Ao aceitar a proposta de acordo apresentada pela direção da OMC, o governo brasileiro jogou fora, numa noite, a política pró-Sul que adotou com vigor nos cinco anos e meio do governo Lula. O comentário é de Clóvis Rossi e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-07-2008.
Não se trata nem de julgar se essa política era a correta ou se seria melhor a que pregava o contrário (aproximar-se mais e mais do mundo rico). Há bons argumentos em favor de uma e outra linha. O importante, no caso, é a perseverança em uma dada direção ou, em caso de mudança de rumo, uma razão forte o suficiente para ser facilmente compreendida pelo público e os parceiros externos.
Não foi o que ocorreu. O Brasil passou os últimos cinco anos, desde a criação do G20 em 2003, defendendo a tese de que a Rodada Doha era, centralmente, uma questão de liberalizar a agricultura dos países ricos em benefício dos pobres. Nem a competente dialética dos diplomatas brasileiros em geral e, em particular, do chanceler Celso Amorim será capaz de convencer quem quer que seja que houve, na noite de quinta para sexta-feira passadas, concessões dos países ricos que ao menos se aproximassem do defendido há cinco anos.
Qual era o nó agrícola mais saliente nas negociações da semana passada? O volume de subsídios que os EUA dão a seus agricultores. O G20 passou cinco anos defendendo um teto de US$ 13 bilhões. Os EUA ofereceram inicialmente US$ 15 bilhões, rejeitados pelo G20. Aí, surgiu a proposta de Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, de US$ 14,5 bilhões, uma redução microscópica e, ainda assim, o dobro do que vem sendo efetivamente concedido aos agricultores dos EUA nestes tempos de elevados preços de commodities agrícolas.
O Brasil aceitou, o que leva a uma de duas suposições: ou todo o empenho por um teto menor era jogo de cena ou, agora, o rumo da diplomacia mudou para agradar os ricos em vez de solidarizar-se com o Sul. Trocar de linha por uma diferença de US$ 500 milhões não parece uma justificativa convincente.
Pior, no entanto, é a punhalada pelas costas na Argentina. Vejamos: o Brasil estava perfeitamente confortável com o nível de proteção a sua indústria previsto no documento prévio às reuniões da semana passada. Só o rejeitou para defender o Mercosul ou, mais exatamente, a Argentina, que reclamava um grau maior de proteção.
Defender o Mercosul tornou-se um dos principais cavalos de batalha da diplomacia brasileira, como disse, em Roma, no mês passado, o próprio Lamy. De repente, de novo em uma única noite, o Itamaraty dá as costas ao seu aliado mais importante na região prioritária para a diplomacia brasileira (o Mercosul e a América do Sul) sem que tenha havido qualquer contrapartida significativa dos ricos. Pior: colhe o governo de Cristina Kirchner em seu pior momento interno. A oposição certamente usará a punhalada como sinal de que o governo Kirchner está isolado externamente.
Por fim, debilita outro projeto prioritário, o Ibas (Índia/ Brasil/África do Sul), típica aliança do Sul. Os dois parceiros rejeitaram energicamente a proposta que o Brasil aceitou gostosamente.
Se todos esses danos colaterais tivessem ocorrido em troca de ganhos formidáveis no comércio global -que, afinal, é o que domina o jogo diplomático de países, como o Brasil, que não têm força militar ou econômica para outros jogos-, seria fácil de entender. Mas ante resultados tão modestos, fica a impressão de que a diplomacia brasileira quis apenas mostrar-se bem comportada com os ricos. Exatamente o que vinham pedindo os setores políticos e diplomáticos que eram ironizados até então pelo governismo como subservientes ao Norte e preconceituosos com o Sul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário