíveis no gosto rococó pelos bibelôs chineses.
A partir do Iluminismo se difundiu nos nossos países a convicção de que a China era uma civilização de grande valor. Voltaire a considerava superior na arte do bom governo, visto que o Império Celeste havia criado a primeira burocracia estatal selecionada com exames de Estado, segundo critérios meritocráticos.
As obras-primas da cartografia não nascem por acaso, são o fruto de um método que destaca os jesuítas da época. Conscientes de ter um desafio especial ante uma sociedade muito avançada e antes refratária a um proselitismo religioso, os missionários visam conquistar o respeito da elite intelectual que governa o império oferecendo o melhor da cultura científica ocidental. Ao mesmo tempo entesouram o patrimônio de conhecimentos chineses.
Para com a cartografia os Filhos do Céu têm, de fato, um grande respeito. Consideram-na um instrumento essencial para uma boa administração pública. Atesta-o o Documento sobre os ritos da dinastia Zhou: “Os diretores das regiões são encarregados das cartas do império, sobre cuja base superintendem as terras dos diversos distritos. O geógrafo real tem a responsabilidade das cartas dos circuitos provinciais. Quando o imperador realiza um giro de inspeção, o geógrafo cavalga do lado do veículo imperial para fornecer explicações sobre as características do país e sobre seus produtos”.
O pioneiro Matteo Ricci é o primeiro cientista europeu a realizar um planisfério do mundo com explicações e legendas em língua chinesa, uma reviravolta histórica que representa uma ponte entre as culturas do Ocidente e do Oriente. Após Ricci, o autor mais importante para a nova visão geo-cartográfica do Império Celeste é Martino Martini, jesuíta de Trento que desembarca na província do Zhejang em 1643, numa época de conflito entre as dinastias Ming e Qing. Em 1655 faz publicar em Amsterdã o Novus Atlas Sinensis: 170 páginas de texto, 17 pranchas, com as coordenadas de 2.100 localidades chinesas. É um salto formidável nos conhecimentos da Terra do Meio. É Martini que corrige pela primeira vez os erros dos cartógrafos europeus que colocavam a Grande Muralha e Pequim aos 50º de latitude norte, ao invés dos 39º 59’.
O Novus Atlas Sinensis calcula as distâncias entre as cidades chinesas com tal precisão, que em grande parte coincide com os mapas de hoje. A obra de Martini conflui, depois, para o Atlas Maior, o maior empreendimento editorial do século XVII (doze volumes, três mil páginas de texto e seiscentas pranchas), instrumento indispensável para gerações de mercadores e viajantes ao Extremo Oriente. É um choque para a consciência européia: faz tábua rasa de tantas lendas e mitologias que haviam condicionado o contato com a China.
Martini conclui o seu trabalho monumental somente depois de ter perlustrado pessoalmente diversas regiões do Império Celeste. Mas tem a humildade necessária para reconhecer os seus débitos com as fontes locais: “Nem deve ninguém pensar que estas coisas tenham sido geradas pelo meu cérebro ou simplesmente inventadas; de fato, declaro sinceramente e com germânica honestidade que obtive todas estas notícias dos livros de geografia e dos mapas chineses, decorados, compostos e impressos para cada província pelos próprios chineses, os quais ainda tenho comigo e que estou pronto a exibir diante de quem quer que esteja interessado nestas coisas”.
A modéstia – e a prudência diplomática – lhe aconselha sobrevoar o fato que sua obra tenha revolucionado a visão da realidade dos próprios chineses. Tradicionalmente, eles haviam configurado um mundo plano circundado por um universo recurvo. A superioridade da Terra do Meio (a sua) derivava precisamente do fato de que ela era fisicamente a mais próxima da convexidade do céu, absorvendo-lhe todas as influências benéficas, enquanto os bárbaros das periferias não tinham este privilégio.
A época feliz na qual os Filhos do Céu estavam interessados no diálogo com os jesuítas é o último período de fecunda abertura da China para o mundo exterior. Depois virá uma lenta decadência, alimentada por um senso de auto-suficiência e de presuntuoso desinteresse pelos progressos do Ocidente. As estupendas cartas antigas das Visões do Império Celeste – na versão integral e não censurada – contradizem a propaganda do regime comunista. A despeito da versão oficial, as divisas hodiernas da República Popular são fruto de conquistas territoriais imperialistas.
Contrariamente ao que dizem os dirigentes atuais de Pequim, também a China teve um expansionismo agressivo e uma política de anexação de outras nações. O perímetro atual de suas fronteiras é o resultado de guerras coloniais não diversas daquelas com as quais se manchou o Ocidente. A República Popular encerra dentro de suas fronteiras o último império multi-étnico da era contemporânea. Na China Ilustrada de Athanasius Kircher (inspirada nos trabalhos de Martini) é bem visível, em 1667, um “Tibet Regnum” separado e independente. No Atlas Nouveau de Guillaume Delisle, de 1730, a extensão do Tibet é ainda mais vasta, embora seja chamado de “Tartarie Indépendante”.
Em 1735, as pesquisas dos jesuítas são incluídas e atualizadas em outra obra grandiosa, a Description géographique de l’Empire de la Chine, de Jean-Baptiste du Halde. Uma obra tão volumosa e custosa que, na Europa daqueles tempos, são produzidas numerosas edições-piratas. É citada na Encyclopédie do Iluminismo. Servirá para guiar as missões diplomáticas inglesas à China do almirante Anson e do embaixador Macartney.
Du Halde fala explicitamente do “Reino do Tibet” como de uma entidade bem distinta. Neste e em muitos outros Atlas até os inícios do século vinte aparecem como Estados independentes também a Mongólia interna e o Turquistão oriental, hoje rebatizado Xinjiang: todos atualmente reduzidos à categoria de províncias da República Popular. Seus manuais de história foram oportunamente reescritos para demonstrar a continuidade da China em suas dimensões “ampliadas” há tempos imemoráveis.
Aquelas que foram autênticas civilizações, com histórias e culturas bem distintas, devem hoje contentar-se com o estatuto de minorias étnicas. Pequim lhes oferece espaços vigiados de folclore local, como se fossem concessões magnânimas. A verdade está escondida nas malditas cartas que os chineses não podem ver.
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